Bartimeu e os cegos de Deus!

Naquele tempo, 46 Jesus saiu de Jericó junto com seus discípulos e uma grande multidão. O filho de Timeu, Bartimeu, cego e mendigo, estava sentado à beira do caminho. 47 Quando ouviu dizer que Jesus, o Nazareno, estava passando, começou a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!” 48 Muitos o repreendiam para que se calasse. Mas ele gritava mais ainda: “Filho de Davi, tem piedade de mim!” 49 Então Jesus parou e disse: “Chamai-o”. Eles o chamaram e disseram: “Coragem, levanta-te, Jesus te chama!” 50 O cego jogou o manto, deu um pulo e foi até Jesus. 51 Então Jesus lhe perguntou: “O que queres que Eu te faça?” O cego respondeu: “Mestre, que eu veja!” 52 Jesus disse: “Vai, a tua fé te curou”. No mesmo instante, ele recuperou a vista e seguia Jesus pelo caminho (Mc 10, 46-52).

XXX Domingo Do Tempo Comum
Comentário ao Evangelho

É digno de comiseração quem perdeu a vista, como o pobre
Bartimeu. Para ele, todas as belezas criadas por Deus não são
senão trevas. Muito mais digno de pena é quem sepultou seu
coração na obscuridade, rejeitando a luz de Deus. Para este, as
verdades eternas não existem.

Por Mons. João S. Clá Dias, EP

O sacrifício de Cristo-Sacerdote

A Liturgia de hoje se apresenta de forma simples, sintética e, entretanto, rica de substância, matizes e significado. A segunda leitura (Hb 5, 1-6), por exemplo, nos oferece um elevado mirante para apreciar as maravilhas selecionadas e extraídas da Escritura para o texto deste domingo. Todos os seus versículos se fixam no supremo sacerdócio de Cristo.

Etimologia da palavra sacerdote

Duas são as origens etimológicas da palavra sacerdote — sacerdos, do latim: sacra dans, ou seja, quem dá o sagrado; e sacra dos, aquele que é ungido com um dote sagrado. As duas etimologias são válidas, pois o sacerdote é um embaixador de Deus ante os homens e a estes confere as coisas sagradas, como são a verdadeira doutrina e a caridade; e muito mais, pois diviniza a natureza, comunicando-lhe a graça através dos Sacramentos. Ademais, pertence também a ele a função de representar a sociedade em suas relações com Deus. Neste caso, ele oferece a Deus dons — orações, oblações, etc. — e sacrifícios pelos pecados.

No ofício de dar coisas sagradas, evidentemente se exige de quem o exerce a posse de um poder especial — sacra dos. Se este poder não é comunicado por Deus, não há sacerdócio.

Sacerdócio, sacrifício e Redenção

Por outro lado, na obra redentora, Deus quis servir-Se, sobretudo, da via do sacrifício e, por este motivo, a graça de Cristo é sacerdotal. Jesus é Sacerdote enquanto Homem, e não enquanto Deus. Esta afirmação é feita por São Paulo, na mencionada segunda leitura de hoje: “Todo sumo sacerdote é tirado do meio dos homens e instituído em favor dos homens nas coisas que se referem a Deus, para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5, 1).

São inseparáveis as figuras do sacerdócio e do sacrifício. Esta realidade transparece tanto no Novo Testamento quanto no Antigo. Se Deus escolheu a via do sacrifício para operar a Redenção, quis que o Redentor fosse Sacerdote.

Jesus, Sacerdote cheio de compaixão

É ainda São Paulo quem nos ensina: “Temos, portanto, um grande Sumo Sacerdote que penetrou nos Céus, Jesus, Filho de Deus. Conservemos firme a nossa fé. Porque não temos n’Ele um pontífice incapaz de compadecer-Se das nossas fraquezas. Ao contrário, passou pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 14-15).

Além do oferecimento do sacrifício, é também ofício do sacerdote interceder pelo povo, impetrando junto a Deus o auxílio, proteção e perdão necessários. E Jesus, ao ter-Se sentado à direita do Pai, continuamente está intercedendo por nós em sua oração sacerdotal. Manifesta ao Pai seu desejo de nos salvar a todos, apresentando-Lhe, ademais, sua humanidade assumida, a qual por si só constitui já uma oração sacerdotal. Cristo quis assumir a humanidade com vistas ao sacrifício da Cruz e, estando ressurrecto no Céu, perpetua o oferecimento de seu holocausto.

