O prêmio e o castigo

Solenidade de Cristo Rei

Nosso Senhor descreve os últimos momentos da História do mundo, quando estaremos todos reunidos para o Juízo Final

Mons. João S. Clá Dias, EP

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: 31 “Quando o Filho do Homem vier em sua glória, acompanhado de todos os Anjos, então Se assentará em seu trono glorioso. 32 Todos os povos da Terra serão reunidos diante d’Ele, e Ele separará uns dos outros, assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. 33 E colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos à sua esquerda. 34 Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! 35 Pois Eu estava com fome e Me destes de comer; Eu estava com sede e Me destes de beber; Eu era estrangeiro e Me recebestes em casa; 36 Eu estava nu e Me vestistes; Eu estava doente e cuidastes de Mim; Eu estava na prisão e fostes Me visitar’. 37 Então os justos Lhe perguntarão: ‘Senhor, quando foi que Te vimos com fome e Te demos de comer? Com sede e Te demos de beber? 38Quando foi que Te vimos como estrangeiro e Te recebemos em casa, e sem roupa e Te vestimos? 39 Quando foi que Te vimos doente ou preso, e fomos Te visitar?’ 40 Então o Rei lhes responderá: ‘Em verdade Eu vos digo que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores de meus irmãos, foi a Mim que o fizestes!’

41Depois o Rei dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Afastai-vos de Mim, malditos! Ide para o fogo eterno, preparado para o diabo e para os seus anjos. 42 Pois Eu estava com fome e não Me destes de comer; Eu estava com sede e não Me destes de beber; 43 Eu era estrangeiro e não Me recebestes em casa; Eu estava nu e não Me vestistes; Eu estava doente e na prisão e não fostes Me visitar’. 44 E responderão também eles: ‘Senhor, quando foi que Te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou nu, doente ou preso, e não Te servimos?’ 45 Então o Rei lhes responderá: ‘Em verdade Eu vos digo, todas as vezes que não fizestes isso a um desses pequeninos, foi a Mim que não o fizestes!’ 46 Portanto, estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos irão para a vida eterna” (Mt 25, 31-46).

Nas leituras dos dias anteriores, Jesus insiste na necessidade de estarmos preparados para o momento de comparecer ante o tribunal divino. Nesse sentido é a parábola das virgens tolas e das prudentes, com a qual se inicia o capítulo 25 de São Mateus. O mesmo se diga da parábola dos talentos, que vem logo a seguir. Ambas ilustram o discurso escatológico iniciado no capítulo 24 do mesmo Evangelista, quando nosso Redentor adverte para os acontecimentos que marcarão o fim do mundo: “como o relâmpago parte do Oriente e ilumina até o Ocidente, assim será a volta do Filho do Homem” (Mt 24, 27).

Era natural que, na sequência desses ensinamentos, Ele passasse à descrição do último ato da História da humanidade: o Juízo Final.

Não nos deixa dúvida quanto à realização do Juízo Universal, verdade, aliás, anunciada outras vezes por Ele mesmo: “Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! […] No dia do Juízo, haverá menos rigor para Tiro e para Sidônia que para vós! No dia do Juízo, os ninivitas se levantarão com esta raça e a condenarão, porque fizeram penitência à voz de Jonas. Ora, aqui está quem é mais do que Jonas” (Mt 11, 21-22; 12, 41).

O tribunal

“Todos os povos da Terra serão reunidos diante dele”, diz o Senhor. Quer dizer, nenhum homem, por mais poderoso que tiver sido, poderá subtrair-se a essa convocação. Não haverá espaço para exceções, tergiversações, adiamentos. A ordem é peremptória.

Também os Anjos deverão comparecer, como afirma Jesus: “acompanhado de todos os Anjos”. Ora, se os homens é que serão julgados, qual a razão dessa presença angélica?

Segundo explica a Suma Teológica, o Juízo Final “terá de certo modo relação com os Anjos, na medida em que eles intervieram nos atos dos homens”. Assim, o principal papel das criaturas angélicas será o de servir de testemunhas.

No entanto, de alguma maneira os Anjos serão também julgados: “Não sabeis que julgaremos os Anjos?” (I Cor 6, 3), pergunta São Paulo. E São Pedro afirma o mesmo a respeito dos demônios: “Pois se Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os precipitou nos abismos tenebrosos do inferno onde os reserva para o julgamento” (II Pd 2, 4). Os Anjos de Deus terão um prêmio, que será a grande alegria por ver a salvação de seus protegidos, enquanto os demônios terão um acréscimo de tormento, ao “ver multiplicada a perdição dos que por eles foram induzidos ao mal”.

