As duas asas da santidade

Naquele tempo, 28b um mestre da Lei aproximou-se de Jesus e perguntou: “Qual é o primeiro de todos os Mandamentos?” 29 Jesus respondeu: “O primeiro é este: Ouve, ó Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. 30 Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e com toda a tua força! 31 O segundo Mandamento é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo! Não existe outro Mandamento maior do que estes”. 32 O mestre da Lei disse a Jesus: “Muito bem, Mestre! Na verdade, é como disseste: Ele é o único Deus e não existe outro além d’Ele. 33 Amá-Lo de todo o coração, de toda a mente, e com toda a força, e amar o próximo como a si mesmo é melhor do que todos os holocaustos e sacrifícios”. 34 Jesus viu que ele tinha respondido com inteligência, e disse: “Tu não estás longe do Reino de Deus”. E ninguém mais tinha coragem de fazer perguntas a Jesus (Mc 12, 28b-34).

XXXI Domingo Do Tempo Comum
Comentário ao Evangelho

O que é mais importante: amar a Deus ou conhecê-Lo?
A inteligência basta para nos salvar? Ou, pelo contrário,
o amor exclui a aplicação da inteligência?

Por Mons. João S. Clá Dias, EP

Criados para amar

O Santo Cura d’ Ars, apresentado pela Igreja como modelo dos sacerdotes, retornando em certa ocasião do povoado francês de Savigneux, começou a chorar… Algum tempo depois, revelou ele num sermão o motivo do seu pranto: “Eu voltava de Savigneux. Os passarinhos cantavam no bosque, e eu me pus a chorar. Pobres animaizinhos, pensava eu, Deus vos criou para cantar e vós cantais… O homem que foi feito para amar a Deus não O ama!”.

Grande parte da vida de São João Batista Maria Vianney transcorreu no século XIX, cujas circunstâncias históricas tornam compreensível a sua tristeza. Mas se ele estivesse hoje entre nós, talvez não conseguisse enxugar uma lágrima sem derramar outra, porque, muito mais que naquela época, os homens de nossos dias não amam a Deus. Entretanto, nisto consiste o Primeiro Mandamento, o qual resume todos os demais, como Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensina no 31º Domingo do Tempo Comum.

O Primeiro Mandamento

Jesus Cristo propões de forma muito direta e amável logo de início o Primeiro Mandamento, tal como era entendido pelo povo judeu, ou seja, um ponto pacífico e incontestável: Deus deve ser amado sobre todas as coisas.

Trata-se de um preceito entregue no Monte Sinai a Moisés, quem o transmitiu ao povo, como narra a primeira leitura (Dt 6, 2-6) deste domingo; sua origem, porém, é eterna, pois existe no seio da Santíssima Trindade, desde antes da criação do mundo. O Pai e o Filho, ao Se contemplarem mutuamente, amam-Se com um amor tão rico e tão fecundo que d’Eles procede uma Terceira Pessoa, igual a ambos: o Espírito Santo. Pela benevolência divina, esta Lei foi ampliada, abarcando não só os passarinhos que, cantando, comoveram o Cura d’Ars, mas também a nós, homens. “Amamos, porque Deus nos amou primeiro” (I Jo 4, 19). Sim, nossa caridade não é mais que uma restituição pelos favores sem conta que de sua bondade recebemos.

Como Criador, Ele nos deu o ser, nos mantém e nos manterá para sempre; como Redentor, nos salvou, encarnando-Se e sofrendo os tormentos da Paixão; como Pai, quis introduzir em nós a vida divina, “para que sejamos chamados filhos de Deus” (I Jo 3, 1). Ele é a nossa bem-aventurança! O Bem por excelência, o Bem substancial, o Bem em essência é Deus. É, portanto, na adesão total a Ele, pela prática deste Mandamento — e não nos gozos terrenos e fragmentários — que encontramos a plena felicidade.

Um “único Senhor”

Se Deus é “o único Senhor”, não nos é permitido ter outro além d’Ele. Sem embargo, quem se apega a uma criatura ― seja ela uma caneta, um travesseiro, uma pessoa… ― constitui um outro senhor que não o Deus verdadeiro, “pois o homem é feito escravo daquele que o venceu” (II Pd 2, 19). Isto representa uma falta contra o Primeiro Mandamento da Lei de Deus a ser declinada no confessionário. De fato, tal preceito viola-se com mais facilidade do que se imagina: basta amar algo com maior intensidade do que a Deus! Quantos sabem a fundo o que é amar a Deus sobre todas as coisas? Não existe atividade humana que possa ser realizada sem visar esta Lei.

