Ao longo de sua bimilenar História, a Igreja caminhou sempre sob o signo da perseguição. Entretanto, a cada investida das forças adversárias, brilha ela com maior esplendor
Monsenhor João S. Clá Dias, EP, Fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório
I – O sinal dos verdadeiros discípulos
Conta-se que São Pio X, durante audiência aos membros de um dos colégios eclesiásticos romanos, perguntou aos jovens estudantes:
– Quais são as notas distintivas da verdadeira Igreja de Cristo?
— São quatro, Santo Padre: Una, Santa, Católica e Apostólica — respondeu um deles.
– Não há mais de quatro? — indagou o Papa.
– Ela é também Romana: Una, Santa, Católica, Apostólica e Romana.
– Exatamente, mas não falta mencionar ainda uma característica das mais evidentes? – insistiu o Pontífice. Após um instante de silêncio, ele próprio respondeu:
— Ela é também perseguida! Esse é o sinal de sermos verdadeiros discípulos de Jesus Cristo.
Ódio contra Cristo e sua Igreja
A Igreja é perseguida. De fato, sem essa nota não se entende bem a História da Esposa de Cristo, que já começa sob esse signo na mais tenra infância do seu Divino Fundador. Que mal poderia fazer a Herodes aquele Menino, filho de carpinteiro, nascido numa gruta e deitado numa manjedoura? Nenhum. Mas na ímpia tentativa de tirar-Lhe a vida, o tetrarca não hesitou em mandar assassinar crianças inocentes.
Ao longo da vida pública de Jesus, o ódio contra Ele não fez senão crescer, e chegou ao paroxismo quando os fariseus tomaram a decisão de matá-Lo e obtiveram de Pilatos a iníqua sentença de condenação. De tal forma detestavam o Divino Mestre, que não toleravam sequer vê-Lo fazer o bem, ou ensinar a doutrina da Salvação.
Nessa mesma inimizade encontra-se a fonte das investidas sofridas pela Igreja após a subida de Nosso Senhor ao Céu. Assim, foi movido por ódio furibundo contra os cristãos que Nero deu início, no ano 64, à sangrenta perseguição que haveria de durar, com intermitências, até 313, quando o Imperador Constantino concedeu liberdade à Igreja, pelo Edito de Milão.1
E ao longo dos séculos subsequentes, a Esposa de Cristo nunca deixou de enfrentar os mais variados ataques — por vezes cruentos — e incessantes oposições, ora abertas, ora solapadas. Mesmo em nossos dias, este ódio contra aqueles que praticam o bem não deixa de se manifestar em seus múltiplos aspectos.
Os maus não suportam os bons
“Se o mundo vos aborrece, sabei que aborreceu primeiro a Mim. Lembrai-vos da palavra que Eu vos disse: ‘O servo não é maior que seu Senhor’. Se Me perseguiram a Mim, também a vós vos perseguirão” (Jo 15, 18.20). Por estas palavras de Jesus, vemos serem a adversidade e a incompreensão inerentes à existência terrena do verdadeiro fiel, pela irreversível incompatibilidade entre a doutrina do mundo e a de Cristo. Pois, desde o tempo dos nossos primeiros pais, há entre a bendita posteridade de Maria Santíssima e a raça da serpente maldita o irreconciliável antagonismo descrito pelo Gênesis: “Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3, 15).
Os maus não suportam os bons, e para estes, o ódio daqueles indica eleição por parte de Deus, conforme se depreende destas palavras de São Jerônimo a Santo Agostinho: “Sois celebrado por todo o mundo. Os católicos veneram e reconhecem em vós o restaurador da antiga Fé, e — o que é sinal de glória ainda maior — todos os hereges vos detestam e perseguem com o mesmo ódio que a mim, anelando matar-nos com o desejo, já que não podem fazê-lo com as armas”.2
É na fidelidade dos justos diante das perseguições que reluz de modo especial a glória de Deus.
A Liturgia escolhida pela Igreja para este penúltimo Domingo do Tempo Comum significa praticamente o término do Ano Litúrgico C, uma vez que antecede à Solenidade de Cristo Rei. A perspectiva do fim do mundo e do Juízo Final é muito acentuada nos textos, e convida-nos a considerar com mais atenção a justiça, contraponto indispensável da bondade e da misericórdia divinas.
