Somos filhos de Deus? (parte II)

E nos fez mercê de preciosas e ricas promessas, para assim nos fazer partícipes da natureza divina”.
(2 Pe 1, 4)


A graça santificante

Em forma de proposição clara e simples, expor-se-á em seguida a doutrina fundamental sobre a natureza da graça, explicando depois palavra por palavra*.

Ei-la: A graça santificante é um dom divino, uma qualidade sobrenatural infundida por Deus em nossa alma, que nos dá uma participação física e formal da própria natureza divina, tornando-nos semelhantes a Ele em sua própria razão de deidade. Segue a exposição detalhada dessa magnífica proposição.

a) A graça santificante

Chama-se assim porque santifica realmente a quem tenha o privilégio de possuí-la. Esta santificação inicial admite como veremos muitos graus em seu desenvolvimento e expansão. Mas sua mera posse, em grau mínimo (como o que adquirem os meninos ao serem batizados) santifica essencialmente ao que a recebe. De tal sorte que entre o menino recém-batizado e o maior santo do Céu existe apenas uma diferença acidental (diferença de grau), mas não essencial, em ordem à santidade propriamente dita.

b) É um dom divino

Uma das notas mais próprias e características da graça santificante é a de ser um dom, isto é, um presente divino que Deus confere gratuitamente à alma. Natureza alguma criada ou incriada, tanto humana quanto angélica, poderia exigir esse divino presente como algo devido a qualquer ação heróica realizada com as simples forças da sua natureza. A graça pertence à ordem sobrenatural, que excede e sobrepuja infinitamente o ser e as forças de toda natureza criada ou criável.

Nenhum homem, nenhum anjo, por muito perfeito que seja, leva em sua natureza o germe ou a exigência da graça santificante.

Como adverte repetidas vezes Santo Agostinho,1 a natureza humana ou angélica se relaciona com a graça como a matéria inanimada ao princípio da vida. A matéria, como morta que é, não pode se dar a vida que pertence a outra categoria ou plano imensamente superior, mas tem que recebê-la de outro corpo vivo.

O Doutor Angélico, São Tomás de Aquino, explica isto empregando a metáfora do ferro que, posto no fogo, torna-se incandescente:2 O dom da graça excede toda a potência da natureza criada, porque não é outra coisa senão uma participação da natureza divina, que é superior a toda outra natureza.

É, por conseguinte, absolutamente impossível que uma criatura produza a graça. O ferro não pode receber as propriedades do fogo se não se mete nele, e na medida em que se una a ele. De modo semelhante, só Deus pode divinizar uma criatura, admitindo-a na participação de sua divina natureza.

Por isto, é mister notar que a graça santificante não somente é um dom de Deus absolutamente gratuito, mas também é, de si, um dom divino em toda a extensão do termo. Todas as coisas criadas, mesmo na ordem puramente natural, são dons de Deus, posto que Dele, como Criador universal de tudo quanto existe, receberam o ser material ou a vida que possuem. Mas nem todas elas constituem um dom divino: somente o são as que pertencem à ordem da graça santificante, pois só nesta ordem é que recebemos uma participação real e verdadeira da própria natureza de Deus.

O sol, a água, o ar que respiramos, os alimentos que ingerimos, são dons de Deus, mas não são divinos, como o é a graça santificante e tudo o que ela traz consigo: virtudes infusas, dons do Espírito Santo, etc.

c) Uma qualidade sobrenatural

Examinando teologicamente a natureza ou essência da graça santificante, nota-se claramente que se trata de uma qualidade habitual de ordem sobrenatural. Ou seja, um acidente recebido na essência da alma, à qual qualifica divinizando-a.

Com efeito, a qualidade é um acidente que qualifica um ser, e é o fundamento da semelhança de um sujeito com outro, como a qualidade do bom qualifica um determinado homem relacionando-o com a bondade enquanto tal.