“De todo o teu coração, de toda a tua alma”

Afirma São João da Cruz que “Deus não infunde sua graça e seu amor senão de acordo com a vontade e o amor da alma”. Por isso é preciso amá-Lo de todo o coração ― e não apenas com uma parcela! ―, colocando-O no cerne de nossas atenções, de nosso fervor, de nosso entusiasmo e de nossas preocupações. “A expressão ‘de todo’ não admite nenhuma divisão em partes. Aquilo que de teu amor empregares nas coisas inferiores é o que te faltará com relação ao ‘todo’”, comenta São Basílio Magno.

Na linguagem corrente o coração simboliza o amor. Dentre os órgãos humanos ele é o mais sensível às emoções e constitui a fonte de onde brota a caridade. O Apóstolo de Roma, São Filipe Néri, certa ocasião em que rezava percebeu ser penetrado por uma esfera de fogo que lhe produziu no peito uma proeminência do tamanho de um punho, a qual se manteve no restante de sua vida e, segundo revelaria sua autópsia, partiu-lhe duas costelas. Seu coração foi invadido por um amor a Deus de tal modo impetuoso que, com frequência, o Santo era obrigado a se descobrir para não ser consumido pelo ardor que o abrasava, receando morrer de gozo. Muitos contemporâneos atestam ter notado este calor e até ouvido as fortes palpitações que dele partiam. Tão particular dom místico é bem o sinal do arrebatado amor que todo cristão há de abrigar em seu coração. Tal amor deve ser ao mesmo tempo afetivo, ou seja, um ato da vontade que tende a Deus de maneira direta e imediata, e efetivo, refletindo-se no exercício das virtudes cristãs e na obediência aos Mandamentos, como ensinou o Divino Mestre: “Se alguém Me ama, guardará a minha palavra” (Jo 14, 23).

Em sentido oposto, São João Evangelista é categórico ao declarar: “Se alguém ama o mundo, não está nele o amor do Pai” (I Jo 2, 15). Por conseguinte, amar “de todo o coração” significa desprender-se de qualquer apreço egoísta e ter as intenções voltadas com exclusividade para Deus, fazendo tudo por Ele e para Ele. Assim será o nosso amor no Céu, onde veremos a Deus face a face e estaremos absortos em sua infinita grandeza.

Como amá-Lo, ainda, de toda a alma? Sabemos que a alma possui várias faculdades — tais como inteligência, vontade, memória — com as quais podemos nos dirigir a Deus. Para praticar a caridade é indispensável manter nossa alma sempre em estado de graça, afastando-nos daquilo que possa nos induzir a romper com Deus, isto é, permanecendo vigilantes, a fim de evitar as ocasiões de pecado. Precisamos, ademais, criar ao nosso redor um clima sobrenatural propício a que estas potências, divinizadas pelas virtudes e pelos dons do Espírito Santo, se desenvolvam e nos unamos cada vez mais a Deus.

De todo o teu entendimento e com toda a tua força

São Tomás de Aquino explica que o entendimento é a potência que nos faculta o conhecimento da verdade. Ora, sendo Deus a Verdade Absoluta, a finalidade do entendimento é conhecer a Deus tanto quanto seja possível neste mundo, com vistas à eternidade, conforme a afirmação de Nosso Senhor: “a vida eterna consiste em que conheçam a Ti, um só Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo que enviaste” (Jo 17, 3).

Por este prisma, a fé e o entendimento se harmonizam sem qualquer dicotomia.

Enquanto a inteligência dá o sustento racional para aderir ao objeto da fé, esta sublima aquela, fazendo-a voar como uma águia. Deste modo, a razão iluminada pela virtude da fé é um instrumento para crescermos na caridade e nos prepararmos para contemplar a Deus em sua própria luz no Céu, onde a fé se mudará em visão. Difícil será encontrar um melhor modelo disto do que o mesmo Doutor Angélico. Sem nunca se ensoberbecer, ele empregou sua inteligência ― talvez a mais luminosa que os séculos contemplaram ― na constante procura daquela Verdade em essência, fim único de sua vasta obra, merecendo de um Papa o seguinte elogio: “sua doutrina não pôde existir sem um milagre”. E essa genialidade intelectual não lhe foi obstáculo para conservar íntegra a inocência batismal, a ponto de o sacerdote que o atendeu em Confissão geral no leito de morte declarar tê-lo achado “tão puro quanto um menino de cinco anos”.