Naquele tempo, 5 algumas pessoas comentavam a respeito do Templo que era enfeitado com belas pedras e com ofertas votivas. Jesus disse: 6 “Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído”. 7 Mas eles perguntaram: “Mestre, quando acontecerá isto? E qual vai ser o sinal de que estas coisas estão para acontecer?” 8 Jesus respondeu: “Cuidado para não serdes enganados, porque muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’; e ainda: ‘O tempo está próximo’. Não sigais essa gente! 9 Quando ouvirdes falar de guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim”. 10 E Jesus continuou: “Um povo se levantará contra outro povo, um país atacará outro país. 11 Haverá grandes terremotos, fomes e pestes em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais serão vistos no céu. 12 Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas e postos na prisão; sereis levados diante de reis e governadores por causa do meu nome. 13 Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé. 14 Fazei o firme propósito de não planejar com antecedência a própria defesa; 15 porque Eu vos darei palavras tão acertadas, que nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater. 16 Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vós. 17 Todos vos odiarão por causa do meu nome. 18 Mas vós não perdereis um só fio de cabelo da vossa cabeça. 19 É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!” (Lc 21, 5-19).
Naquele tempo, 5 algumas pessoas comentavam a respeito do
Templo que era enfeitado com belas pedras e com ofertas votivas.
Após acerba discussão com os escribas e fariseus, ocorrida justamente no recinto do Templo (cf. Lc 20, 45-47; Mt 23, 1336; Mc 12, 38-40), dirigia-Se Jesus ao Monte das Oliveiras. No caminho, os discípulos manifestavam seu encanto com a beleza daquela “construção de imensa opulência”,3 no dizer de Tácito, rica em simbologias que elevavam a mente para Deus, como convém a todo edifício religioso.
Ponto de referência máximo do povo judeu, para o Templo se voltavam os corações dos israelitas do mundo inteiro. Extraordinária era sua história, desde o momento em que, erigido por Salomão, uma densa e miraculosa nuvem dele tomara conta: ali ofereciam-se os verdadeiros sacrifícios, eram recebidas insignes graças e os devotos entravam num contato mais intenso com o sobrenatural. Embelezar o Templo era, então, realçar ainda mais o seu significado espiritual.
Entretanto, a julgar pelas palavras ditas a seguir por Nosso Senhor, tudo indica que estavam eles contemplando a casa de Deus com uma visualização meramente naturalista.
Admiravam o Templo, mas não adoravam quem o habitava
Jesus disse: 6 “Vós admirais estas coisas? Dias virão em que não
ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído”.
Os Apóstolos tinham diante de si Alguém que valia muito mais do que o Templo: o Criador, o Redentor, a Sabedoria eterna e encarnada. Ao contemplarem com olhos mundanos aquele prédio, manifestavam-se cegos para Deus, porque detinham-se na admiração da criatura sem se elevar até o Criador; compreendiam o símbolo, mas não o Simbolizado. Esta é a razão da contundente advertência de Nosso Senhor.
Pelas mãos de Maria, fora o Menino Jesus apresentado no Templo. Suas muralhas testemunharam as pregações e os inúmeros milagres de Jesus, mas as pedras vivas que o compunham — os sacerdotes e os fiéis — não aceitaram o Messias: “Ele veio para os seus e os seus não O receberam” (Jo 1, 11). Eis por que caiu sobre tão faustoso edifício a terrível condenação: “Dias virão em que não ficará pedra sobre pedra. Tudo será destruído”.
E essa dura profecia tardaria menos de quarenta anos em realizar-se do modo mais radical possível. “Permitiu a Divina Providência a destruição de toda a cidade e do Templo para que nenhum daqueles que ainda estavam débeis na fé — admirado por subsistirem ainda os ritos de seus sacrifícios — fosse seduzido por suas diversas cerimônias”,4 comenta São Beda.
A ruína de Jerusalém e a parusia
7 Mas eles perguntaram: “Mestre, quando acontecerá isto? E qual vai
ser o sinal de que estas coisas estão para acontecer?”
Os Apóstolos nada perguntam sobre a causa dessa destruição, mas sim quando ela ocorreria. Como bons israelitas, de espírito previdente, queriam saber com exatidão o que iria suceder.
