Basta rezar?

Comentário ao Evangelho do XIX Domingo do Tempo Comum

Um cofre sem fechadura de nada vale. Assim também, uma alma sem vigilância fica à mercê do inimigo. Por isso Jesus insiste tanto nesta virtude, à qual deve sempre complementar uma autêntica piedade

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP

Virtude da vigilância

“Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26, 41), disse o Senhor aos três Apóstolos que mais de perto O acompanhavam na oração no Horto das Oliveiras, na noite em que ia ser entregue. Por mais que o espírito esteja pronto, a carne é fraca, afirmou Ele logo a seguir.

E de fato, a História confere realidade a esta afirmação de Jesus: não poucas almas facilmente perdem o fervor e caem na tibieza, e às vezes até mesmo em pecados graves, por puro descuido. A tal ponto não nos basta somente a oração que a recomendação do Salvador se inicia pela vigilância. Assim como numa fortaleza, havendo uma brecha desguarnecida em sua muralha, por ali penetra o inimigo, da mesma forma o demônio espreita os lados mais débeis de nossa alma para nos atacar e derrotar.

Por isso nos adverte São Pedro: “Sede sóbrios e vigiai. Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (I Pd 5, 8).

Relação com a prudência

Essa vigilância tem suas raízes na virtude cardeal da prudência. “A prudência não se esconde, mas vela com uma diligência admirável, tal é o medo que tem de ser surpreendida pelas secretas insídias dos maus”.1

São Tomás de Aquino deixa claro que, se a prudência é a virtude que tanto rege a vida moral e espiritual do homem, como também a vida exterior e humana, é claro que a vigilância adquire um lugar importante em nossa vida espiritual e moral.2

Na prática dessa virtude vamos ao encontro do zelo de Deus por nossa perseverança, pois Ele nos envia seus Anjos “para que nos guardem em todos os nossos caminhos” (Sl 90, 11). Deus “mantém sobre nós, incansável e solícito, aquele singular olho alerta da clemência divina”.3

Zelo pela salvação da própria alma

Deus criou todas as coisas perfeitas e boas, não podendo proceder d’Ele o mal. Os anjos revoltados, logo no princípio da criação e lançados ao inferno por São Miguel, foram os introdutores do mal já no Paraíso Terrestre e, até hoje, ainda procuram fazê-lo penetrar no âmago das almas. “Aquele que combate Israel não dorme nem dormita. Todo o intuito, todo o afã das milícias espirituais em sua guerra contra nós é o de conduzir- nos e pôr-nos em seu caminho para que as sigamos e nos levem ao desastroso fim que lhes está destinado”.4

Essa é uma das razões pelas quais devemos cuidar de nossas almas em quaisquer circunstâncias de nossa existência, quer seja na calmaria da clausura de um convento contemplativo, ou na mais intensa das atividades no mundo.

Daí o conselho deixado como herança por nossa Doutora, Santa Teresinha do Menino Jesus: “Vós vos dedicais em excesso às vossas ocupações; vossos afazeres vos preocupam demasiadamente. Li há tempos que os israelitas construíam as muralhas de Jerusalém trabalhando com uma das mãos e empunhando na outra a espada. Eis aqui uma imagem do que devemos fazer: trabalhar apenas com uma mão, reservando a outra para defender nossa alma dos perigos que possam impedir a união com Deus”.5

Insistem os tratados de vida espiritual num ponto de suma importância: evitar a ociosidade. “Costumavam dizer os Padres do deserto: Que o demônio te encontre sempre ocupado”. E contam que Santo Antão, quando se queixou de que não conseguia estar continuamente em oração, recebeu esta resposta do Céu: “Quando não puderes orar, trabalha”.6

É circunscrito às considerações sobre a virtude da vigilância que se desenvolve o trecho do Evangelho do 19º Domingo do Tempo Comum, tomando como base três parábolas apresentadas por Jesus. A exortação contida nesses versículos de Lucas também é encontrada em Mateus e Marcos. Estes dois últimos colocam-na ao término do “discurso escatológico”, enquanto Lucas, talvez por querer acentuar o caráter moral da mesma, acaba por localizá-la numa sequência diferente.


