A maior felicidade

Naquele tempo, 30 os Apóstolos reuniram-se com Jesus e contaram tudo o que haviam feito e ensinado. 31 Ele lhes disse: “Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco”. Havia, de fato, tanta gente chegando e saindo que não tinham tempo nem para comer. 32 Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e afastado. 33 Muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles. 34 Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou, pois, a ensinar-lhes muitas coisas (Mc 6, 30-34).

XVI Domingo Do Tempo Comum

No convívio nobre e elevado com os outros, ou no relacionamento
calmo, silencioso e sereno com Deus, encontra-se a maior
felicidade nesta Terra.

Por Mons. João S. Clá Dias, EP.

Os Apóstolos haviam sido mandados em missão, dois a dois, a diferentes lugares. Não há informação histórica sobre quanto durou esta separação entre eles, nem a respeito dos lugares percorridos. Bem se pode imaginar as energias físicas e emocionais que eles empregaram nesta primeira aventura apostólica.

Passar da atividade de pescadores para as de exorcistas, taumaturgos e pregadores, sem um longo curso preparatório em alguma academia, deve ter causado um não pequeno desgaste a cada um, sem contar as saudades indizíveis e crescentes que os assaltavam. Teriam eles fixado uma data para o reencontro? Também nada se sabe sobre este particular. Ele pode ter-se dado até por força do acaso, mas o certo é que todos coincidiram no momento de voltar a Jesus.

O convívio

Reencontro com o Mestre

Naquele tempo, 30 os Apóstolos reuniram-se com Jesus e
contaram tudo o que haviam feito e ensinado.

Tratava-se da primeira grande separação. Depois de tanto tempo e de inúmeras aventuras, retornar para junto do Mestre deve ter sido um acontecimento marcante na vida de cada um deles. Apesar de Cristo Jesus viver sob os véus de uma natureza humana padecente e mortal, qualquer ato de admiração e de benquerença em relação a Ele era, no fundo, uma adoração direta a Deus. Ali estava o mesmo Jesus que mais tarde seria o da Ressurreição e da Ascensão, atuando no interior de seus eleitos com toda a penetração de sua divindade. Que convívio, neste mundo, poderia ser mais excelente do que este? O Mestre era o próprio Deus, agindo pela graça em suas almas e, ao mesmo tempo, fazendo uso de sua voz e palavras para instruí-los. Todos os termos por Ele utilizados eram os mais perfeitos e insubstituíveis, numa linguagem elevada, nobre e bíblica, sempre acompanhada de um afeto jamais descritível ou superável. Em nenhuma oportunidade deixava o Messias de atraí-los e de conduzi-los ao desejo das coisas celestes.

O clima de cordialidade, amor fraterno e alegria criado por Jesus devia ser paradisíaco. Todos se sentiram à vontade para contar “tudo o que haviam feito e ensinado”. E não consta, em nada, a presença do maldito vício da vaidade, entre eles. De início, aprenderam a lição: “sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Devia haver muita manifestação de humildade da parte deles, reconhecendo em Cristo a fonte de todos os triunfos obtidos naquele princípio de evangelização.

Com toda certeza, na primeira missão apostólica um fator teria contribuído para os unir ainda mais entre si, colocando-os em maior dependência de Nosso Senhor: as discussões com os escribas e fariseus. Estes não poderiam ter estado ausentes, pois, objetantes, obstinados e petulantes como sempre, decerto procuraram tornar impossível a atuação dos Apóstolos. Evidentemente, os demônios que iam sendo exorcizados dos possessos somavam suas forças às dos fariseus para combater os discípulos de Jesus. Este choque de opiniões, métodos e doutrinas ia separando os Apóstolos, pouco a pouco, da mentalidade, espírito e concepções nas quais haviam haurido seu ensinamento religioso desde a infância. Era-lhes necessário percorrer uma via purgativa para expungir do fundo da alma todos os erros ideológicos e desvios teológico-morais incutidos por seus antigos mestres.

Ora, a união cresce entre aqueles que têm de enfrentar, em comum, um obstáculo. Sentir o desagrado no relacionamento com os de sua antiga escola robustecia neles o desejo de reencontrar os verdadeiros irmãos e, sobretudo, o Mestre. Quanto mais os discípulos se afervoravam no amor a Jesus, mais se distanciavam de seus companheiros de outrora, e vice-versa.

