Qual é a origem do culto aos santos?

A admiração pelo testemunho dos mártires levou os primeiros cristãos a venerar suas relíquias e a desejar ardentemente seguir seu exemplo.

Era uma tarde de festa no anfiteatro de Esmirna, por volta do ano 155 da Era Cristã. Enchia-o uma multidão sequiosa de sangue, na expectativa de assistir a um cruel espetáculo: o martírio de 12 cristãos. No momento aprazado, adentra o santo Bispo Policarpo, ancião de quase 90 anos, sobranceiro ao populacho.

Conduzido ao procônsul que presidia o evento, este lhe propôs um meio seguro de livrar-se dos suplícios e da morte: amaldiçoar o nome de Jesus. “Eu O sirvo há oitenta e seis anos, e Ele não me fez nenhum mal. Como poderia blasfemar o meu Rei que me salvou?”[1] — replicou Policarpo.

Vendo fracassadas as tentativas de levar à apostasia o santo varão, o magistrado vociferou:[2]

— Eu te farei queimar na fogueira, se não mudares de ideia.

— Tu me ameaças com um fogo que queima por um momento, e pouco depois se apaga, porque ignoras o fogo do julgamento futuro e do suplício eterno, reservado aos ímpios. Mas por que demoras? Faze já o que queres — respondeu o Bispo.

Em pouco tempo preparou-se a pira e ateou-se o fogo. Deu-se então um fato prodigioso: as labaredas formaram uma espécie de abóbada, como uma vela de navio inflada pelo vento, envolvendo o corpo do mártir. Lá estava ele, não como carne que queima, mas como um pão no forno, como ouro ou prata brilhando na fornalha. E difundiu-se pelo ar um perfume de incenso. Então, por ordem do magistrado, o carrasco matou Policarpo a golpes de punhal.

Para evitar que os cristãos levassem depois aquele corpo, digno de veneração, o centurião romano mandou queimá-lo. Mais tarde, entretanto, conseguiram os fiéis recolher seus ossos, “mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro”,[3] e os depositaram em lugar apropriado.

Uma forma de devoção que remonta ao primeiro século

O martírio de São Policarpo chegou até nós narrado numa carta escrita pouco depois de sua morte pela Igreja de Esmirna à de Filomélio. Ela é o mais antigo documento conhecido que testemunha o costume de venerar as relíquias de Santos na Igreja primitiva.  Mas o costume, em si, é mais antigo, e não falta quem opine ter ele se iniciado com Santo Estêvão.

Assim, por exemplo, meio século antes de São Policarpo, Santo Inácio de Antioquia recebia também a glória de ser condenado a morrer, desta vez, estraçalhado pelas feras.  Ambos os Bispos eram discípulos de São João Evangelista, e neles resplandecia de tal modo a santidade que, ainda em vida, despertavam incontidas manifestações de veneração dos fiéis.

A entrada de Inácio na arena do Coliseu de Roma foi acolhida com urros por uma multidão sedenta de sangue humano. Abriram-se as portas das jaulas e os famintos leões se lançaram  no  curto  espaço  que os  separava  do  homem  de  Deus, realizando seu desejo de ser triturado como o trigo pelas feras.[4]  Mas, quando o manto da noite cobriu o colossal anfiteatro e alguns cristãos entraram na arena, esperançosos de recolher ao menos um punhado de areia enriquecida por algumas gotas de sangue, encontraram intactos — oh alegria! — um fêmur e o coração do santo Bispo!

Comemorando o “dies natalis”

Os mártires são imitadores de Cristo que seguem as pegadas do Divino Mestre enfrentando por Ele o sofrimento e a morte. “Nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com seu Rei e Mestre”[5] — afirmam os fiéis de Esmirna ao pedirem ao procônsul o corpo de São Policarpo.

A admiração suscitada por estes heróis da Fé nas comunidades cristãs fazia com que os corações de muitos outros fiéis ardessem no desejo de morrer por Cristo. E o testemunho dos que já haviam sido martirizados inspirava-lhes um intenso desejo de amar a Deus até o holocausto de suas próprias vidas.

Não é, portanto, de se estranhar que a assembleia comemorasse seu dies natalis lendo com amor e veneração as narrações de seu martírio. Mais uma vez, são os fiéis de Esmirna que nos dão testemunho desse desejo: “Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro”.[6]

Encerrado o período das perseguições, a atenção dos cristãos voltou-se paulatinamente para os Santos não mártires. E a Santa Igreja promulgou leis ao longo dos séculos para organizar e disciplinar os atos exteriores desse culto, tal como o conhecemos em nossos dias.

A vantagem proporcionada por essas festas

Admiremos esse exemplo, e aprendamos com aqueles que nos precederam na Fé a amar os que foram capazes de derramar todo o seu sangue por amor a Cristo crucificado e a imitar o seu testemunho.

E para isso, nada melhor do que terminarmos estas linhas com um belo e esclarecedor trecho de Santo Agostinho:

“De nada aproveita aos mártires as solenes homenagens que lhes prestamos. Eles não têm necessidade alguma de nossas celebrações, pois gozam da alegria dos Anjos no Céu; e se participam de nossos piedosos regozijos, não é por se sentirem honrados, mas sim por se verem imitados por nós. Entretanto, se nossas homenagens não lhes aproveitam, elas nos são úteis. Mas se os honramos sem imitá-los, fazemos simplesmente uma adulação mentirosa. Por que, então, foram instituídas na Igreja de Cristo essas festas em louvor a eles? Para recordar aos membros reunidos de Cristo a necessidade de tomar por modelo esses mártires. É esta, sem dúvida, a vantagem proporcionada por essas festas. Não há outra”[7]


Fonte: Sacramento, Filipe Sanchez. Qual é a origem do culto aos santos? Revista Arautos do Evangelho, ano XIV, n. 158, fev. 2015, p. 24-25.

[1] MARTÍRIO DE SÃO POLICARPO, IX, 3. In: QUINTA, Manoel de (Ed.). Padres Apostólicos. 4.ed. São Paulo: Paulus, 2008, p.151.
[2] Cf. Idem, XI, 2.
[3] Idem, XVIII, 1, p.154.
[4]  Cf. SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos romanos, IV, 1. In: QUINTA, op. cit., p.105.
[5] MARTÍRIO DE SÃO POLICARPO, op. cit., XVII, 3, p.154.
[6] Idem, XVIII, 3, p.154.
[7] SANTO AGOSTINHO. Sermo CCCXXV, n. 1: ML 38, 1447.


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