Exortações de Jesus aos discípulos

32 “Não temais, ó pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso
Pai dar-vos o Reino”.

Logo após a parábola do rico insensato, Lucas encadeia uma série de conselhos do Divino Mestre sobre a necessidade de antes — e acima de tudo — buscar-se o Reino de Deus e sua justiça, pois, assim procedendo, o resto nos será dado por acréscimo. Porém, dada a força de nossa concupiscência, os sentidos dificultam a prática destes conselhos, por mais sapienciais que sejam. A doutrina convence, mas “a carne é fraca”. Justamente nesse ponto se concentra o temor: como abandonar-nos nas mãos da Divina Providência? Daí a ênfase deste “não temais”.

A “pequenina grei” dos escolhidos

Além disso, confere-lhes o título de “pequenino rebanho”, figura que com certa frequência encontramos ao percorrer as páginas do Antigo Testamento, dado o caráter pastoril da sociedade nesse longo período histórico.

Sobre o porquê desse título dado aos discípulos, múltiplas são as hipóteses entre os autores. Teofilato assim comenta: “O Senhor chama de pequenino rebanho àqueles que querem ser seus discípulos, seja pelo motivo de, nesta vida, os santos parecerem pequenos, em virtude de sua pobreza voluntária, seja pelo fato de serem superados pela multidão dos Anjos, cujo número é incomparavelmente maior”.7

Beda analisa o referido título debaixo de outro prisma: “O Senhor denomina também de pequenina grei os escolhidos, comparando-os com o número maior de réprobos ou, mais ainda, por seu amor à humildade”.8

Na realidade, a Igreja nascente era minúscula em porte, número e força, não passava ela de um grãozinho de mostarda. Aqueles poucos não deveriam temer que lhes viesse a faltar o necessário para sua subsistência própria, pois o Pai, por um efeito de seu amor gratuito, lhes havia concedido o seu Reino. Que Pai e que Reino! É Ele o próprio Deus e Soberano Senhor, onipotente e absoluto, para o qual não há obstáculo capaz de impedi-Lo na determinação de suas vontades.

Não se trata de um reino terreno: “Meu Reino não é deste mundo” (Jo 18, 36), disse Jesus a Pilatos. Se fosse um reino em qualquer parte da Terra, estaríamos sôfregos por recebê-lo o quanto antes e empreenderíamos todos os esforços para possuí-lo. Este Reino é eterno e celestial. Por isso é indispensável a esse “pequenino rebanho” ter uma plenitude de reciprocidade em relação a tão dadivoso Pai. Jesus nos dá a garantia de sua palavra absoluta. “Manifesta a razão pela qual não devem temer, acrescentando: ‘porque agradou a vosso Pai’, etc. Como se dissesse: ‘Como deixará de ser clemente convosco Aquele que dá graças tão extraordinárias?’. Mesmo sendo pequenino esse rebanho (por sua natureza, seu número e sua glória), a bondade do Pai lhe concedeu o destino dos espíritos celestiais, isto é, o Reino dos Céus”.9

É belo o comentário de Maldonado à segunda parte deste versículo: “Cada uma dessas palavras tem especial sentido e doçura. Diz ‘agradou’, mostrando a particular benevolência e liberalidade de Deus para com eles; diz ‘a vosso Pai’, chamando Deus de pai deles, o qual, enquanto pai, não pode esquecer-se de seus filhos (cf. Is 49, 15); acrescenta: ‘dar-vos’, como a filhos e herdeiros seus, ‘o Reino’, ou seja, o Reino celestial e eterno, não o terreno e temporal”.10

“Vendei o que possuís”, um conselho de Jesus

33 “Vendei o que possuís e dai esmolas; fazei para vós bolsas que
não envelhecem, um tesouro inesgotável no Céu, onde não chega
o ladrão, nem a traça corrói. 34 Porque onde está o vosso tesouro,
aí estará também o vosso coração”.