Esta é uma das diferenças entre o sacerdócio de Cristo e o dos sacerdotes da Antiga Lei, conforme afirma São Paulo: “E isso não foi feito sem juramento. Os outros sacerdotes foram instituídos sem juramento. Para Ele, ao contrário, interveio o juramento d’Aquele que disse: ‘Jurou o Senhor e não Se arrependerá: Tu és Sacerdote eternamente’. E esta Aliança da qual Jesus é o Senhor, é-lhe muito superior. Além disso, os primeiros sacerdotes deviam suceder-se em grande número, porquanto a morte não permitia que permanecessem sempre. Este, porque vive para sempre, possui um sacerdócio eterno. É por isso que Lhe é possível levar a termo a salvação daqueles que por Ele vão a Deus, porque vive sempre para interceder em seu favor” (Hb 7, 20-25).

São Tomás de Aquino levanta outros argumentos de peso para provar a grandeza divina do sacerdócio de Jesus Cristo, demonstrando como n’Ele estão preenchidas todas as condições requeridas para a plenitude do sacerdócio. E qual seriam nosso destino e sorte se, nascendo no pecado e a ele inclinados, não tivéssemos um Sacerdote que, sendo Homem, é inteiramente Deus, para oferecer por nós um sacrifício salvífico que nos resgatasse?

Terríveis consequências do pecado

O mesmo São Tomás, que nunca abandona seu sereno equilíbrio, ultrapassa os limites que nós julgaríamos os do exagero, quando trata dos terríveis efeitos do pecado: “pecando, o homem se afasta da ordem racional. Decai, assim, da dignidade humana, que consiste em ser naturalmente livre e existir para si mesmo. Ele cai, de certo modo, na escravidão dos animais, de sorte que se deva dispor dele como convém à utilidade dos outros. É o que se diz no Salmo: ‘Estando elevado em honra, o homem não entendeu, viu-se nivelado aos animais sem razão e a eles se assemelhou’. E também se lê no Livro dos Provérbios: ‘O insensato estará a serviço do sábio’. […] Pois, o homem mau é pior que um animal, e ainda mais nocivo, como diz o Filósofo”.

Guerra contra Deus

Transpostos para o campo da espiritualidade mística da grande Doutora da Igreja, Santa Teresa de Ávila, os conceitos se harmonizam: “Oh! Não entendemos que o pecado é uma guerra campal de todos os nossos sentidos e potências da alma contra o nosso Deus! Quem mais pode, mais traições trama contra o seu Rei. […] Confesso, Pai Eterno, que a guardei mal [a joia preciosa que é Cristo]; mas ainda há remédio, Senhor, há remédio enquanto vivermos neste desterro”.

Esta grande reformadora do Carmelo, que aliás é rica em manifestar seus horrores ao pecado, dirá em outra de suas obras: “Agora, façamos de conta que Deus é como uma morada ou um palácio muito grande e belo. Este palácio, como digo, é o próprio Deus. Pode, porventura, o pecador sair deste palácio para fazer suas iniquidades? É certo que não. Mas é dentro deste palácio — que é Deus — que nós, os pecadores, praticamos abominações, desonestidades e maldades.

Oh! Como isto é terrível, digno de toda a atenção! E é muito proveitoso para nós, ignorantes, que não nos convencemos destas verdades! Se as compreendêssemos bem não seria possível ter um atrevimento tão desatinado! Consideremos, irmãs, a grande misericórdia e paciência de Deus em não nos castigar logo. Devemos render-Lhe muitíssimas graças e ter vergonha de ficar ressentidas por aquilo que se faça ou se diga contra nós. É a maior maldade do mundo ver que Deus, nosso Criador, sofre os crimes de suas criaturas dentro de Si mesmo, e que nós ainda fiquemos ressentidas porque, alguma vez, se disse uma palavra em nossa ausência e, talvez, sem má intenção”.

Cegueira de alma

Misterioso e causa de múltiplos efeitos é o pecado, sendo um deles — e quão terrível! — a cegueira de alma, bem simbolizada pela perda física da visão. A triste situação de quem não vê, move o coração do Sumo Sacerdote: “Sabe ter compaixão dos que estão na ignorância e no erro” (Hb 5, 2); “os reunirei desde as extremidades da Terra; entre eles há cegos e aleijados” (Jr 31, 8). Esta é uma das notas das duas leituras de hoje, e mais acentuadamente a essência do presente Evangelho.

O mal da cegueira espiritual

A cegueira, quer seja física, quer espiritual, é um mal in dolor. A primeira é involuntária quanto à origem, mas o mesmo não se dá com a outra: nesta ingressamos por culpa própria, sempre que damos largas às nossas paixões, não correspondendo às inspirações da graça e às advertências de nossa consciência. É digno de comiseração alguém que perdeu a vista, como o nosso pobre Bartimeu. Para ele, todas as belezas criadas por Deus não são senão trevas.

Muito mais digno de pena é quem sepultou seu coração na obscuridade, rejeitando a luz de Deus. Para este, as verdades eternas não existem. O fogo inextinguível do inferno, as inimagináveis glórias celestes, a implacabilidade do juízo particular ou do Juízo Final jamais lhe passam pela mente e, portanto, não o impressionam. Poderá assistir a alguma cerimônia representando a Paixão de Nosso Senhor, de um Deus que Se encarna e morre na Cruz para nos redimir, sem ocorrer-lhe algum pensamento piedoso de contrição, confiança ou gratidão. O sobrenatural não o comove, pois não passaria de uma invenção humana submersa nas trevas de sua consciência.

