Antes e depois de Maria

Solenidade de Nossa Senhora Aparecida

Uma nova era na espiritualidade do gênero humano se inicia publicamente com o milagre das Bodas de Caná. Além de conferir ao casamento um altíssimo significado, Jesus inaugura a mais excelente via para se obter o perdão e a graça: confiar na mediação e na onipotência suplicante de Maria

Monsenhor João S. Clá Dias, EP, Fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório


I – Antecedentes

“Jesus fez ainda muitas outras coisas. Se fossem escritas uma por uma, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se deveriam escrever” (Jo 21, 25).

Riqueza teológica do Evangelho de São João

Assim termina São João o quarto Evangelho, o de sua lavra. Quando o escreveu, por certo já conhecia — e de há muito — os três anteriores. Daí seu empenho em completá-los nos detalhes e aspectos mais necessários para os dias de sua divulgação. Na Ásia Menor, onde se espraiava a Igreja nascente, pululavam os erros de uma perigosa gnose ameaçadora da boa e sã doutrina deixada em herança por Jesus aos seus discípulos. Nessas circunstâncias, importava antes de tudo provar a divindade de Nosso Senhor, o Messias.

Que um homem possa ser inteligente tanto quanto um puro espírito, não é difícil excogitar. Mas admitir a união de duas naturezas — uma eterna e absoluta, outra criada e contingente — numa só Pessoa, e esta divina, seria totalmente inconcebível até pelos Anjos, em sua pura natureza, se não fosse o dom da fé. Ora, foi bem esse o objetivo de São João em seu Evangelho, ou seja, expor os principais fatos e doutrinas de modo a servirem de base para a ação do Espírito Santo sobre as almas, ajudando-as a crerem em Jesus, Homem e Deus.

Na época, não havia computadores nem impressoras, os livros se reduziam aos rolos de pergaminho, a escrita era lenta e quase desenhada. Era, pois, indispensável a São João, em vez de fazer uma narração exaustiva, condensar em poucas palavras todo um universo de pensamento e considerações. Aqui está uma das razões pelas quais, na Escritura Sagrada, cada palavra é densa de significação.

Os cinco primeiros discípulos

Inicia ele seu Evangelho com uma das mais belas descrições doutrinárias, e ao mesmo tempo poética, sobre a geração eterna do Verbo e a união das duas naturezas — divina e humana — na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade: “E o Verbo Se fez carne” (Jo 1, 14).

Nos seus dezoito primeiros versículos, João sintetiza de maneira magistral a teologia católica relativa à divindade de Cristo.

Logo após, São João se apoia no testemunho dado pelo Batista para confirmar toda a exposição feita anteriormente, já agora na linha dos fatos históricos, seguindo os rigores de uma nobre, eficaz e irrefutável didática. O Precursor havia produzido uma verdadeira comoção em todo Israel a ponto de julgar necessário declarar: “não sou o Cristo” (Jo 1, 20), e afirmar categoricamente não ser “digno de desatar a correia das sandálias” (Jo 1, 27) de quem viria depois dele.

A palavra de João Batista tinha peso de lei em Israel e ecoou mesmo além de suas fronteiras, ao longo de muitas décadas. Ouvia-se ainda esse eco nos dias em que o Discípulo Amado escreveu seu Evangelho. O testemunho do Apóstolo selava o do Precursor: “Eu O vi e dei testemunho de que Ele é o Filho de Deus” (Jo 1, 34).

Na sequência — depois de documentar sua transferência, juntamente com André, das mãos do Batista para as de Jesus — o Evangelista narra o chamado aos outros três discípulos, Pedro, Filipe e Natanael. Digna de nota é a manifestação do discernimento divino de Jesus em relação a Natanael, provocando neste a exclamação: “Mestre, Tu és o Filho de Deus” (Jo 1, 49).

Estes são os pressupostos para melhor se entender o primeiro e portentoso milagre do Senhor, nas Bodas de Caná.