Pois bem: através da graça o homem é qualificado de grato, justo, amigo, filho e herdeiro de Deus. E por ela se faz semelhante ao próprio Deus, enquanto participa da própria divina natureza. Em conseqüência, a graça é uma verdadeira qualidade habitual que modifica acidentalmente a alma que a recebe, tornando-a deiforme, ou seja, semelhante a Deus, já que lhe comunica uma participação de sua própria natureza.

d) Infundida por Deus em nossa alma

Os protestantes o negaram, com sua teoria da justificação por imputação extrínseca dos méritos de Cristo. Mas é uma verdade de fé expressamente definida pelo Concílio de Trento, nos seguintes termos:

“Se alguém disser que os homens são justificados somente pela imputação da justiça de Cristo ou só pela remissão dos pecados, excluída a graça e a caridade, que se difunde pelo Espírito Santo em seus corações e a eles adere, ou que a graça pela qual somos justificados é tão só o favor ou benevolência de Deus, seja anátema” (D 821).

A graça nos é dada no batismo, perdida com o pecado e restituída na confissão

São Tomás argumenta a este favor apoiando-se em um princípio teológico sublime: O amor de Deus infunde e cria a bondade das coisas. Neste principio se baseia a principal diferença entre o amor humano e o divino.

Em nós o amor nasce do objeto bom, real ou aparente; Deus, porém, cria a bondade do objeto, pelo próprio fato de amá-lo. E como o amor se compraz naquilo que lhe é semelhante, daí vem que a graça, pela qual Deus nos ama com amor de amigo, nos eleva de certo modo à sua categoria, deificando-nos mediante uma participação formal na sua própria natureza divina.

Em suma, Deus ama com amor sobrenatural absoluto ao homem que Lhe é grato e caro. Mas como o amor de Deus é causa do que ama, acaba por produzir no homem que Lhe é assim grato, a razão dessa bondade sobrenatural, ou seja, a graça santificante.

e) Dá-nos uma participação física e formal na própria natureza divina

Já dissemos acima que a graça constitui ou nos dá uma verdadeira participação na própria natureza divina. É mister precisar que se trata de uma participação física (como a do ferro metido na fornalha adquire fisicamente as propriedades do fogo, sem perder sua própria natureza de ferro) e formal, ou seja, informando, pervadindo intrinsecamente a alma, tornando-a verdadeira e realmente deiforme, e não como um simples vestido, que é algo extrínseco e não modifica em nada a natureza de quem o veste.

Que a graça nos torna partícipes da natureza divina, é uma verdade de fé que consta expressamente na Sagrada Escritura. Disse o apóstolo São Pedro: E nos fez mercê de preciosas e ricas promessas, para assim nos fazer partícipes da natureza divina  (2 Pe 1, 4). Não é possível falar mais claro e de maneira mais explícita.

A liturgia da Igreja o confirma, quando canta o sublime prefácio da Ascensão, referindo-se a Cristo: Subiu ao céu para nos fazer partícipes de sua divindade. Com que persuasiva eloqüência trata de inculcá-lo na alma de seus ouvintes, o grande São Leão Magno, em sua magnífica homilia do dia de Natal! Conhece, cristão, tua dignidade e, já que és partícipe da natureza divina, não queiras voltar à vileza de tua antiga condição. (Serm. 21 c.3: ML 54, 192).

Esta natureza divina adverte, no mesmo sentido, o grande teólogo Scheeben 2, pelo infinito poder de sua caridade, atrai a nossa, adota-a em seu seio pela graça, submergindo-a como se faz com o ferro na fornalha. Desta sorte, pertencemos à raça de Deus, como a palmeira pertence ao reino vegetal, e o leão ao animal.

Se, dentre todos os homens e anjos, Deus escolhesse uma única alma para comunicar o resplendor de tal dignidade, esta alma faria empalidecer a formosura do sol, de toda a natureza e de todos os espíritos puros.