Convívio fraterno entre os Apóstolos

Ia-se, desta maneira, constituindo uma ideal e fraterna comunidade entre os Apóstolos, na qual tudo se transformava em perdão, amor e benevolência. Esta era a real amizade. Num ambiente assim, desfruta-se uma felicidade insuperável aqui na Terra, preâmbulo da eterna, no Céu, pois em ambas tem-se a Deus como centro da existência.

Claro está que a visão direta de Deus, face a face, será nossa felicidade essencial. Contudo, não devemos desprezar o convívio com os Bem-aventurados no Céu. Pouco se fala da bem-aventurança acidental no Céu, mas, se Deus a criou, é porque cabe a ela um papel importante. Além da visão beatífica, tem-se no Céu o gozo dos bens criados e legítimos que corresponde às nossas temperadas aspirações. É por isso que, na eternidade, existe a auréola dos mártires, dos doutores e das virgens. Estará entre estes gozos o reencontro das verdadeiras amizades e de todo bem feito neste mundo. E, por fim, a retomada de nossos corpos, em estado glorioso.

O reencontro dos Apóstolos com o Divino Mestre é descrito pelo famoso Maldonado:

“Contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado. O verbo fazer é usado pelo Evangelista, de modo absoluto, no sentido de fazer milagres, como também em São Lucas (cf. Lc 9, 7; At 1, 1).

“Cristo lhes havia ordenado que ensinassem e confirmassem sua doutrina com os milagres (cf. Mc 6, 7; Mt 10, 1.7-8; Lc 9, 2). De uma e outra coisa Lhe prestam contas ao regressar, embora não saibamos a razão. A maior parte dos autores supõe que procederam assim por parecer justo e razoável que dessem satisfação da missão a quem os tinha enviado. Exemplo que deve ser seguido pelos pregadores, atribuindo a Cristo aquilo de bom que tiverem obtido em seus sermões, como fazem notar São Jerônimo, Estrabão e Teofilato. O que é muito verdadeiro, sendo louvável que o fizessem, como julgamos que de fato fizeram. Mas suponho que devia haver outro motivo, como é razoável conjecturar. É que eles voltavam dessa missão cheios de alegria e muito animados por verem que tudo tinha acontecido como desejavam, de forma que, dando glória ao Senhor, relatam a Cristo tudo quanto tinham ensinado e os milagres que haviam feito, como afirma São Lucas que [noutra ocasião] procederam os setenta e dois discípulos (cf. Lc 10, 17).

“Supõe São Beda que não só contaram o que realizaram e ensinaram, bem como o que João tinha sofrido, como se não o soubesse Cristo”.

A solidão

31 Ele lhes disse: “Vinde sozinhos para um lugar deserto, e
descansai um pouco”. Havia, de fato, tanta gente chegando e
saindo que não tinham tempo nem para comer.

E is o outro lado da “moeda” do convívio com Deus: o silêncio, o isolamento, o repouso. O próprio Jesus, em sua humanidade santíssima, sentia a necessidade disto para poder gozar da máxima intimidade com o Pai, apesar de estar hipostaticamente unido a Ele. Como se não tivessem bastado os trinta anos de sua existência em Nazaré, retirara-Se a um completo isolamento de quarenta dias, no deserto, em silêncio, na perspectiva de sua vida pública. E mesmo durante o tempo de sua atuação no meio do povo, era habitual refugiar-Se no silêncio dos montes. Por fim, antes da Paixão, abraçou o doloroso abandono de três horas no Horto das Oliveiras.

É nesse sentido que nos adverte São João da Cruz: “Uma Palavra pronunciou o Pai, que foi seu Filho, e esta fala sempre em eterno silêncio, e em silêncio há de ser ouvida pela alma”.

Deus Se faz ouvir no silêncio, na serenidade e na calma

Quão misterioso e fundamental é o silêncio! Deus mais nos visita no recolhimento do que nas atividades externas. Em geral, nossa vida sobrenatural dá passos mais firmes e decididos no silêncio do que em meio às ações. Os Sacramentos também produzem a graça em nossas almas sob o manto do silêncio. Este nos ensina a falar, como afirmava Sêneca: “Quem não sabe calar, não sabe falar”.

