A sabedoria humana contra a Sabedoria divina!

XXX Domingo do Tempo Comum

A questão apresentada pelo fariseu a Jesus sai de lábios trabalhados pela sabedoria humana para ouvidos plenos da Sabedoria divina. O doutor da Lei não pergunta para conhecer a verdade, mas sim para tentá-Lo. A resposta de Jesus é simples e ao mesmo tempo grandiosa: o amor a Deus!

Mons. João S. Clá Dias, EP

Naquele tempo, 34 os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo, 35 e um deles perguntou a Jesus, para experimentá–Lo: 36 “Mestre, qual é o maior Mandamento da Lei?” 37 Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!’ 38 Esse é o maior e o primeiro Mandamento. 39 O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. 40 Toda a Lei e os profetas dependem desses dois Mandamentos” (Mt 22, 34-40).

O amor é a plenitude da Lei

Tramas dos fariseus contra Jesus

Naquele tempo, 34 os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito
calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo, 35 e um deles
perguntou a Jesus, para experimentá-Lo: 36 “Mestre, qual é o
maior Mandamento da Lei?”

O Evangelho de hoje se insere num encadeamento de fatos que se inicia com a pregação de Jesus por meio da parábola dos vinhateiros homicidas (cf. Mt 21, 33-43), que levou os adversários de Cristo — na sua totalidade, segundo São Marcos, ou somente os fariseus, de acordo com São Mateus — a se exacerbarem em cólera, pois interpretaram-na como dirigida a eles (cf. Mt 21, 45) e, por este motivo, reuniram-se em conselho (cf. Mt 22, 15). Nessa linha de acontecimentos, São Marcos é muito explícito ao afirmar: “Procuravam prendê-Lo, mas temiam o povo […]. E deixando-O, retiraram-se. Enviaram–Lhe alguns fariseus e herodianos, para que O apanhassem em alguma palavra” (Mc 12, 12-13).

Na realidade, se havia criado um verdadeiro impasse. De um lado, estava um grande número de pessoas simples do povo, arrebatadas pelas palavras e milagres de Jesus, e que não O abandonavam; de outro, os chefes que desejavam silenciá-Lo em vida, ou causando- Lhe a morte. Impossível se tornava para estes executarem tal crime enquanto Ele estivesse cercado pelas multidões. Também a noite não lhes facilitava a tarefa, pois o Divino Mestre abraçava o isolamento sem que ninguém soubesse para onde Se retirava. Tornava-se indispensável para estes filhos de Belial manobrar a opinião pública a fim de separar os entusiastas d’Aquele que julgavam ser João Batista ressuscitado, ou talvez Elias, ou um grande profeta.

A pergunta do doutor da Lei

Pertence a essa sequência de investidas a famosa resposta de Jesus: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), como também a explicação sapiencial com a qual fizera calar os saduceus (cf. Mt 22, 29-32), confundindo-os pela grosseira questão relacionada com a ressurreição dos mortos. É na esteira dessa polêmica que se acrescenta a pergunta do tal doutor da Lei.

Não é inteiramente claro se esse homem propõe a questão ao Mestre por autêntica curiosidade ou por desejo de aparecer como sábio, ou até mesmo por fazer parte do complô contra Ele. Os três sinópticos relatam o episódio em sua integridade. São Mateus opta pela hipótese de ser ele cúmplice e malicioso. São Marcos o vê como um homem sincero, pelo fato de Nosso Senhor ter afirmado não estar ele longe do Reino do Céu (cf. Mc 12, 34). Não seria descabida, contudo, a suposição de somarem-se todas essas interpretações, pois era possível tratar-se de um fariseu de boa-fé, trabalhado pela maldade dos outros fariseus, a fim de lançá-lo sobre o Messias e colocá-Lo em situação difícil.

Sobre o personagem em foco, afirma o famoso Maldonado: “Diz-nos Lucas que, quando Cristo acabou de refutar os saduceus, um escriba exclamou: ‘Mestre, falaste bem. E já não se atreviam a fazer-Lhe pergunta alguma’ (Lc 20, 39-40). Isso deve ser entendido com relação aos saduceus, pois precisamente por esta resposta, como indica Mateus, os escribas e fariseus tomaram ocasião de tentá-Lo outra vez, para mostrarem-se mais sábios que os saduceus. Aquele que aqui Mateus chama de doutor da Lei, Marcos diz que era escriba (cf. Mc 12, 28); por onde se vê que, embora os escribas tivessem diversos ofícios, em algumas ocasiões podia-se ser escriba e fariseu ao mesmo tempo. Pois esse doutor da Lei era fariseu, segundo se vê pelo versículo 34”.