Separação dos julgados: o fim dos relativismos

Na vida nesta Terra, a alma humana, por uma espécie de instinto espiritual, procura incessantemente a verdade, o bem e o belo. Mesmo quando comete pecado, esses instintos espirituais continuam a atuar. Além disso, todo homem tem como que estampados na alma os Dez Mandamentos. Por tudo isso, ninguém consegue praticar o mal pelo mal, professar o erro pelo erro, admirar o horrendo pelo horrendo.

Assim sendo, se os pensamentos, desejos e atos de um indivíduo começam a fugir habitualmente das Leis de Deus, sente ele a necessidade imperiosa de os justificar, racionalizando-os, isto é, buscando para eles explicações racionais, por mais absurdas que estas sejam. E a saída consiste, em geral, em procurar uma conciliação entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o belo e o horrendo.

Tudo aquilo que antes era para ele de uma luminosidade cristalina, torna-se de uma indefinição nebulosa e pardacenta. E ele afunda no relativismo, funesto defeito moral, tão comum ao longo da História, causa de tantos erros doutrinários que afastaram da Igreja Católica e do caminho da virtude milhões e milhões de almas.

No Evangelho aqui comentado desaparece todo capricho e devaneio a respeito da conciliação entre esses valores irreconciliáveis. “Non datur tertius” — não há uma terceira solução possível no dia do Juízo. Nosso destino será o Céu ou o inferno. Será a mais fulgurante e universal manifestação do Absoluto na ordem da criação.

O julgamento

Uma interrogação que pode ter passado pelo espírito de vários leitores: a maior parte dos homens já terá sido julgada logo após sua morte ― excetuam-se aqueles que estiverem vi-vos, quando chegar a hora do fim do mundo ―; por que, então, passar de novo por um Juízo?

A Suma Teológica e o Catecismo Romano fazem compreender melhor o motivo desses dois tribunais. De fato, no juízo particular cada homem é julgado privadamente por Deus, permanecendo o seu foro íntimo, bem como todas as consequências de seus pecados, ocultos aos outros homens. Para a plena glorificação da justiça divina é indispensável que haja um outro Juízo, público e universal, no qual fiquem patentes aos olhos de todos a inocência dos bons e a torpeza dos maus.

Nenhum ato de virtude e nenhuma falta, por menores que sejam, serão omitidos. Assegura São Paulo que em Deus “temos a vida, o movimento e o ser” (At 17, 28), portanto, nada pode escapar a seu divino conhecimento e a seu absoluto julgamento, e, no dia do Juízo, “Deus fará prestar contas de tudo o que está oculto, todo ato, seja ele bom ou mau” (Ecl 12, 14).

O prêmio dos Bem-aventurados

A essência do prêmio será a visão beatífica, quer dizer, a contemplação de Deus face a face. Pela força da graça nos será possível contemplar a própria essência de Deus, em vez de apenas discerni-Lo por seus reflexos nas criaturas: “Hoje vemos como por um espelho, confusamente; mas então veremos face a face. Hoje conheço em parte; mas então conhecerei totalmente, como eu sou conhecido” (I Cor 13, 12).

Por nossa natureza, temos uma sede insaciável de felicidade, de um amor sem medida que nenhuma criatura conseguirá aplacar e só pode ser atendida pelo próprio Deus. O famoso teólogo padre Réginald Garrigou-Lagrange explica: “Nossa vontade é de uma profundidade infinita, no sentido de que só Deus, visto face a face, pode preenchê-la e atraí-la irresistivelmente”.

Após a morte, livre de tudo aquilo que a cercava na Terra, a alma tem uma avidez incoercível de voar para Deus, a fim de contemplá-Lo face a face, conforme escreve o mesmo Santo: “Tu nos fizeste para Ti, Senhor, e inquieto está o nosso coração enquanto em Ti não repousar”.

Além da visão de Deus, os Bem-aventurados receberão no Céu outros prêmios, desmesuradamente menores, mas mesmo assim valiosíssimos e incomparáveis com as coisas da Terra.

Em primeiro lugar, terão corpos gloriosos. Lemos na Primeira Epístola aos Coríntios: “semeado na corrupção, o corpo ressuscita incorruptível; semeado no desprezo, ressuscita glorioso; semeado na fraqueza, ressuscita vigoroso; semeado corpo animal, ressuscita corpo espiritual” (I Cor 15, 42-44).