De igual maneira, importantes são a serenidade e a calma no relacionamento humano ou na contemplação. Jesus, no Evangelho, nunca dá a impressão de estar asfixiado pela pressa. Às vezes até “perde tempo”: todos O procuram e Ele não Se deixa encontrar, tão absorto está na oração. No trecho evangélico de hoje convida seus discípulos a “perderem tempo” com Ele: “Vinde sozinhos para um lugar deserto, e descansai um pouco”. Recomenda frequentemente não se agitar. Quantos benefícios da “lentidão” recebe nossa saúde!

A este respeito, observa com acerto o Pregador da Casa Pontifícia, padre Raniero Cantalamessa: “Se a lentidão tem conotações evangélicas, é importante dar valor às ocasiões de descanso ou de demora que estão distribuídas ao longo da sucessão dos dias. O domingo e as festas, se são bem utilizadas, dão a possibilidade de cortar o ritmo de vida demasiado excitante e de estabelecer uma relação mais harmônica com as coisas, as pessoas e, sobretudo, consigo mesmo e com Deus”.

Os Apóstolos deviam estar exaustos depois de tantas atividades e, por esta razão, comenta o padre Manuel de Tuya que, terminadas as narrações das viagens, “Cristo quer proporcionar-lhes uns dias de descanso, levando-os a um ‘lugar deserto’ que estava ‘perto de Betsaida’. A causa era que nem depois de seu trabalho missionário, particularmente intenso, os deixavam sozinhos: as pessoas afluíam para Cristo. Marcos descreve este assé-dio das turbas com sua linguagem realista: ‘porque eram muitos os que iam e vinham, e nem tinham tempo para comer’. Talvez estas multidões que vêm, nessa ocasião, possam ser um indício do fruto desta ‘missão’ apostólica”.

Fugir da agitação para se encontrar com Deus

32 Então foram sozinhos, de barco, para um lugar deserto e
afastado.

Baseando-se em um pensamento de São João Crisóstomo, Cornélio a Lápide conta que Davi, em sua infância, fugia da agitação da cidade e buscava a solidão dos desertos. Ali vencia os ursos e os leões. E lembra ainda que as Escrituras nos contam que Judite “havia feito no andar superior de sua casa um quarto reservado para si, no qual se conservava retirada com suas criadas” (Jt 8, 5). Os homens contemplativos, sempre que possível, abandonam o bulício do mundo e abraçam o isolamento para viver de Deus, com Ele e para Ele. Também para Jesus e os Apóstolos tornava-se impossível o repouso em Cafarnaum, onde eram muito conhecidos.

“À agitação ordinária decorrente da pregação e das curas” — escreve o Cardeal Gomá y Tomás — “acrescentava-se a proximidade da Páscoa, que transformava a cidade marítima em centro de confluência das caravanas que subiam para Jerusalém: ‘Porque eram muitos os que iam e vinham, e nem tinham tempo para comer’. Por isso se dirigiram à praia ‘e, entrando numa barca, se retiraram a um lugar deserto e afastado do território de Betsaida’. Havia duas cidades com este nome: uma na parte ocidental do lago, pátria de Pedro e André, e a outra na parte oriental, em direção ao norte, junto à foz do Jordão. Recebera o nome de Betsaida Júlia porque o tetrarca Filipe, que a tinha embelezado e dado o nome à cidade, quis que se chamasse Júlia em homenagem à filha de César Augusto. A barquinha que conduzia Jesus e os Apóstolos aportou ‘no outro lado do Mar da Galileia, ou seja, de Tiberíades’, junto à planície solitária que se abre ao sul de Betsaida. João escreve para os fiéis da Ásia, que desconheciam a topografia da Palestina, indicando-lhes a localização do mar pela cidade que lhe dá o nome”.

De outra perspectiva, a caridade pode ser definida como a própria vida de Deus em nós. Ora, Deus é ao mesmo tempo contemplação e ação. Ademais, a virtude é eminentemente difusiva. Por tal motivo afirma São Tiago ser morta a fé quando não frutifica em obras (cf. Tg 2, 17). Daí decorre ser a vida mista, segundo São Tomás de Aquino,14 a mais perfeita, por conjugar ação e contemplação.

