Eles viram, mas não entenderam

21 Começou a dizer-lhes: “Hoje se cumpriu este passo da Escritura que acabais de ouvir”. 22 E todos davam testemunho em seu favor, e admiravam-se das palavras de graça que saíam da sua boca. E diziam: “Não é este o filho de José?” 23 Então disse-lhes: “Sem dúvida que vós Me aplicareis este provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Todas aquelas grandes coisas que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum, fá-las também aqui na tua terra”. 24 Depois acrescentou: “Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido na sua terra. 25 Em verdade vos digo que muitas viúvas havia em Israel no tempo de Elias, quando foi fechado o céu durante três anos e seis meses e houve uma grande fome por toda a Terra; 26 e a nenhuma delas foi mandado Elias, senão a uma mulher viúva de Sarepta, do território de Sidônia. 27 Muitos leprosos havia em Israel no tempo do profeta Eliseu; e nenhum deles foi curado, senão o sírio Naamã”. 28 Todos os que estavam na sinagoga, ouvindo isto, encheram-se de ira. 29 Levantaram-se, lançaram-No fora da cidade, e conduziram-No até ao cume do monte sobre o qual estava edificada a cidade, para O precipitarem. 30 Mas, passando no meio deles, retirou-Se (Lc 4, 21-30).

IV Domingo do Tempo Comum
Comentário ao Evangelho

Aqueles que tiveram a dita incalculável de conviver mais tempo
com Jesus — seus conterrâneos de Nazaré — foram os primeiros
a rejeitá-Lo e a querer matá-Lo. Por que razão os profetas não
são aceitos em sua própria terra?

Por Mons. João S. Clá Dias, EP

Visita de Jesus à sua cidade

Essa visita, por assim dizer, oficial e mais ou menos demorada de Jesus a Nazaré, é narrada por Mateus e Marcos quase ao término do segundo ano da vida pública do Salvador (cf. Mc 6, 1-6; Mt 13, 54-58), ao contrário de Lucas, que a antecipa. De acordo com bons comentaristas, Lucas preferiu proceder desse modo por razões literárias. Entretanto, reconhece que a fama de Jesus havia se difundido por toda a Galileia e Ele ensinava nas sinagogas (cf. Lc 4, 14-15).

É digna de nota a hipótese levantada por alguns autores de peso sobre viagens anteriores realizadas por Jesus a essa localidade. Esta à qual nos referimos, porém, além de sua oficialidade, estava sendo feita em circunstâncias especiais. Quanto menor o lugarejo, mais forte o regionalismo. As notícias sobre o grande sucesso das pregações e milagres operados pelo novo profeta, surgido da pequena Nazaré, conduzia o povinho à euforia de ver um dos seus conterrâneos como figura de destaque em Israel. Afinal, um nazareno demonstrava o grande valor da cidadezinha, não só na Galileia, mas em toda a nação.

Atitude contraditória dos concidadãos

Por outro lado, esses sentimentos de ufania vinham pervadidos de ressentimentos (assim são as contradições produzidas pelo amor-próprio): por que tantos prodígios manifestados em Cafarnaum, e não em Nazaré? A impressão de discriminação lhes brotava de uma autoestima desequilibrada. Não conseguiam entender as razões pelas quais Jesus, tendo Se beneficiado da localidade para formar-Se, crescer e viver, a abandonasse para lançar a outras o melhor de seus frutos.

Quando o amor não é puro, paciente, prestativo, mas busca apenas seus interesses pessoais, guarda rancor e se irrita (ver a segunda leitura de hoje: I Cor 13, 1-13). Ademais, produz um tipo de cegueira incurável, enquanto o egoísmo não for extirpado. “Não havia lugar onde Jesus mais quisesse derramar seus divinos favores do que ali”, mas era indispensável a fundamental virtude da humildade para serem os habitantes de Nazaré objeto dos múltiplos dons do profeta taumaturgo.

O “batismo” da rejeição

Se, porém, Jesus sabia desde toda a eternidade que “nenhum profeta é bem recebido na sua terra”, por que desejou então retornar à aldeia de sua juventude? É que, além do batismo penitencial de João, buscava outro, o da rejeição… Esse é o terrível drama do verdadeiro apóstolo: ir aos seus, e os seus não o receberem (cf. Jo 1, 11).

Trata-se de um dos mais dolorosos estigmas, companheiro inseparável de tantos santos ao longo dos séculos, quer os do passado, quer também os do futuro até a vinda de Henoc e Elias, no fim dos tempos. A Santa Igreja, fundada por Cristo, se enriquece com os méritos daqueles que são desprezados por amor à justiça: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por amor da justiça, porque deles é o Reino dos Céus!” (Mt 5, 10). Em Nazaré, com Jesus, encontram eles o consolo e a sustentação no exemplo divino.

Reação repetida ao longo dos séculos

“Não é este o filho do carpinteiro?” Assim reagiriam diante de Deus feito Homem os mundanos de todos os tempos. Viver em função de um último fim que se cumpre exclusivamente nesta Terra conduz a leviandades perigosas e arriscadas no tocante à salvação. Os toldados horizontes dos nazarenos não ultrapassavam os estreitos limites da própria aldeia. O maravilhamento manifestado pela oratória do Divino Mestre havia se detido na forma, sem penetrar em sua substância. Se suas palavras eram “cheias de encanto”, só podiam confirmar a fama de seus milagres e tornavam secundária sua origem familiar. Pois Davi não era filho do camponês Isaí? E Moisés — o salvo das águas —, teve ele uma ancestralidade à altura da missão que lhe fora conferida?