No início do Cristianismo, era comum os primeiros fiéis seguirem à risca este conselho e, ainda hoje, encontram-se alguns casos nessa linha. Ele, em sua essência, incide sobre dois pontos:

Em primeiro lugar, nossa propriedade se constitui não só de bens materiais ou riquezas, mas também de toda sorte de possíveis apegos: ciência, erudição, amizade, comodidades, prazeres lícitos (e mais intensamente ainda os ilícitos, quando a eles nos entregamos), etc. Quanto mais desapegado esteja nosso coração dos objetos terrenos, quer sejam do espírito, quer da matéria, tanto mais gozaremos da felicidade no tempo e incomensuravelmente mais na eternidade.

Um segundo ponto diz respeito à obrigatoriedade, sim ou não, de vender o que se possui e dar esmolas. Poderíamos a este propósito levantar, com Maldonado, a seguinte pergunta: “Como, porém, aqui Cristo manda a todos, em geral, vender tudo o que têm e dar aos pobres, sendo que em outra passagem aconselha isso só àqueles que querem ser perfeitos? (cf. Mt 19, 21). A resposta não é difícil: ou aqui Ele fala apenas aos discípulos, os quais queriam ser perfeitos, ou, se fala a todos os cristãos, refere-se à disposição de espírito, como dizem os teólogos. Porque, embora não seja a todos necessário vender tudo quanto tenham, deve-se, isto sim, enquanto cristão, ter a disposição de espírito de vender todos os seus bens, se for preciso, para não perder Cristo”.11

Dar na Terra para receber no Céu

Ainda uma palavra sobre os benefícios recebidos por quem dá esmolas. De si, mais lucra quem dá do que quem recebe: “É maior ventura dar, que receber” (At 20, 35). “Não há pecado que a esmola não possa apagar. Contudo, a esmola não se faz apenas com dinheiro, mas também pelas obras, como quando alguém protege um outro, quando um médico cura ou quando um sábio aconselha”.12

Daí ser um inesgotável tesouro no Céu nossa riqueza distribuída aos necessitados, aqui na Terra. As virtudes praticadas diante de Deus para prestar-Lhe culto e louvor, as boas obras, os conselhos dados a outros, o instruir, orar pelos aflitos e necessitados, como também dar esmolas, constituem um tesouro no Céu. Nessa categoria se incluem: a invocação aos santos, a confiança em sua intercessão, a frequência aos Sacramentos, como também todo ato de piedade e qualquer obra santa.

Voltar o coração para os tesouros eternos

Pelos costumes da época, a bolsa para moedas era de uso comum aos homens e às mulheres. Tratava-se de peças de tecido que, apesar de reforçadas, poderiam vir a desgastar-se com o tempo ou ser danificadas pela traça, ficando assim em risco seu conteúdo. Bem pior era a situação, quando a habilidade de algum ladrão fazia desaparecer essas bolsas de seu lugar habitual, para ali não mais retornarem.

Pela força de sua própria natureza, não pode o homem deixar de buscar a felicidade, quer seja neste mundo, quer na eternidade, onde ele coloca o objetivo de seus anseios. Abandonado às inclinações de sua concupiscência, ele se entregará às volúpias da matéria e nela colocará o seu coração.

O exemplo de Maria

Foi Maria quem, de dentro de nossa natureza, elevou sua alma virginal a engrandecer o Senhor e a fazer d’Ele seu tesouro. De sua fidelidade nasceu uma nova raça que São Luís Grignion de Montfort denomina “a raça da Virgem”, raça esta que constitui o calcanhar da Soberana Senhora, chamada a esmagar a cabeça da serpente. Ela nos ensina a, desta Terra, fazer uma escola preparatória para o Céu, pois os tesouros aqui perecem, são vis, frequentemente nos degradam, afligem e nos empobrecem. A morte no-los arranca das mãos, de maneira implacável.

