XXII Domingo Do Tempo Comum
Por Mons. João S. Clá Dias, EP
Qual o comportamento à altura da vida divina?
Todos nós nascemos em pecado, como inimigos de Deus e objeto de sua ira (cf. a posse da visão beatífica, fomos Ef 2, 3), mas, chamados a obter ― ao lado dos Anjos ― elevados à vida divina. Vida tão superior à simplesmente natural, que a graça ― pela qual dela participamos ― pertence ao sexto plano da criação, muito acima dos minerais, dos vegetais, dos animais, dos homens e até mesmo dos Anjos.
É o próprio Deus quem toma a iniciativa de introduzi-la em nós pelo milagre extraordinário do Batismo que nos faz filhos d’Ele.
Quando o sacerdote derrama água sobre a nossa cabeça e diz “Eu te batizo em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”, deixamos de ser meros animais racionais para nos tornarmos entes divinos, com as virtudes da fé, esperança, caridade, prudência, justiça, fortaleza, temperança, e todos os dons do Espírito Santo infundidos na alma.
Na Liturgia do 22º Domingo do Tempo Comum encontramos estímulos, convites e esclarecimentos a respeito desta vida, para podermos merecer chegar à sua plenitude, ao passar do tempo à eternidade.
A vida sobrenatural: dom do “Pai das luzes”
Na segunda leitura (Tg 1, 17-18.21b-22.27) insiste São Tiago: “Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes” (1, 17a). Não há dádiva mais perfeita do que esta vida sobrenatural! Três são as criaturas que têm “até certo ponto infinita dignidade”, pois Deus não podia fazê-las mais excelentes: Jesus Cristo Homem, Maria Santíssima e a visão beatífica; e esta última já a possuímos em germe, neste mundo, através da graça.
O “Pai das luzes, no qual não há mudança nem sombra de variação” (Tg 1, 17b) porque é o Ser Absoluto, “de livre vontade nos gerou pela Palavra da verdade, a fim de sermos como que as primícias de suas criaturas” (Tg 1, 18). Sim, Ele nos gerou para a vida divina através do seu Verbo, que Se encarnou para que todos tenhamos vida em abundância (cf. Jo 10, 10). Por isso nos cabe receber com humildade a Palavra de Deus, que é capaz de salvar nossas almas (cf. Tg 1, 21b).
“Todavia” ― continua São Tiago ― “sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (1, 22); isto é, não basta conhecer a doutrina, é preciso respeitar as leis da vida sobrenatural, aprendendo a nos comportarmos de modo diferente, enfrentando as inclinações que brotam em nós devido ao pecado original, e vencendo-as para alcançar o prêmio prometido. Nisto consiste a prova que todos atravessamos, ao longo de nossa passagem pela Terra. Para mantermos a filiação divina é indispensável que desenvolvamos a vida da graça, cumprindo a Palavra. Para tal, adverte ainda São Tiago, é necessário, “não se deixar contaminar pelo mundo” (1, 27). O mundo, de fato, tem uma visualização carente de sobrenatural.
Por sua vez, o Salmo Responsorial é muito elucidativo, ao perguntar: “Senhor, quem morará em vossa casa e no vosso monte santo habitará?” (Sl 14, 1a). Como se dissesse: quem terá convívio convosco, ó Deus? Quem estará eternamente na vossa companhia? Quem gozará de vossa própria felicidade? Quem Vos verá face a face? Quem participará de vossos bens? E prossegue o salmista: “É aquele que caminha sem pecado e pratica a justiça fielmente” (Sl 14, 2), ou seja, aquele que ama a santidade e a põe em prática.
Para entrar na Terra Prometida, Israel deve abraçar o espírito sobrenatural
Na primeira leitura (Dt 4, 1-2.6-8) encontramos Moisés depois de ter realizado grandes maravilhas pelo poder de Deus. Ele livrara o povo hebreu da escravidão do Egito e, estendendo o seu cajado, dividira as águas do Mar Vermelho para que os israelitas o cruzassem até o outro lado, a pé enxuto (cf. Ex 14, 21-22). Em seguida, ante a tremenda ameaça das tropas egípcias que chegaram para os prender e levar de volta ― porque o Faraó se arrependera de os ter deixado partir ―, ele levantara novamente o seu braço e as águas se juntaram e deglutiram todo o exército inimigo (cf. Ex 14, 27-28).
Seguiram-se quarenta anos no deserto, durante os quais Moisés tirou água da pedra, Deus fez descer do céu o maná e mandou vir codornizes sobre o acampamento dos israelitas para os alimentar (cf. Ex 17, 1-6; 16, 4-31), bem como outros milagres estupendos. Quatro décadas de educação e aprendizagem para aquele povo, e também de castigo, por terem praticado o mal! Apesar dessas infidelidades, Deus não falta à sua promessa; pelo contrário, Ele a cumpre, entregando-lhes a Terra Prometida.
