Voar sem amarras!

Comentário ao Evangelho do XXIII Domingo do Tempo Comum

Claras são as condições para seguirmos a Jesus. Depende de nos libertarmos das amarras que nos prendem à Terra

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP, Fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório

Amarras e lastros na vida espiritual

Em junho de 1783, os irmãos Joseph-Michel e Jacques-Étienne Montgolfier, filhos de um fabricante de papel de Lyon, conseguiram fazer voar, perante os assombrados olhos dos seus conterrâneos, um grande balão feito de linho, com 32 metros de circunferência. Cheio de ar quente fornecido pela combustão de palha seca, a aparatosa invenção elevou-se várias centenas de metros acima do solo e percorreu em dez minutos uma distância de dois a três quilômetros. Três meses depois, repetiram com êxito sua experiência no Parque de Versalhes, diante de Luís XVI, Maria Antonieta e toda a corte da França.

Desde então, foi muito aperfeiçoada a técnica de fabricação dos aeróstatos, mas o princípio de seu funcionamento — baseado numa das mais elementares leis da Física — continua inalterado: sendo mais leve, o ar quente tende a subir. Enquanto está sendo enchido de ar, o balão fica preso ao solo por amarras. Em certo momento, são elas soltas e o engenho inicia sua ascensão, sendo então preciso ir liberando lastros gradativamente para ele poder atingir uma altura maior.

Esta é uma bela imagem da elevação das almas a Deus. “Aquecidas” pela prática das virtudes, especialmente da caridade, iniciam elas a subida espiritual e começam a “voar”. Costuma haver, porém, em consequência do pecado, amarras que as prendem à Terra e lastros que dificultam seu itinerário rumo à perfeição. É imperioso, portanto, cortar aquelas e alijar estes, para o espírito humano poder elevar-se ao transcendente e ao eterno. À semelhança de nosso corpo, padecem as almas dos danosos efeitos de uma espécie de lei da gravidade espiritual por onde nos sentimos atraídos para o mais baixo, o mais trivial, o que nos exige menos esforço.

Até para as pessoas consagradas existem amarras e lastros, por vezes mais difíceis de soltar do que os dos simples fiéis. Se os religiosos não corresponderem ao convite da graça para viver num patamar mais elevado, poderão sentir uma como que vertigem por onde tenderão a se apegar com especial veemência ao que é terreno.

Para ajudar a vencer esses entraves nas instituições religiosas, tem o Espírito Santo suscitado, ao longo dos tempos, as mais diversas formas de espiritualidade que intensificam o desapego dos bens passageiros. Algumas nos causam espanto por sua radicalidade. Por exemplo, a Ordem dos Clérigos Regulares Teatinos vive de esmolas, como tantas outras, mas seus membros não podem pedi-las: devem esperar que elas lhes sejam oferecidas espontaneamente! Em vista dessa nossa má tendência, Cristo nos ensina serem indispensáveis a renúncia e a abnegação, para sermos verdadeiros discípulos seus. Eis a lição da Liturgia deste domingo.

Há, em suma, apenas um caminho para nos tornarmos verdadeiros discípulos de Jesus: renunciar totalmente aos afetos desordenados e ao apego aos bens terrenos, evitando que eles atuem como amarras para nossa vida espiritual ou de pesados lastros para nossa alma. Sem nos desprendermos de forma plena e completa de quanto nos separa de Cristo, jamais alcançaremos o Reino dos Céus.

Importante é notar, ademais, como faz o Cardeal Gomá, que não apenas os clérigos e religiosos devem ser discípulos de Jesus, mas sim todos os batizados: “Com os exemplos da torre e do rei, não quer o Senhor significar que cada um de nós seja livre de tornar-se ou não seu discípulo, como o homem da torre era livre de lançar ou não os alicerces. Tenciona Ele ensinar-nos a impossibilidade de agradar a Deus em meio às coisas que distraem a alma e nas quais ela corre o risco de sucumbir, pela astúcia do demônio”.

São Beda faz uma distinção entre o dever das almas chamadas ao estado de vida consagrada e a obrigação de todos os fiéis: “Há uma diferença entre renunciar a todas as coisas e abandoná-las: compete a um pequeno número de perfeitos abandoná-las, ou seja, pôr de lado os cuidados do mundo; e cabe a todos os fiéis renunciar a elas, isto é, possuir as coisas terrenas de maneira tal que elas não os prendam ao mundo”.

Os apegos desordenados roubam-nos a paz de alma

O Evangelho deste domingo torna patente o quanto esse desapego radical e completo é a pedra fundamental de nossa vida interior, quer constituamos família, quer façamos parte do Clero, quer estejamos consagrados a Deus em algum instituto religioso.

Nesse sentido, podemos afirmar que a Liturgia do 23º Domingo do Tempo Comum é um convite ao desprendimento: “Quem não carrega sua cruz e não Me segue, não pode ser meu discípulo”. Não significa isso que precisamos ser flagelados, coroados de espinhos ou pregados na cruz, como foi Nosso Senhor Jesus Cristo. A cruz que Ele pede de nós consiste principalmente em vivermos desprendidos de tudo quanto é terreno, tal qual uma águia que voa sem amarras para, nas alturas, melhor contemplar o Sol.

Como tantas vezes comprovamos na vida, o apego desordenado gera aflições, inseguranças e receios que nos roubam a paz de alma. Portanto, mesmo o homem não chamado à vida religiosa deve fazer tudo com o coração posto nas coisas de Deus, inclusive ao cuidar dos negócios e da administração dos seus bens. Esse desprendimento é condição para seguir de perto a Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim agindo, a alma experimentará a verdadeira felicidade, prenunciativa da alegria que terá no Céu. ♦

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O Inédito sobre os Evangelhos. Vol 06. Excertos do comentário ao XXIII Domingo do Tempo Comum.

 

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