Ademais, terão a inimaginável alegria de poderem contemplar Nosso Senhor Jesus Cristo, Nossa Senhora e os Santos, bem como as maravilhas do mundo já então renovado. Sim, pois o universo passará por uma inteira renovação, pela qual conservará apenas aquilo de mais belo que contiver, e será livre de toda matéria corruptível ou vulgar.

Como se não bastasse, os Bem-aventurados terão como morada o Céu Empíreo, a respeito do qual escreve Garrigou–Lagrange: “O Céu é o lugar e, melhor ainda, o estado da suprema bem-aventurança. Se Deus não tivesse criado nenhum corpo, mas apenas puros espíritos, o Céu não seria um lugar, porém, tão só o estado dos Anjos que gozam da posse de Deus. De fato, o Céu é também um lugar, no qual estão a humanidade de Jesus, desde a Ascensão, a Bem-Aventurada Virgem Maria, desde a Assunção, os Anjos e as almas dos Santos. Embora não possamos dizer com certeza onde se encontra esse lugar em relação ao conjunto do universo, a Revelação não permite duvidar de sua existência, nós vamos vê-lo”.

O castigo dos condenados

Lancemos, agora, nosso olhar para aquela porção da humanidade que deverá ouvir a terrível sentença… “afastai-vos de Mim, malditos!”

O próprio Criador rejeita, para sempre, seres que Ele criou. Que castigo espantoso! Trata-se da chamada pena de dano, palavra derivada do latim damnum, perda, pois esse tormento consiste na perda da posse de Deus, nosso fim último. Enquanto está na vida presente, a alma não consegue avaliar a imensidão dessa perda. Os bens sensíveis não param de atrair a atenção do homem; a todo momento, ele recebe notícias domésticas ou profissionais, ou dos fatos nacionais e internacionais; tem preocupações e necessidades de alimentação, asseio, saúde, lazer; entrega-se a prazeres; acaricia ambições e projetos para a carreira e para a família, e está cercado de parentes, amigos, enfim, de tudo o que constitui seu mundo.

Mas quando a alma se separa do corpo, todo esse ruído cessa de repente, todos os interesses que a prendem na Terra perdem seu valor. Ela se vê completamente só, e “toma, então, consciência de sua profundidade sem medida, que só Deus, visto face a face, pode satisfazer; e vê também que esse vazio jamais será preenchido”. Se tiver morrido em pecado, “ela está na noite, no vazio, no exílio, expulsa, repudiada, maldita; isto é justiça”.

Por ser infinitamente verdadeiro, bom e belo, Deus é infinitamente atraente. Os condenados, por sua natureza, são atraídos por essa Beleza Suprema, única capaz de satisfazer sua necessidade insaciável de amor. Entretanto, Deus os repele por completo, e eles, em delírios de furor infernal, não fazem senão detestá-Lo, maldizê-Lo, blasfemar contra Ele. É o tormento de um coração apaixonado e roído de ódio. É o sofrimento atroz do amor contrariado, desprezado, transformado em fúria, posto continuamente num extremo de ódio e desespero.

Comparada com o horror da pena de dano, a pena dos sentidos pode até parecer suave… Contudo, por si só é também tremenda! O agente desse castigo é o fogo: “Quem de nós poderá permanecer perto deste fogo devorador?” (Is 33, 14), pergunta com pavor o profeta Isaías. O inferno é um abismo de fogo, um “tanque ardente de fogo e enxofre” (Ap 21, 8). E não nos iludamos, pensando que a expressão “fogo eterno” seja apenas uma metáfora, uma imagem para se referir ao remorso da consciência. É doutrina universalmente aceita na Igreja, baseada na Sagrada Escritura e no consenso dos Padres, que se trata de um fogo real, eterno e inextinguível, que tortura os espíritos e queimará os corpos sem os destruir.

Uma resolução inadiável

Ao nos revelar esse mistério, Jesus demonstra sua infinita bondade para conosco. Seu objetivo, ao nos alertar de maneira tão veemente, é evitar para nós a desgraça eterna, e levar-nos para junto d’Ele, na felicidade do Paraíso.

Profundamente gratos, tomemos sem demora a firme resolução de Lhe rogar as graças necessárias para reprimirmos nossas más paixões, evitar o pecado e praticar a virtude. De tal modo que possamos ouvir de seus lábios adoráveis este celestial convite: “Vinde benditos de meu Pai! Recebei como herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo!”.


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