Um cego de Deus ignora o poder de Jesus

A Bartimeu lhe faltava um dos elementos essenciais para enriquecer-se, por isso caiu inevitavelmente na pobreza, passando a viver de esmolas. Ao cego de Deus, sim, é possível fazer fortuna; porém, deste ponto de vista é ele ainda mais digno de pena: quando se fecharem definitivamente para a luz do dia seus olhos carnais, os espirituais de imediato se abrirão, mas quão tarde será para ele ver a grande dimensão de sua real miséria em todo o seu horror. E, tomara, não seja esta a hora do desespero.

Como vemos pelo relato de Marcos, o cego, ao saber que por ali passaria Jesus, pôs-se a gritar cheio de alegria e esperança, pois acreditava no poder do Mestre de curá-lo. Um cego de Deus ignora por completo este poder. Mesmo o fato de, ao longo da História, Jesus ter iluminado estes ou aqueles pecadores, dos mais inveterados, levando-os à conversão, nada significa para as pessoas nas quais a luz da fé se apagou.

“Mestre, que eu veja!”

S e me analisar, com toda a honestidade de consciência, não encontrarei no fundo de minha alma alguma sombra, onde a luz do sobrenatural não chega, um ou outro refolho onde não penetra a voz de Deus? Este é o momento de eu imitar o pobre Bartimeu. O próprio Cristo continua aqui, nos tabernáculos das igrejas. Por que não aproveitar uma ocasião para d’Ele me aproximar e pedir-Lhe o milagre? Devo temer a Jesus que passa e não volta, e bradar sem cessar, porque Ele ouve melhor os desejos abrasados…

Imitar a atitude de Bartimeu

Tenhamos por certo este princípio: sempre que um cego de Deus abraça o caminho da conversão, “a multidão” tenta dissuadi-lo de prosseguir, fazendo todo o possível para lhe criar obstáculos. Infelizmente, a esta “multidão” de mundanos se associa a “multidão” de seus próprios pecados e paixões, para fazê-lo silenciar. Também aqui é oportuno imitar a atitude de Bartimeu, ou seja, não só não ceder às pressões, como até, pelo contrário, redobrar em ardor, esperança e desejos. Desta forma, não tardará a comprovar a realidade da convicção do Apóstolo: “Tudo posso n’Aquele que me conforta” (Fl 4, 13)!

“Mestre, que eu veja!”, deve ser o pedido de quem esteja imerso na tibieza e, sobretudo, de quem é cego de Deus. Bartimeu não pediu a fé, porque já a possuía. Sua cegueira era apenas física. Examinemos nossas necessidades espirituais e peçamos tudo a Jesus. Sem duvidar, aguardemos até mesmo o milagre, pois Ele nos assegura: “tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, vo-lo farei” (Jo 14, 13).

A fé vai-se tornando privilégio de minorias

O número dos que sofrem de cegueira física, no mundo, é insignificante, em comparação com os cegos espirituais. A cegueira de coração atinge uma quantidade assustadora de pessoas em nossos dias. A fé vai-se tornando privilégio de minorias. Há cegos não só nos caminhos da salvação, como também nas vias da piedade. Estes levam uma vida pseudotranquila, submersos nos perigos da tibieza; cometem faltas, mas conseguem, muitas vezes através de inúmeros sofismas, adormecer suas consciências, não experimentando mais os benéficos remorsos. Confessam-se por pura rotina, comungam sem dar o devido valor à substância do Sacramento Eucarístico, rezam sem devoção…

E — quem diria? — há cegos entre os que abraçaram o caminho da perfeição, mas deixaram de aspirar a ela, contentando-se com uma espiritualidade medíocre, esquálida e infrutuosa. Eles nada fazem para atingi-la, procurando-a onde ela jamais se encontra.

Pureza de coração

Enfim, para não ser cego de Deus é preciso ser puro de coração. Uma das principais causas da cegueira de nossos dias é a impureza. Nosso Senhor diz no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão Deus!” (Mt 5, 8). Não se trata exclusivamente da virtude da castidade, mas muito da reta intenção de nossos desejos. Tanto uma quanto outra vão-se tornando raras a cada novo dia, nesta era de progressiva cegueira de Deus…

Eis algumas das razões pelas quais a humanidade necessita voltar-se, com urgência, para a Mãe de Deus, apresentando, por meio d’Ela, ao Divino Redentor o mesmo pedido de Bartimeu: “Mestre, que eu veja!”. ♦️


Excertos da obra de “O Inédito sobre os Evangelhos”, vol. IV, ano B.

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