O oposto se dá com os tesouros do Céu: eles nos enobrecem, consolam e nos asseguram uma eternidade feliz. A própria morte nos confere a posse irreversível destes bens.

“Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas”

35 “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas.
36 Fazei como os homens que esperam o seu senhor quando
volta das núpcias, para que, quando vier e bater à porta, logo
lha abram. 37 Bem-aventurados aqueles servos, a quem o senhor
quando vier achar vigiando. Na verdade vos digo que se cingirá,
os fará pôr à sua mesa e, passando por entre eles, os servirá. 38
Se vier na segunda vigília, ou na terceira, e assim os encontrar,
bem-aventurados são aqueles servos”.

Sem uma ilação muito precisa, São Lucas passa a reproduzir duas parábolas afins quanto à sua substância. A primeira delas está contida nestes quatro versículos. Ambas são precedidas por uma incisiva recomendação do Divino Mestre: a necessidade de manter cingidos os rins, como também de conservar acesas as lâmpadas.

Simbolismo do ato de cingir-se e das lâmpadas acesas

Conforme nos descrevem as próprias Escrituras Sagradas (cf. Ex 12, 11), os hebreus — e em geral os orientais — procuravam por meio de um cíngulo atado à cintura recolher um pouco suas longas túnicas, tanto para, desta forma, poderem caminhar com mais desenvoltura, como também para facilitar o serviço à mesa.

Porém, o conhecimento destes costumes levanta uma perplexidade para a perfeita compreensão do significado do simbolismo das figuras empregadas pelo Salvador, nesta passagem: por que devem os servidores colocar-se em situação de viagem se estão apenas aguardando o retorno do senhor da casa? Ademais, qual a razão de encontrarem-se dispostos a servir à mesa quando o senhor chegaria satisfeito pelo que comera na festa?

Essas dificuldades são inteiramente superadas pela real explicação das minúcias dos costumes orientais daqueles tempos. Como já vimos anteriormente, eles usavam túnicas bem folgadas, que chegavam até os pés. Ora, para caminhar ou para o serviço, era indispensável recolher as extremidades da vestimenta, retendo-a e tornando mais curta sua extensão mediante um cíngulo bem ajustado à cintura.

Por sua vez, esse cingir de rins fazia parte também da boa compostura e educação, sobretudo para receber ou servir alguém de categoria superior. Dentro da própria casa podia-se estar à vontade na intimidade familiar, deixando de usar o turbante, o calçado e também o cíngulo. Descalço, sem cobertura e, sobretudo, com roupa solta, era a nota comum de intimidade, de despreocupação e até de um certo relaxamento. Ora, é justamente essa a nota inconveniente a ostentar diante do senhor que chega da festa.

Quanto à figura das lâmpadas, torna-se fácil sua compreensão se nos reportarmos à parábola das virgens prudentes e das virgens loucas (cf. Mt 25, 1-13). “Quando o dono da casa chega de noite, costumam os criados ir à sua frente com tochas acesas. Assim quer Cristo que façamos também nós. As tochas acesas significam que devemos ter tudo preparado para receber Cristo no dia do Juízo, de modo a não termos nada a pôr em ordem naquela ocasião. Haverá coisa mais simples do que, quando o dono bata à porta, acender a luz necessária? Ora, até isto quer o Senhor que esteja já feito antes de sua chegada. Pois, além de que ele não esperaria até o outro acender a tocha, essa espera seria indecorosa e inadequada à dignidade do dono da casa”.13

A chegada do Senhor

Em seguida começa, propriamente dita, a primeira parábola. Em seus detalhes percebe-se ultrapassar a realidade. Trata-se de uma alegoria, pois, para receber o senhor, não seria necessário estar desperta toda a criadagem. Tanto mais que é sempre de conhecimento certo a hora de saída para uma festa, mas não a de retorno, a qual, aliás, não costuma ser cedo.