O arrasamento do edifício sagrado, símbolo da grandeza do povo eleito, parecia-lhes impossível antes do fim dos tempos, pois, “para um judeu, a ruína da cidade e do Templo equivale à ruína do mundo”.5 Não podiam eles conceber que algum dia lhes faltaria aquele lugar santo, único no mundo. Esta é a razão de juntarem em suas perguntas dois fatos totalmente distintos: a ruína de Jerusalém e a parusia.6
Como observa São Cirilo, os Apóstolos “não perceberam a força de suas palavras e julgavam que Ele falava da consumação dos séculos”.7 Por isso, Nosso Senhor, “sem deixar de responder à pergunta com clareza suficiente para eles conjecturarem os acontecimentos vaticinados”,8 falará em dois sentidos: um, a destruição do Templo material; outro, o fim do mundo. Na realidade, o desaparecimento dessa grandiosa construção significava o fim de um mundo: a época da antiga Lei cedia lugar à era da graça.
Ver todos os acontecimentos na perspectiva divina
8 Jesus respondeu: “Cuidado para não serdes enganados, porque
muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Sou eu!’; e ainda: ‘O tempo
está próximo.’ Não sigais essa gente! 9 Quando ouvirdes falar de
guerras e revoluções, não fiqueis apavorados. É preciso que estas
coisas aconteçam primeiro, mas não será logo o fim”. 10 E Jesus
continuou: “Um povo se levantará contra outro povo, um país
atacará outro país. 11 Haverá grandes terremotos, fomes e pestes
em muitos lugares; acontecerão coisas pavorosas e grandes sinais
serão vistos no céu”.
Jesus responde aos discípulos com uma linguagem enigmática, sem procurar desfazer o equívoco em que incorriam, nem responder-lhes com exatidão. Prefere deixar num lusco-fusco os aspectos cronológicos da pergunta, com vistas à formação moral e espiritual dos seus ouvintes.
Com efeito, a expectativa do fim do mundo como um evento próximo habituava-os a contemplar os acontecimentos desde a perspectiva divina, e preparava as almas daqueles primeiros cristãos para as perseguições que teriam de enfrentar, pré-figuras dos últimos tempos, pelo ódio e crueldade dos perseguidores.
Ora, sempre que os pecados da humanidade passam de certo limite, Deus intervém manifestando sua cólera e castigando os caprichos e egoísmos dos homens.
Com a Encarnação, Deus levara seu amor às criaturas a um ponto inexcogitável pelos homens, e mesmo pelos Anjos. Uma extrema bondade caracterizou a vida pública de Jesus, marcada por inúmeras curas e milagres. Porém, Ele não seria Deus se não manifestasse também o esplendor da sua justiça, virtude não menor que a misericórdia. Tem Ele, por assim dizer, duas mãos: a da misericórdia e a da justiça. Com a primeira, perdoa e protege; com a segunda, cobra e castiga.
De uma dessas mãos divinas, ninguém escapa. Para contemplar a Deus na perspectiva verdadeira, sem distorções nem unilateralismos, é preciso amar n’Ele esses dois aspectos. Considerar a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade morrendo na Cruz para nos redimir, é poderoso estímulo para a nossa piedade. Mas não podemos também deixar de admirar sua severidade, ainda quando ela possa vir a nos atingir.
Porque, como ensina Santo Afonso Maria de Ligório, “não merece a misericórdia de Deus quem se serve dela para ofendê-Lo. A misericórdia é para quem teme a Deus, e não para o que dela se serve com o propósito de não temê-Lo. Aquele que ofende a justiça — diz o Abulense — pode recorrer à misericórdia; mas a quem pode recorrer o que ofende a própria misericórdia?”.9
III – Sereis presos e perseguidos
12 “Antes, porém, que estas coisas aconteçam, sereis
presos e perseguidos; sereis entregues às sinagogas
e postos na prisão; sereis levados diante de reis e
governadores por causa do meu nome”.
Ao anunciar aos Apóstolos as perseguições e sofrimentos que haveriam de enfrentar, Nosso Senhor tinha em vista também instruir os cristãos de todos os tempos, porque inúmeras vezes ao longo da História a proclamação do nome de Jesus Cristo lhes trará como consequência serem injustamente presos, perseguidos ou conduzidos aos tribunais. E isto chegará ao auge nos últimos tempos, pois quanto maior for a decadência moral da humanidade, inelutavelmente mais ódio haverá contra os justos, cuja mera existência já representa muda censura aos maus.
Bem pondera São Gregório Magno: “A última tribulação será precedida de muitas outras, porque devem vir antes muitos males que possam anunciar o mal sem fim”.10
Testemunhas da fé na hora da provação
13 “Esta será a ocasião em que testemunhareis a vossa fé”.