Chegada a hora de ali entrar, trata-se de o povo retribuir o bem já recebido, assim como aquele que ainda iria receber. No que consiste esta reciprocidade? Eis o ensinamento da leitura: em abraçar o espírito sobrenatural e observar a conduta moral e religiosa prescrita por Deus, com o intuito de estabelecer um relacionamento entre Ele e o povo. Os decretos que o profeta transmite manifestam a superioridade da nação eleita pelo Senhor “perante os povos” (Dt 4, 6) e são, segundo a linguagem do próprio Moisés, “justos” (Dt 4, 8). Sim, porque, como indica São Paulo, esta Lei era um educador para conduzir os hebreus até Nosso Senhor Jesus Cristo e serem justificados pela fé n’Ele (cf. Gal 3, 24).
Sem a Lei de Deus não há participação na vida divina
Ora, o verdadeiro espírito dos preceitos positivos da Lei Mosaica estava sintetizado no Decálogo, explicitação do comportamento que devemos ter para sermos semelhantes ao Criador. Estas simples leis resumem, de modo excelente, no que consiste o exercício da vida divina em nossas almas e nos torna adequados a ela.
Sem a guarda dos Dez Mandamentos não se participa da vida de Deus, pois, a partir do momento em que é cometido um pecado grave, pela transgressão de qualquer deles, perde-se a graça santificante e a inabitação da Santíssima Trindade na alma, voltando esta a ser escrava do demônio. “O pecado mortal é o inferno em potência. É, pois, como um desabamento instantâneo de nossa vida sobrenatural, um verdadeiro suicídio da alma para a vida da graça”.
Mas a natureza humana é profundamente lógica: quando o homem, arrastado por suas más inclinações, quer praticar o mal, antes mesmo de perpetrá-lo ele inventa uma racionalização para justificar seu ato. E, aos poucos, vai criando outra religião, com uma moral diversa, independente da Lei de Deus. Esta é a tendência que, sob a capa de fidelidade aos ensinamentos de Moisés, vemos retratada no Evangelho deste domingo e desmascarada por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Estejam os lábios de acordo com o coração!
Deus nos deu uma Lei eterna que gravou em nossa no Sinai nos entregou esta Lei escrita em tábuas de pedra e, por fim, a manifestou ainda visível e viva no alma; próprio Nosso Senhor Jesus Cristo, o Verbo de Deus que Se fez carne e habitou entre nós, “para dar testemunho da verdade” (Jo 18, 37), de modo que todos a conhecêssemos perfeitamente.
Entretanto, a partir do momento em que Adão e Eva desprezaram esta Lei, no Paraíso e, na hora da prova, não optaram pela virtude, deixando-se levar pelas atrações do demônio a ponto de cometerem o pecado, a tendência do homem é esquecer a Palavra e a Lei.
Ora, Deus quer de nós uma aceitação plena da Lei imutável e sempiterna, sendo “praticantes da Palavra e não meros ouvintes” (Tg 1, 22); Ele deseja que nosso íntimo esteja inteiramente de acordo com os lábios. Estes devem pronunciar aquilo que transborda do coração, conforme afirmou Nosso Senhor: “A boca fala daquilo de que o coração está cheio” (Lc 6, 45). É bem verdade que nós temos de traduzir em palavras, em atitudes, em gestos, em decoração de ambientes, em cerimonial e na própria pessoa, a doutrina que recebemos como herança. Mas para não cairmos no equívoco farisaico, é preciso primeiro progredir na vida espiritual, transformar a alma e alcançar a máxima união de vias e de cogitações com Nosso Senhor Jesus Cristo; o resto virá como consequência! É Ele quem, por sua graça, há de tornar puro o nosso interior, para que dele saia a bondade e brotem obras de justiça.
Se não tivermos meios de dar a Deus uma boa dádiva, à altura de nossos anseios, ofereçamos a Ele o pouco que possuímos, animados, porém, de excelente intenção, com toda a alma… Será como o óbolo da viúva elogiada por Jesus no Evangelho (cf. Mc 12, 41-44): ela lançou só duas moedinhas, quando, no fundo, queria entregar o seu coração!
Como é meu interior?
A Liturgia deste 22º Domingo do Tempo Comum resume-se no seguinte problema: onde está o meu coração? Será que meus lábios louvam a Deus, mas o interior está fora da Lei? Quantas vezes prefiro estar em consonância com o mundo e em oposição a Nosso Senhor? Eu coloco Deus no centro de minha vida ou me ponho a mim mesmo?
Todas as nossas ações se correlacionam com nosso destino eterno e com nossa vocação sobrenatural; por isso somos convidados a ser íntegros diante de Deus, amando-O, respeitando suas Leis com elevação de espírito, fervorosos em relação à prática da santidade. Peçamos a Maria Santíssima que nos obtenha graças extraordinárias para que nossos corações sejam chamejantes e os lábios transbordem do que canta e proclama o coração! ♦️
Excertos da obra “O Inédito sobre os Evangelhos”. Vol. IV. Ano B.
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