Deixaria estupefatos não só aos mortais, mas até aos próprios anjos, que se veriam inclinados a prestar-lhe adoração, como se fosse o próprio Deus. Como é possível que façamos tão pouco caso deste bem, só porque nos é dispensado com prodigalidade?! Será que nossa ingratidão aumenta à medida em que Deus quer ser generoso conosco?!

f) Tornando-nos semelhantes a Ele em sua própria razão de deidade

É uma conseqüência natural e lógica de tudo quanto foi dito. Quando nos tornamos partícipes da natureza divina, Deus nos eleva à sua própria categoria divina, assemelhando-nos a Ele. É preciso explicar em que sentido se estabelece entre Deus e nós esta sublime semelhança.

Na realidade, todas as criaturas são, de alguma forma, semelhantes a Deus, que lhes deu o ser tirando-as do nada. Mas o são em graus diferentíssimos, à medida em que se aproximam mais de Deus, segundo uma escala analógica.

Assim, temos que:

11) Os minerais se assemelham a Deus exclusivamente enquanto ser, ou seja, enquanto existem. Neles não há uma imagem de Deus, mas somente um vestígio, como o que deixa um caminhante ao andar sobre a neve.

21) As plantas e os animais se assemelham a Deus como seres vivos, pois têm vida. Mas tão rudimentar é esta vida nas plantas, que carecem de todo conhecimento; e tão imperfeita é nos animais, que seu conhecimento é meramente sensitivo, e não racional. Tampouco há, nas plantas ou nos animais, uma verdadeira imagem de Deus: possuem apenas um traço ou vestígio pouco mais perfeito que o dos minerais.

31) O homem e o anjo se assemelham a Deus como ser vivo inteligente e, neste sentido, constituem uma verdadeira imagem de Deus, ainda que na ordem puramente natural. Assemelham-se a Deus como seres inteligentes, se bem que a uma distância infinita da Sabedoria incriada, que é o próprio Deus (Cfr. Gên 1, 26).

41) A alma em graça se assemelha a Deus precisamente enquanto Deus. Ou seja, não somente enquanto ser vivo e inteligente, mas naquilo que faz com que Deus seja Deus: sua própria divindade. Como realidade divina que é, a graça pertence ao plano da divindade. E por isso está incalculavelmente acima de todos os seres criados ou que poderiam ter sido criados, incluindo os próprios anjos.

Túmulo de São Luis Rei de França

É impossível, a uma criatura, galgar maior elevação do que a proporcionada pela graça santificante, excetuada a união pessoal ou hipostática do que a própria e exclusiva de Cristo-homem: A dignidade de uma alma em graça é tão grande que ante ela se desvanecem como a fumaça, todas as grandezas da terra. Que significam o sangue azul ou o sangue real ante um mendigo coberto de farrapos, mas que leve em sua alma o tesouro infinito da graça santificante?

Todas as grandezas da terra são nada e miséria, posto que terminam com a morte. Entretanto, a grandeza de uma alma em graça supera infinitamente as fronteiras do tempo e a esfera de todo o criado, para alcançar, num vôo de águia, o próprio Deus em sua razão de deidade. Ou seja, torna-se semelhante a Ele tal como Ele é em Si mesmo.

Por isso, uma ínfima participação na graça santificante vale infinitamente mais do que todos os seres criados que existiram, existem ou existirão até o fim dos séculos. 3

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*O Homem e sua existência natural Pe. Antonio Royo Marín, O.P., Somos hijos de Dios C Misterio de la divina gracia, BAC, Madrid, 1977, Cap. I.
1 ) Serm. 62, n. 2; 65, n. 3; 156, n. 3; In ps. 70 enarr. 2, n. 3, etc.
2 ) Las maravillas de la gracia divina, Desclée, 1963, l. 1, c. 5, p. 53.
3 ) São Tomás não vacila em escrever: O bem sobrenatural de um só indivíduo supera o bem natural de todo o universo: *bonum gratiae unius est quam bonum naturae totius universi +@ (I-II, 113, 9 ad 2).

Uma resposta para “Somos filhos de Deus? (parte II)”

  1. Que possamos cada dia buscar a santidade! Apesar das dificuldades e provações! Salve Maria

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