Errôneo seria pensar que durante as perseguições cabe aos bons ficarem encolhidos e timoratos, incapazes de qualquer ação. Pelo contrário, dão-lhes elas ensejo a testemunharem com coragem a boa doutrina diante daqueles que se desviaram do caminho certo.
Ao afirmar que as portas do inferno não prevalecerão contra a sua Igreja (cf. Mt 16, 18), estabeleceu o Divino Fundador que ela será não apenas invencível,’mas sempre triunfante.
Assim, por mais que os infernos, não podendo destruí-la, se organizem para sufocá-la, jamais conseguirão impedir sua atuação. E, sejam quais forem as aparências, a Luz de Cristo permanecerá em sua Esposa com todo o seu poder e grandeza, aguardando o momento de manifestar-se de forma intensa, majestosa e irresistível.
Nessas horas de tempestade, suscita a Providência testemunhas da Fé que sejam fachos da Luz de Cristo a rasgar a obscuridade da provação. Muitas vezes, inclusive, Deus Se utiliza de instrumentos frágeis, de modo a deixar mais patente sua onipotência: Gedeão, último homem da tribo de Manassés; Judite, piedosa viúva; e os próprios Apóstolos, simples pescadores. E, se percorrermos as grandes aparições da Virgem Maria, desde Guadalupe até Fátima, a quem vemos como receptores da mensagem, senão pessoas de escassa cultura e predicados?
Quanto aos acontecimentos do fim do mundo, serão justamente a firmeza na fé e a força impetratória dos fiéis, perante o ódio insaciável dos sequazes do anticristo, que atrairão a intervenção divina, desencadeando o castigo final.
Conselho divino confirmado pela História
14 “Fazei o firme propósito de não planejar com antecedência a
própria defesa; 15 porque Eu vos darei palavras tão acertadas, que
nenhum dos inimigos vos poderá resistir ou rebater”.
Com esta surpreendente afirmação, parece Nosso Senhor convidar seus discípulos à negligência, ao invés de incentivá-los a se prevenirem perante a perspectiva da perseguição. Ora, esclarece o Cardeal Gomá, Jesus “não lhes manda que não procurem precaver-se nos transes difíceis pelos quais passarão, mas sim que não se aflijam por isso, pois nos momentos de crises mais agudas poderão contar com a inspiração especial de Deus”.11
De fato, na luta de todos os dias, vale o princípio atribuído a Santo Inácio: “Rezai como se tudo dependesse de Deus e trabalhai como se tudo dependesse de vós”.12 Mas nesta passagem do Evangelho refere-Se o Mestre aos momentos de extrema aflição em que tudo parece perdido. Nessas horas, comenta São Gregório, “é como se o Senhor dissesse a seus discípulos: ‘Não vos atemorizeis. Vós ireis ao combate, mas Eu é que combaterei; vós pronunciareis palavras, mas quem falará sou Eu’”.13
E a História comprova com abundância a esplêndida realização dessa profecia de Nosso Senhor, nos julgamentos iníquos promovidos contra os filhos da luz. Santa Joana d’Arc, por exemplo, era uma camponesa sem estudos; suas respostas, entretanto, confundiram o tribunal que a julgava, pela extraordinária profundidade teológica.
Deserção e traição nas próprias fileiras
16 “Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes
e amigos. E eles matarão alguns de vós. 17 Todos vos odiarão
por causa do meu nome”.
Até no seio das próprias famílias haverá divisão, multiplicando o sofrimento daqueles que serão entregues por “pais, irmãos, parentes e amigos”. Pois, como ensina São Gregório, “os mais cruéis tormentos para nós são os causados pelas pessoas mais queridas, porque, além da dor corporal, sentimos o carinho perdido”.14
Já o Cardeal Gomá interpreta este versículo num sentido simbólico, mais abrangente: “Aos vexames que deverão sofrer da parte dos inimigos, se acrescentará um mal mais grave: a deserção e a traição nas próprias fileiras”.15 Com efeito, quantas vezes não foram hereges ou apóstatas os mais acirrados adversários da Igreja?
Deus é o principal Ator da História
18 “Mas vós não perdereis um só fio de cabelo da vossa cabeça”.
Julgamos, por vezes, serem raríssimas as intervenções de Deus nos acontecimentos terrenos. Como se Ele, após criar o universo, deixasse os fatos correrem por si, procedendo de forma semelhante a alguém que planta uma árvore e se despreocupa totalmente do seu crescimento. Nada mais contrário à realidade.