No relacionamento humano normal não se daria jamais um fato como o descrito nos versículos acima. Nenhum senhor exigiria de seus servos — nem sequer naqueles tempos — que esperassem, em vigília, a sua volta de uma festa. Quando muito — e aqui se compreende — o porteiro. Ademais, encontrando-os todos acordados, depois de um cumprimento, determinaria que fossem dormir, mas jamais os colocaria a servir à mesa, sobretudo em horas tão avançadas.

Diante dessa pluralidade de inusitados, discerne-se claramente que essas exceções só podem se verificar no plano sobrenatural da graça de Deus: “Serei Eu mesmo a tua recompensa demasiadamente grande” (Gn 15, 1). “O significado verdadeiro e completo é que se, ao chegar, Cristo nos encontrar vigilantes e preparados pelas boas obras, Ele nos fará como senhores no Céu, porque comeremos e beberemos como tais na mesa do seu Reino”.14

A insistência sobre uma possível segunda ou terceira vinda do senhor visa, evidentemente, reforçar a grande necessidade de estarmos vigilantes.

Necessidade da vigilância

39 “Sabei que, se o pai de família soubesse a hora em que viria o
ladrão, vigiaria sem dúvida e não deixaria arrombar a sua casa”.

Este versículo não traz nenhuma dificuldade de interpretação, pois todo ladrão busca uma ocasião fácil para sua ação e não deseja ser percebido. Em face desta prerrogativa, o dono da casa, sabendo a hora em que se daria o roubo, estaria à espreita para impedi-lo. Assim também nós, pervadidos da certeza de que o Juiz Supremo virá, mas não sabendo em que momento, devemos estar vigilantes ininterruptamente para não sermos apanhados de surpresa à sua chegada.

40 “Vós, pois, estai preparados porque, na hora que menos pensais, virá o Filho do Homem”.

Os servidores vigilantes nos proporcionam o conhecimento do prêmio imerecido que nos aguarda se, tal como o fizeram eles, procedermos também nós, amando sem limites o Senhor, e se em razão desse amor guardarmos sua palavra e observarmos os seus mandamentos. Ao retornar o Salvador, Ele nos servirá. Por outro lado, o mestre vigilante nos incita a sermos cuidadosos em evitar nosso encontro com o Senhor numa circunstância desfavorável, por falta de vigilância. São dois conselhos harmônicos e fundamentais.

O Senhor virá. É absolutamente certa sua vinda. Por isso: “Vós, pois, estai preparados porque, na hora que menos pensais, virá o Filho do Homem”.

Poderá ser, portanto, num dia inesperado; numa idade na qual nada havia para temer, quando os grandes planos se multiplicavam, e, quiçá, as inclinações já se lançavam nos prazeres, realizações, negócios… Nada melhor para obter uma incansável, robusta e contínua vigilância do que recorrermos à Mãe de Misericórdia. E se ainda assim viermos a falhar, Ela nos obterá o perdão de nossas misérias.

A parábola do administrador fiel

Nos versículos finais, respondendo a uma pergunta de Pedro que desejava saber se a parábola era exclusivamente para eles ou para todos, o Divino Mestre elabora uma outra, a do “administrador fiel e prudente”. Torna-se patente o caráter universal de seu ensinamento e, portanto, o quanto se aplica a qualquer um de nós. Basta considerar de perto a incerteza sobre a hora de nossa morte, para nos darmos conta da enorme importância da virtude da vigilância.

Obrigações de quem tem autoridade sobre outros

Ao fazer uso da imagem do administrador, procura Ele representar aqueles que têm alguma autoridade ou poder sobre outros. A aplicação incidia diretamente sobre Pedro e os Apóstolos, que receberiam em suas mãos a instituição da Igreja, e também abrangeria os pais, tutores, etc.