Bem comenta esta passagem São João Crisóstomo: “Esses insensatos, admirando embora o poder de sua palavra, desprezam sua pessoa, por causa daquele que consideravam seu pai”. Por sua parte, diz São Cirilo: “Mas o fato de ser filho de José, como eles pensavam, impede de ser venerável e admirável? Não veem os milagres divinos, satanás vencido e os numerosos doentes curados de suas enfermidades?”

Incredulidade dos nazarenos

Jesus resume os sentimentos dos judeus presentes na sinagoga num provérbio muito comum daqueles tempos, até mesmo entre gregos e romanos. Era aplicado a todos quantos se empenhavam em dar aos outros os remédios de que eles mesmos necessitavam.

Essa impostação de espírito, como comenta Maldonado, tinha suas raízes na falta de fé e na ambição. Não acreditavam no poder de Jesus quanto aos milagres e, ao mesmo tempo, desejavam que sua cidade tivesse mais glória que as outras. Ora, sabemos pelos Evangelhos a fundamental importância da virtude da fé para a realização de milagres, como explica-nos São Mateus: “E não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles” (13, 58). Daí o fato de o Divino Mestre ter interpretado o fundo do pensamento deles através desse provérbio popular, como se dissessem: “Ouvimos dizer que, em Cafarnaum, curaste muitos; cura-Te também a Ti mesmo, quer dizer, faz isto igualmente em tua cidade, onde foste concebido e criado”.

Condições para serem operados os milagres

As Escrituras sempre foram tomadas como sendo a própria Palavra de Deus, naqueles tempos ainda mais do que hoje. Com esses dois exemplos — de Elias (I Rs 17, 8-24) e Eliseu (II Rs 5, 1-14) —, Jesus declara não ter havido lugar onde Ele fosse menos bem acolhido do que na aldeia onde vivera quase trinta anos de sua existência. Além disso, mais claramente externa a razão pela qual não realizou ali muitos milagres: porque eles padeciam da mesma incredulidade de seus ancestrais. Os milagres de Jesus não são privilégio de raça ou de parentesco, nem se obtêm por meio de imposição ou da força. Para consegui-los, é necessário humildade e muita fé.

Causa do ódio contra os profetas

Não é costume dos Evangelistas fazerem uso do exagero didático. Quando Lucas diz “todos”, significa a ausência de defensores e a unanimidade dos furiosos. O fato de não haver ali um só amigo para se unir ao Salvador e servir-Lhe de escudo prova, uma vez mais, a força e o poder do dinamismo do mal. Se algum admirador existiu naquela ocasião, ficou timidamente retraído e teve medo de se comprometer, como, aliás, sói acontecer com os bons, em circunstâncias análogas. Que jamais sejamos nós um desses covardes.

O cume do alto do qual queriam lançá-Lo, segundo o padre Andrés Fernández Truyols, SJ, “é um grande penhasco que se pode ver junto à igreja dos maronitas, mais acima da dos greco-católicos: forma parte do monte Djebel es-Sikh, e ao mesmo tempo se encontrava nas proximidades da cidade”.

É importante retermos esse gesto criminoso de deitarem mão sobre Jesus, com o intuito sanguinário de lançá-Lo daquelas alturas. Com propriedade comenta Beda: “São piores os judeus, sendo discípulos, que o diabo sendo mestre. Porque este diz: ‘Atira-te ao abismo’; mas aqueles tentam atirá-Lo de fato”.

Essa seria uma boa oportunidade para perguntar-lhes por qual dos benefícios recebidos queriam eles matar o Salvador. Se Jesus não tivesse natureza divina, teria provado um tanto do ódio satânico que mais tarde se manifestaria contra Ele, ao longo da Paixão.

Por que assim são tratados os profetas?

“O missionário ou o profeta será sempre alvo de crítica de dentro e de fora. Assim ocorreu com Cristo, assim com Paulo, etc. O profeta pertence à Igreja de seu tempo e, de outro lado, deve-se ao mundo que vai evangelizar. Esse duplo pertencer representa o ponto de partida para um amor sem fronteiras. Contudo, trata-se de uma posição muito incômoda. Não obstante, o profeta poderá realizar uma penetração insuspeitada no fundo das coisas. Os contrastes o purificam e o fazem cada vez mais semelhante a Jesus crucificado.

“O profeta é um mensageiro, um intérprete da palavra divina. Recebeu-a de Deus e ela é mais poderosa que o próprio profeta: ele não poderá calar. Cristo foi o maior dos profetas: e pelo Batismo todos participamos de seu dom profético. Profeta atualmente é o que julga o presente e o futuro à luz de Deus e se sente enviado por Deus para recordar aos homens seus deveres religiosos, sociais, familiares, civis. E o faz tomado de zelo ardente pela causa de Deus e de amor compassivo para com os homens. O profeta deve denunciar a opressão, a injustiça, o egoísmo, as guerras, a pornografia, etc. Deverá exortar e alentar”.

Por essa narração de São Lucas podemos compreender como Jesus sofreu a Paixão por livre e inteira vontade, conforme observam Beda e vários outros autores. Quando Ele quer, livra-Se de seus algozes, não só com maestria, mas também com grandeza. Aqui faz brilhar sua divindade; no Calvário, sua resignada misericórdia.

“Houve um verdadeiro milagre, um milagre de ordem moral, que consistia na vitória obtida pela vontade de Jesus sobre a de seus inimigos, reduzindo-os à impotência. A esta categoria de prodígios pertenceu também a expulsão dos vendedores do Templo”.

Aí está! O milagre imposto pelos nazarenos lhes foi concedido em superabundância, mas eles não o souberam interpretar. ♦️


Excertos da obra “O Inédito sobre os Evangelhos”. Vol. VI. Ano C.

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