Deus não só age na História, mas, sobretudo, é seu principal Ator. Tudo está em suas santíssimas mãos, nada foge ao seu governo: “Em Deus vivemos, nos movemos, e somos” (At 17, 28).
Às vezes, a ação da Divina Providência nos fatos concretos é visível aos olhos de todos, por ser desígnio seu torná-la patente.
Porém, na maior parte das ocasiões, Ela opera de forma oculta ou discreta, deixando por conta do nosso entendimento e da nossa fé discernir o cunho de sua atuação. O Criador tem tudo contado, pesado e medido.
E, ao agir sobre os acontecimentos, tem sempre em vista, junto com a própria glória, a salvação dos que são seus. Por isso, afirma São Paulo: “Tudo quanto acontece, concorre para benefício dos justos” (Rm 8, 28).
Cada um dos nossos atos, gestos ou atitudes serão consignados no livro da vida. Nenhum ato de virtude ficará sem recompensa, conforme afirma São Beda: “Não cairá um só fio de cabelo da cabeça dos discípulos do Senhor, porque não somente as grandes ações e as palavras dos santos, mas também o menor de seus pensamentos será dignamente premiado”.16
Esperança na vida verdadeira
19 “É permanecendo firmes que ireis ganhar a vida!”
Todos nós, como os Apóstolos, estamos sujeitos a passar por situações difíceis em razão de nossa fidelidade a Cristo. Como devemos nos comportar diante delas?
Antes de tudo, precisamos crer firmemente na onipotência de Nosso Senhor e ter bem presente seu amor por cada um de nós, conforme nos exorta Santo Agostinho: “Essa é a Fé cristã, católica e apostólica. Confiai em Cristo que diz: ‘não cairá sequer um fio de vossos cabelos’, e, uma vez eliminada a incredulidade, considerai o quanto valeis. Quem de nós pode ser desprezado por nosso Redentor, se nem sequer um fio de cabelo o será? Ou: como duvidaremos de que dará a vida eterna à nossa carne e à nossa alma Aquele que, por amor a nós, recebeu alma e carne na qual morreu, e a recobrou para que desaparecesse o temor de morrer?”.17
Mas também não podemos duvidar de que Jesus Se encarnou para nos fazer partícipes de sua ressurreição: “Se Cristo não ressuscitou, vossa fé é vã” (I Cor 15, 17), proclama São Paulo.
Uma vez compenetrados de estarmos de passagem nesta Terra, a caminho da eternidade, todos os males que possamos sofrer tomam outra dimensão. “Quem sabe que é um peregrino neste mundo, independentemente do local onde se encontre corporalmente; quem sabe que tem uma pátria eterna no Céu; quem tem certeza de que ali se encontra a região da vida feliz, a qual aqui é lícito desejar, mas não é possível ter, e arde nesse desejo tão bom, santo e casto — esse vive aqui pacientemente”.18
É permanecendo firmes na Fé que ganharemos a verdadeira vida; é só na perspectiva da glória eterna que teremos forças para perseverar na hora das provações. E isto não depende tanto do nosso esforço quanto da graça divina, que devemos pedir sem cessar.
IV – Proclamar a beleza triunfante da Igreja
Dois significativos episódios históricos, entre tantos outros, podem ilustrar o ensinamento da Liturgia deste domingo.
O filósofo iluminista François-Marie Arouet, mais conhecido pelo pseudônimo de Voltaire, foi um dos mais festejados ímpios de todos os tempos. Seu ódio contra a Igreja o levou a afirmar: “Estou cansado de ouvir dizer que bastaram doze homens para implantar o Cristianismo no mundo, e quero provar que basta um para destruí-lo”.19 Mas, o atrevido ateu morreu e a ridícula ameaça caiu no vazio.
Não menos arrogante com a Esposa de Cristo foi Napoleão Bonaparte. Após ser excomungado pelo Papa Pio VII, teve a petulância de perguntar sarcasticamente ao legado papal, Cardeal Caprara, se por causa disso iriam cair as armas das mãos dos seus soldados. Ora, segundo narram testemunhas oculares, entre as quais o Conde de Ségur, foi o que aconteceu durante a campanha da Rússia: “As armas dos soldados pareciam ser de um peso insuportável para seus braços intumescidos; em suas frequentes quedas, escapavam-lhes das mãos, quebravam-se ou perdiam-se na neve”.20
Meses depois, Bonaparte viu-se obrigado a assinar o decreto de sua própria destituição no palácio de Fontainebleau, onde mantivera cativo o Vigário de Cristo, e partiu para o exílio. Pio VII, entretanto, a quem ele chamara despectivamente de “velho”, ainda haveria de reinar por quase uma década, sobrevivendo por dois anos ao prisioneiro da Ilha de Santa Helena.