Nestes versículos, o prisma continua sendo o da vigilância, mas agora com outra nota característica: a da prudente fidelidade. A primeiríssima obrigação do administrador é a de não se apropriar de nenhum dos bens que o senhor lhe confiou e por isso não procurar seu prazer, sua glória e sua vontade, mas sim o puro interesse de seu senhor. Em segundo lugar, deve ser prudente, discernindo com senso de hierarquia como distribuir os trabalhos em proporção aos talentos e às forças de cada um. Ademais, deverá prover às necessidades de todos, oferecendo-lhes os meios, instruções, sustento, etc., para o desempenho das respectivas funções.

Procedendo com esse amor à perfeição, a autoridade, ao encontrar-se com seu senhor, além da bem-aventurança, receberá a administração de todas as suas posses.

O castigo do administrador infiel

Quanto ao administrador infiel, também com traços irreais, o Divino Mestre busca delinear a principal causa de seus delitos: o esquecimento de que possui um senhor e que este retornará, ou então, convencer-se de que seu amo não voltará tão cedo. Daí os maus tratos, a injustiça, o abandonar-se à gula e às desordens. Este também será surpreendido pelo senhor e por ele será castigado com a separação eterna…

A seguir trata da proporcionalidade dos castigos, mostrando como, por justiça, “a todo aquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido”. É nisto, mais especialmente, que se concentra a resposta oferecida pelo Mestre a São Pedro, cuja substância a quase todos os santos faz temer e tremer. Quantos deles não buscaram uma via penitencial, pela consideração destas divinas palavras!

Sobre esta passagem, comenta o Cardeal Gomá: “Como na outra vida não há igualdade de prêmios, da mesma forma não há igualdade de castigos, diz São Basílio. Serão condenados às chamas todos os que as tiverem merecido, uns, porém, as sofrerão de modo mais intenso do que outros; todos serão roídos pelo verme inextinguível, mas este será mais forte ou mais indolente.

Por isso, diz Teofilato, os sábios e doutores, os quais deveriam ter agido de acordo com sua doutrina e dela tirado incentivo para os demais, serão atormentados com maior rigor. Este pensamento deveria nos fazer tremer, se Deus nos favoreceu com dons de privilégio no conhecimento de sua vontade, ou nos concedeu graças extraordinárias, ou nos conferiu poderes para comunicar aos outros a sua vontade”.15

Que esta Liturgia de hoje nos compenetre a fundo da grande necessidade de sermos diligentes na preparação de nosso encontro com o Senhor, o qual poderá dar-se no momento menos esperado. Que usemos bem de nosso tempo, palavras e ações. Em síntese, que sejamos sempre santos. ♦

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O Inédito sobre os Evangelhos. Vol 06. XIX Domingo do Tempo Comum.
1) SANTO AGOSTINHO. De moribus Ecclesiæ, c.24. In: Obras. Madrid: BAC, 1956, v.IV, p.317.
2) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.47, a.9.
3) SÃO BERNARDO. Sermo XI in psalmum XC, n.1 In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2005, v.III, p.551.
4) Idem, ibidem.
5) SANTA TERESA DE LISIEUX. Conseils et souvenirs. Lisieux: Office central de Lisieux, 1954, p.74.
6) RODRÍGUEZ, SJ, Afonso. Exercício de perfeição e virtudes cristãs. Lisboa: União gráfica, 1950, p.82.
7) TEOFILATO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XII, v.32-34.
8) SÃO BEDA, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, op. cit.
9) SÃO CIRILO DE JERUSALÉM, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, op. cit.
10) MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.597-598.
11) Idem, ibidem.
12) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO,apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, op. cit.
13) MALDONADO, op. cit., p.600.
14) Idem, p.603.
15) GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Años primero y segundo de la vida pública de Jesús. Barcelona: Acervo, 1967, v.II, p.194.

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