Já o Cardeal Isidro Gomá y Tomás, assim avaliou esta passagem: “Os fariseus se mancomunaram quando ouviram dizer que Ele havia reduzido ao silêncio os saduceus, fechando-lhes o caminho a qualquer réplica — não sem uma íntima satisfação de sua parte, pois tinham os saduceus como seus mais formidáveis adversários doutrinários. A derrota dos adversários deveria tê-los tornado mais cautos, mas a inveja e a malevolência são mães da audácia inescrupulosa. Um deles, então — doutor da Lei, do partido dos fariseus, que tinha ouvido o debate e visto como Nosso Senhor respondera bem —, foi o escolhido para representá-los e propor a Jesus a questão que haviam tramado em seus conciliábulos. Aproximou-se e Lhe fez a pergunta, tentando-O, com má intenção, embora a resposta de Jesus o tenha impressionado, elogiando Jesus e, por sua vez, merecendo o elogio do Senhor”.

Lei humana e Lei divina

Conforme nos ensina o Doutor Angélico, sabemos ser a lei, em si, “uma ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade”. Evidentemente, esta é uma definição que tem em vista a natureza humana no seu relacionamento social. No entanto, continua o próprio São Tomás, “além da lei natural e da lei humana, foi necessário, para direção da vida humana, ter a Lei divina”. E entre quatro claríssimos argumentos a favor de sua tese, ele demonstra essa necessidade em função de um fim ao qual se ordena o homem, que é superior à faculdade humana, ou seja, sua bem-aventurança eterna.

E afirma ainda: “porque, em razão da incerteza do juízo humano, principalmente sobre as coisas contingentes e particulares, aconteceu haver a respeito dos diversos atos humanos juízos diversos, dos quais também procedem leis diversas e contrárias. Para que o homem, pois, sem qualquer dúvida possa conhecer o que lhe cabe agir e o que evitar, foi necessário que, nos atos próprios, ele fosse dirigido por lei divinamente dada, a respeito da qual consta que não pode errar”.

Todavia, não devemos nos esquecer que o Céu nos torna iluminado o caminho a seguir, mas o auxílio para abraçá-lo nos vem da graça: “O princípio que move exteriormente ao bem é Deus, que nos instrui pela Lei e ajuda pela graça”. Hoje, pela força do Espírito Santo, temos muito explícita essa doutrina, mas deste modo não se apresentava para os doutores da Lei e nem mesmo para os fariseus. Os rabinos viviam emaranhados em complicadas casuísticas de 613 preceitos. Destes, 365 ― à imagem dos dias do ano ― eram negativos, e 248 ― à semelhança numérica dos ossos do corpo humano ― eram positivos. Dos primeiros, alguns eram tão graves que só podiam ser reparados com a pena capital, e os outros, por uma penitência proporcionada. A miríade de outras obrigações menores proporcionava-lhes discussões intermináveis em suas escolas. Por esses motivos, não era fácil formular com toda segurança uma resposta categórica e clara a tais questões, sobretudo se fosse para não colidir com opiniões subjetivas destes ou daqueles rabinos.

Sabedoria de Cristo e insuficiência dos que O invejavam

37 Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu
coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento!’
38 Esse é o maior e o primeiro Mandamento”.

A pergunta que foi dirigida a Jesus sai de lábios talvez trabalhados pela sabedoria humana, para ouvidos plenos da Sabedoria divina. O doutor da Lei não pergunta para conhecer a verdade, e sim para tentar a Deus. O Evangelho é pervadido dessa polêmica entre a Sabedoria de Cristo e a pobre insuficiência dos que O invejavam. Num determinado momento, será um problema judaico de teor religioso-moral, o da adúltera apanhada em flagrante (cf. Jo 8, 3-11); em outra ocasião virão os saduceus com o episódio dos sete irmãos que se casaram sucessivamente com a viúva do primeiro deles (cf. Mt 22, 23-32); ou então o famoso dilema do pagamento do tributo (cf. Mt 22, 15-22); e assim por diante.