E, assim, poderíamos multiplicar os exemplos mostrando “ser uma característica da Igreja vencer quando atacada, ser melhor compreendida quando contestada e ganhar terreno quando abandonada”,21 segundo ensina Santo Hilário de Poitiers. Ao que o padre Monsabré acrescenta: “muitas vezes, no curso da Era Cristã, pôde-se ver o Corpo Místico do Filho de Deus a ponto de perecer, muitas vezes pôde-se vê-lo recobrar vida e avançar com passo resoluto rumo aos dias da eternidade”.22
Os períodos de perseguição nos convidam a depositar uma fé inquebrantável em Cristo e em sua Igreja, mas também a amá-Los de um modo todo especial. “Em tempo de grandes prevaricações”, afirma o Cardeal Gomá, “até os bons se tornam tíbios. Contudo, em meio às defecções e tibiezas, perseverarão os fortes, os que guardarem a fé e os bons costumes cristãos. Estes se salvarão: ‘Quem perseverar até o fim, será salvo’ (Mt 24, 13). Sendo constantes, obtereis a salvação”.23
Ao nos situar diante de uma grandiosa perspectiva escatológica, o Evangelho deste domingo nos incita a proclamar a beleza triunfante da Santa Igreja, na confiança plena de que quem permanecer filialmente no seu seio obterá como prêmio o próprio Deus! ♦
O Inédito sobre os Evangelhos. Vol 06. Comentário ao Evangelho do XXX III Domingo do Tempo Comum.
1) “Osório, que utilizou fontes hoje perdidas, escreveu: ‘Nero condenou os cristãos a diversas formas de morte, e os perseguiu não só em Roma, mas também em todas as províncias, e procurou suprimir o nome cristão’ […] Refere Lactâncio que ‘a causa da perseguição foi o ódio de Nero contra os cristãos’” (WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1927, v.III, p.708-709).
2) SÃO JERÔNIMO. Epistola ad Augustinum CXLI. In: Cartas. Madrid: BAC, 1962, v.II, p.784-785.
3) Cf. GOMÁ Y TOMAS, Isidro. El Evangelio explicado. Pasión y Muerte. Resurrección y vida gloriosa de Jesús. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.IV, p.109.
4) SÃO BEDA, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XXI, v.5-8.
5) GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.110.
6) Isto se vê com maior clareza no Evangelho de São Mateus: “Dize-nos, quando será isso? Qual será o sinal de tua vinda e do fim do mundo?” (Mt 24, 3). 7) SÃO CIRILO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, op.cit.
8) GOMÁ Y TOMAS, op. cit., p.114.
9) SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Preparação para a morte. Petrópolis: Vozes, 1956, p.128.
10) SÃO GREGÓRIO MAGNO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., v.9-11.
11) GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.112.
12) CCE 2834.
13) SÃO GREGÓRIO MAGNO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., v.1219. 14) Idem, ibidem.
15) GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.112.
16) SÃO BEDA, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., v.12-19.
17) SANTO AGOSTINHO. Sermo CCXIV, n.12. In: Obras. Madrid: BAC, 2005, v.XXIV, p.257-258.
18) SANTO AGOSTINHO. Sermo CCCLIX/A, n.2. In: Obras. Madrid: BAC, 1985, v.XXVI, p.309.
19) CONDORCET. Vie de Voltaire. In: Œuvres Complètes de Voltaire. Paris: Th. Desoer, 1817, t.I, p.55.
20) SÉGUR, apud HENRION, Barón. Historia general de la Iglesia. 2.ed. Madrid: Ancos, 1854, t.VIII, p.153.
21) SANTO HILÁRIO DE POITIERS, apud BERINGER, R. Repertorio universal del predicador. La Iglesia y el Papado. Barcelona: Litúrgica Española, 1933, v.XVIII, p.241.
Quando ouço esse evangelho sei que estamos no caminho certo! Nossa Senhora não desamparará nenhum de vcs Arautos! que seguem a Cristo e seu evangelho !muito amarão vcs pelo que são, mas outros odiarão pelo mesmo motivo! Salve Maria.