Desta forma, no Evangelho de hoje, Jesus nos ensina quanto devemos ser perfeitos no convívio com Deus, quer no isolamento, quer no relacionamento com os outros.

Jesus nos governa com doçura

33 Muitos os viram partir e reconheceram que eram eles. Saindo
de todas as cidades, correram a pé, e chegaram lá antes deles.

Não sabemos se, devido ao vento, o barco terá dado suas voltas em sentido contrário, ou se resolveram retardar o deslocamento, pelo fato de a conversa ter atingido uma aprazível atração. O certo é que um grande público os precedeu naquela distância de 12 km. Homens, mulheres, crianças — vários dos quais enfermos — atravessaram o Jordão num verdadeiro testemunho de fé e de devoção a Jesus. “Assim também nós não devemos esperar que Cristo nos chame, mas devemos nos antecipar para ir até Ele”, conforme pondera Teofilato.

É para nós, esta passagem, um excelente incentivo e convite para procurarmos um convívio mais intenso e prolongado com nosso Salvador. Há quanto tempo não nos aguarda Ele, debaixo das Sagradas Espécies, nos tabernáculos de todas as igrejas?

Ovelhas sem pastor: compaixão de Jesus

34 Ao desembarcar, Jesus viu uma numerosa multidão e teve
compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor. Começou,
pois, a ensinar-lhes muitas coisas.

A primeira leitura (Jr 23, 1-6) deste 16º Domingo do Tempo Comum nos traz esta lamentação de Jeremias: “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar-se o rebanho de minha pastagem, diz o Senhor! […] E eu reunirei o resto das minhas ovelhas […], e as farei voltar a seus campos, e elas se reproduzirão e multiplicarão” (23, 1.3). São os gemidos do próprio Deus em vista de suas almas fiéis em situação de abandono.

Também Ezequiel, por inspiração divina, condena dura e severamente os maus pastores de Israel e anuncia que Deus enviará às suas ovelhas um Bom Pastor, e este “será um príncipe no meio delas” (34, 24). De fato, aqui é Ele contemplado no versículo que estamos comentando. Deus demonstrou verdadeiro amor divino ao criar a função de pastor entre os
homens, pois desejava servir-Se dela para melhor simbolizar seu insuperável zelo por todos nós. Não sem razão enviou seus Anjos a convidar os pastores da região de Belém para serem os primeiros a adorá-Lo no Presépio. E Ele Se apresenta como o Pastor perfeito, pois é Aquele que dá a vida por suas ovelhas (cf. Jo 10, 11), conforme maravilhosamente comenta São Gregório Magno.

Ao descer da barca, Jesus Se compadece daquelas ovelhas sem pastor e passa a ensiná- las. Não as instruía, porém, só com palavras. Muito mais! Sobretudo se levarmos em conta seu cuidado pela alimentação de toda aquela multidão, tal como transparecerá no milagre da multiplicação dos pães e peixes, narrado nos versículos seguintes. Jesus comunicava sua graça, sua vida, seu amor. Quão inefável devia ser o desvelo d’Ele ao ensinar suas ovelhas, pois, mais do que dar a vida por elas, desejava ser a própria vida delas! Ele vive em cada uma das ovelhas que se deixa perpassar por sua graça, e está sempre pronto a auxiliá-las e oferecer-lhes os Sacramentos.

O governo pastoral

Neste mesmo versículo, Jesus Se torna excelente exemplo para todo tipo de governo, quer seja familiar, quer civil ou eclesiástico. Deste último de maneira especial, pela forma toda paternal — quase se poderia dizer “maternal” — com que deve ser exercido: com enorme doçura e suavidade, grande empenho e dedicação. Por isso, o governo eclesiástico é chamado “pastoral”, seus documentos são denominados “pastorais”, etc.

Belíssimas são as palavras de São Pedro a este respeito: “Velai sobre o rebanho de Deus, que vos é confiado. Tende cuidado dele, não constrangidos, mas espontaneamente; não por amor de interesse sórdido, mas com dedicação; não como dominadores absolutos sobre as comunidades que vos são confiadas, mas como modelos do vosso rebanho. E, quando aparecer o Supremo Pastor, recebereis a coroa imperecível de glória” (I Pd 5, 2-4). ♦️

Excertos de “O Inédito sobre os Evangelhos, Vol. IV. Ano B.


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