Está diante deles, porém, um Homem-Deus que penetra o mais fundo dos corações, como o pôde comprovar Natanael que chegou a concluir: “Tu és o Filho de Deus, Tu és o Rei de Israel” (Jo 1, 49). Na mesma linha, a samaritana, tomada de surpresa pelo conhecimento minucioso de sua vida, revelado por Jesus, não hesitou em considerá-Lo um grande profeta (cf. Jo 4, 19). Ou então, Cristo deixa transparecer como sabia qual era o pensamento dos Apóstolos, quando ardia em seus corações o desejo de serem os maiores no Reino d’Ele (cf. Lc 9, 46-48). E ainda muito mais.

No preceito da caridade estão concernidas as demais virtudes

Por isso, a resposta de Jesus é simples e ao mesmo tempo grandiosa: o amor a Deus! São Tomás de Aquino nos ensina que o fim da vida espiritual é a união com Deus, a qual se torna efetiva pela caridade, ou seja, pelo amor a Ele. Logo, toda vida espiritual deve estar submetida a este último fim. Daí afirmar o Apóstolo: “Esta recomendação só visa estabelecer a caridade, nascida de um coração puro, de uma boa consciência e de uma fé sincera” (I Tim 1, 5).

Em vista disso, todas as virtudes se conjugam para purificar a caridade dos males e das desordens oriundas das más inclinações. Ademais, ela auxilia cada um a proceder com boa consciência e, desta forma, agir com fé reta e sincera, no relacionamento com Deus. Por conseguinte, no preceito da caridade encontram-se concernidas as demais virtudes.

“Amarás o Senhor teu Deus com todas as tuas forças”

Sobre esta passagem, comenta Maldonado, “Marcos diz primeiro: ‘Ouve, Israel, o Senhor teu Deus é um Deus único’ (Mc 12, 29). […] Os dois Mandamentos estão na mesma passagem, em Moisés. O primeiro é que creiamos num só Deus; o segundo, que O amemos de todo o coração, pois é claro que quem cresse em muitos dividiria o amor e não amaria nenhum com todo o seu coração, porque ninguém pode amar a dois senhores (cf. Mt 6, 24).

“‘De todo o teu coração e com toda a tua alma’. Alguns intérpretes fazem aqui distinções por demais sutis, a meu juízo. Parece-me que isso significa que amemos a Deus o quanto possamos e empreguemos em seu serviço o que possuímos. Assim o ensina Santo Agostinho: ‘Ao dizer com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente, não deixa parte alguma do homem livre e desocupada para amar outra coisa segundo o seu capricho; mas qualquer objeto que se nos apresente digno de amor deve ser arrastado pela corrente de nosso único afeto’.

“Finalmente, o que em diversas passagens ou com diferentes palavras se diz no Deuteronômio (6, 5), aqui está resumido numa só, consignada por Lucas: ‘Amarás o Senhor teu Deus com todas as tuas forças’ (Lc 10, 27)”.

Alma e espírito

Pareceria, à primeira vista, haver uma certa redundância didática na repetição — “de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito” — contida neste versículo, segundo a tradução do texto grego. Não obstante, explicam-nos certos autores a diferença existente entre alma e espírito e, com isso podemos compreender a razão mais profunda da afirmação de Nosso Senhor.

“Melhor se deve entender por ‘alma’ a parte inferior da alma, a que olha a vida natural. E por ‘espírito’ a parte superior, a que considera as coisas espirituais e divinas. A alma indica, pois, a natureza da alma. O espírito, a mente imbuída da graça e o impulso comunicado à mente pelo Espírito Santo. Portanto, a alma é natural e considera as coisas naturais. O espírito, as coisas sobrenaturais e celestes. Assim, pois, o espírito significa: em primeiro lugar, a mente; em segundo lugar, o veemente impulso da mente e o fervor do gozo e do júbilo; em terceiro lugar, o fato de que esse impulso da mente é comunicado e infundido pelo próprio Espírito Santo”.

Deste modo, a “alma”, subjetivamente falando — em si mesma —, é una e simples. O que varia é o objeto sobre o qual ela atuará. Ora, o Divino Mestre nos recomenda que até na própria vida natural tudo façamos em função de Deus que nos criou.