E qual é a força com que nos é exigido amar? A resposta nos é dada pelo Divino Redentor: “Como o Pai Me ama, assim também Eu Vos amo” (Jo 15, 9). Se Ele nos amou até o extremo (cf. Jo 13, 1) e esta é a medida de seu amor, reciprocamente o nosso deve ser sem medida, como ensina São Bernardo. O amor autêntico e puro existe quando aquele que ama retribui na proporção do amor recebido. Não nos basta alcançar um determinado grau de caridade e nele permanecermos estagnados; nossa meta há de ser a indicada por São Paulo: “que a vossa caridade se enriqueça cada vez mais” (Fl 1, 9).

A primazia do amor a Deus

Apesar de sua importância, este Mandamento costuma ser silenciado e relegado ao esquecimento. Propaga-se e difunde-se a ideia de que o preceito mais excelso e superior a todos é o amor ao próximo… Contudo, o do amor a Deus é, sem dúvida, o mais elevado, e os outros decorrem dele.

Por isso, é mister construir a nossa vida em função dele, cuidando de que os nossos afazeres nunca se sobreponham ao amor a Deus, mas nos auxiliem a melhor servir e louvar Aquele que nos redimiu, por nós derramando seu Sangue. Qualquer esforço, portanto, que não esteja dominado por este propósito, mesmo no campo do apostolado, será vão. Santo Antônio Maria Claret10 comparava o amor a Deus com a pólvora que impulsiona a bala de um fuzil para atingir seu objetivo. Sem esta, inútil é o projétil. Também, pouco ou nenhum fruto terão doutas palavras se não saírem de um coração abrasado. “No entardecer desta vida” ― diz São João da Cruz ― “sereis julgados segundo o amor”.

Com efeito, no dia do Juízo o Senhor nos perguntará: “O que amaste? Se foi a Mim, o meu Reino te está reservado; se o contrário de Mim, espera-te o inferno”. Em suma, tudo se reduz à caridade. Desde que a pratiquemos com perfeição, ou pelo menos, a despeito de nossas misérias, haja empenho de nossa parte, Deus nos tratará com especial benevolência.

Conhecer ou amar?

São Tomás demonstra que a inteligência e avontade têm movimentos contrários: enquanto a primeira traz a si o objeto conhecido, a segunda voa rumo à coisa amada. Ao entendermos algo inferior a nós mesmos, conferimos-lhe um valor maior do que na realidade tem. Por exemplo, quando analisamos uma joaninha e notamos as relações existentes entre ela, a ordem do universo e Deus, e desenvolvemos uma filosofia a respeito dela, atribuindo-lhe qualidades que, absolutamente falando, talvez não possua, a joaninha se enriquece em nossa mente.

Em sentido oposto, ao tentar compreender o que, de si, é superior a nós — um santo varão, um personagem repleto de sabedoria… —, acabamos por diminuí-lo, de maneira a caber em nosso intelecto. Como a vontade, por sua vez, realiza a trajetória inversa e se inclina até o objeto tal qual ele é, tratando-se de algo menor do que nós, ela se empobrece; porém, face ao que é mais elevado, ela se dilata. Sobretudo se amamos a Nossa Senhora e a Deus, nossa vontade assume proporções extraordinárias. Eis o segredo da força dos grandes homens, capazes de sublimes atos de heroísmo: eles amam verdadeiramente.

O amor é mais importante, mas não desdenhemos a inteligência

Conhecimento e amor! Duas asas que precisam estar bem ajustadas e cultivadas para alçarmos voo no firmamento da santidade. De acordo com as regras do paraquedismo, na queda livre é indispensável manter os braços abertos e firmes, a fim de se obter estabilidade, pois basta fechar um dos dois membros para o corpo rodopiar e perder o equilíbrio. Tal é o que acontece na vida espiritual quando tentamos voar com apenas uma asa.

Todos nós temos obrigação de estudar e levar a inteligência até onde ela alcança, segundo a medida de cada um. Este empenho, entretanto, tem de ser acompanhado por um amor a Deus de todo o coração, de toda a alma, de toda a mente e com toda a força, adequando a vida à doutrina aprendida e procurando ao máximo exercitar-nos na virtude. Para um católico, os Mandamentos são como uma escada rolante, cujos dez degraus o conduzem à perfeição, com amor. Ora, isto só é possível com o impulso da graça, com a assistência de Nosso Senhor Jesus Cristo e em união com Maria Santíssima. N’Eles está a nossa força, n’Eles devemos pôr a nossa segurança, n’Eles encontraremos os elementos e o equilíbrio necessário para entender e para amar.

Tenhamos uma correspondência cheia de luz e de substância para dar a Eles toda a glória, a honra e o louvor que merecem! ♦️


Excertos de “O Inédito sobre os Evangelhos”. Vol. IV. Ano B.

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