Quanto ao “espírito”, seguindo a linguagem da Escritura, é movimento do ânimo, impulso, etc. É nesse sentido que poderá haver um bom ou um mau espírito: “Não sabeis de que espírito sois animados” (Lc 9, 55), disse Jesus aos Apóstolos irmãos, João e Tiago, que desejavam, por pura vingança, mandar descer fogo do Céu para consumir as cidades que lhes negavam hospedagem. Neles não havia um espírito sobrenatural, mas puramente humano, de cólera má e vingança, contrário ao espírito d’Aquele que viera para salvar e não para perder.

O homem há de viver somente para amar a Deus

A expressão “de todo o teu coração” encontra belíssima explicação em São Gregório Magno: “O que a morte faz nos sentidos do corpo, o amor faz nas concupiscências da alma. Alguns amam de tal maneira a Deus, que desprezam tudo quanto é sensível; e enquanto em sua intenção miram o eterno, fazem-se insensíveis para tudo quanto é temporal. Pois nestes o amor é forte como a morte; porque assim como a morte mata todos os sentidos exteriores do corpo e o priva de sua própria e natural apetência, assim também o amor em tais pessoas as força a menosprezar todo desejo terreno, tendo a alma ocupada em outra coisa à qual atende. A estes, mortos e vivos, dizia o Apóstolo: ‘Estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus’ (Col 3, 3)”.

Os dois principais Mandamentos

“Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todas as tuas forças” (Dt 6, 4-5). Esta era a determinação de Deus, transmitida ao povo eleito pela voz e pluma de Moisés. Os doutores da Lei bem a conheciam, ou seja, era uma obrigação religiosa que esse amor a Deus penetrasse toda atividade consciente daquele povo e fosse tomado como “o maior e o primeiro Mandamento”, por sua alta dignidade e por pervadir toda a atividade do homem, sobretudo no cumprimento de seus deveres e obrigações para com Deus.

39 “O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’”.

Ou seja, devemos ter por nosso próximo a mesma benevolência, estima e amor que esperamos os outros tenham por nós, e um respeito proporcional ao desígnio de Deus para com cada um. Falar ao próximo, ou sobre ele, como desejamos que o façam conosco; esconder e escusar suas faltas; sofrer suas imperfeições, debilidades e defeitos; louvar tudo quanto nele deve ser elogiado; defender seus interesses e servi-lo com afeto, exatamente como ansiamos que procedam conosco, e sempre por amor a Deus: eis a verdadeira prática da inocência e da santidade. E é por isso que diz Nosso Senhor:

40 “Toda a Lei e os profetas dependem desses dois Mandamentos”.

A Revelação — entre outros objetivos — tem em vista colocar à disposição dos homens um claro compêndio de doutrina e comportamento de ordem moral, através da Lei e da sabedoria manifestada por Deus aos seus profetas. De fato, o fundamento e a substância de todo esse tesouro estão contidos nesses dois preceitos, tal qual demonstraria mais tarde São Paulo, afirmando que a finalidade da Lei é o amor e é este “o pleno cumprimento da Lei” (Rm 13, 10).

Maria, insuperável exemplo de amor

Maria Santíssima é para toda a humanidade — e até mesmo para os próprios Anjos — um insuperável exemplo de perfeição deste amor a Deus e ao próximo que nos é recomendado por seu Divino Filho, no Evangelho de hoje. Toda a sua existência foi penetrada de puríssimo e chamejante amor. Ela, mais do que qualquer outra criatura, viveu sempre de costas para o mundo e para tudo o que não era ligado a Deus.

Sua vida a cada instante esteve escondida em Deus, e, portanto, muitíssimo mais que o Apóstolo, poderia Ela ter dito, desde o primeiro instante de sua concepção: “Eu vivo, mas já não sou eu; é Cristo que vive em mim” (Gal 2, 20).

Que Nossa Senhora do Divino Amor obtenha a plenitude da prática desses dois preceitos para todos aqueles e aquelas que contemplarem o Evangelho deste 30º Domingo do Tempo Comum.


O inédito sobre os Evangelhos. Comentários aos Evangelhos dominicais. Ano A. Vol. II.


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