II – O porquê do milagre

Frequentemente, os profetas no Antigo Testamento se viam na contingência de comprovar por algum prodígio a autenticidade de suas previsões. Assim se deu, por exemplo, com Moisés (cf. Ex 4, 30-31), Elias (cf. I Rs 18, 19-39) ou Samuel (cf. I Sm 12, 16-18). Ora, depois de chamar os cinco primeiros seguidores, quis o Mestre operar algo para confirmá-los na fé, como o fizera com Natanael. Foi provavelmente por essa razão que Jesus “manifestou sua glória”, efetuando seu primeiro milagre nas Bodas de Caná, ou seja, para levar seus discípulos a crerem na divindade de sua origem e missão (cf. Jo 2, 11).

E assim procedeu devido a uma suave e afetuosa súplica de sua Mãe. O Evangelho ressalta o importante papel de intercessora de Maria e deixa entrever seu maternal carinho para com os futuros Apóstolos ali presentes. Era o começo da realização da promessa feita por Jesus a Natanael, três dias antes: “Verás coisas maiores do que esta” (Jo 1, 50). Seu intuito de robustecer até tornar inabalável a fé daqueles que O acompanhavam só atingiu sua plenitude com a descida do Espírito Santo. Antes disso, apesar de todas as maravilhas operadas pelo Salvador, essa virtude continuou sendo débil e imperfeita em todos eles.

Com despretensiosa simplicidade e vivacidade de colorido, João descreve a cena da qual foi testemunha ocular, deixando transparecer a grande impressão por ela causada em sua própria alma e nas de seus companheiros.

Por que durante a celebração de umas bodas?

Nesse solene começo da vida pública de Jesus, sobressai-se de forma muito especial o fato de ter Ele escolhido uma festa nupcial como cenário do início de sua missão pública. O casamento não havia ainda sido elevado à categoria de Sacramento. Entretanto, não devemos nos esquecer de seu alto significado na sociedade judaica de então, pois, esperando a vinda do Messias, o povo atribuía não pouca importância à união entre o homem e a mulher com vistas a perpetuar a raça até o seu nascimento. As cerimônias de noivado — realizadas um ano antes —, assim como as das núpcias, eram revestidas de grande solenidade e precedidas de contratos financeiros entre os pais dos cônjuges. Seria ultrapassar os limites deste artigo, descrevê-las em seus pormenores.

Por outro lado, Jesus estava iniciando sua missão pública e desejava fundar a Igreja com vistas à santificação de todos. Ora, a célula mater da estruturação social sempre foi, e nunca deixará de sê-lo, a família, como podemos constatar nas palavras do Papa João Paulo II: “A crise da família torna-se, por sua vez, causa da crise da sociedade. Não poucos fenômenos patológicos da solidão à violência e à droga explicam-se também porque os núcleos familiares perderam a sua identidade e função. Onde a família cede, a sociedade perde o seu tecido conectivo, com consequências desastrosas que investem [contra] a pessoa, em particular as mais frágeis: das crianças aos adolescentes, aos portadores de deficiência, aos doentes, aos idosos…[…]

No Catecismo da Igreja Católica lê-se: ‘A família é a célula originária da vida social. É ela a sociedade natural em que o homem e a mulher são chamados ao dom de si no amor e no dom da vida. A autoridade, a estabilidade e a vida de relações no seio da família constituem os fundamentos da liberdade, da segurança, da fraternidade no seio da sociedade. A família é a comunidade em que, desde a infância, se podem aprender os valores morais, começar a honrar a Deus e a fazer bom uso da liberdade. A vida da família é a iniciação na vida na sociedade’ (n. 2207)”.1

Nas Bodas de Caná, segundo a interpretação de famosos teólogos e exegetas, Jesus quis reafirmar a importância conferida pela sociedade antiga à união conjugal e santificá-la, preparando assim as vias para dar-lhe um caráter sacramental.

III – Os ensinamentos

Caná era uma cidade de maior tamanho e influência que Nazaré. A História nada registra sobre a origem das relações entre a Sagrada Família e os nubentes, nem sequer por que Jesus e Maria foram convidados para a festa. As hipóteses a respeito se multiplicam. Entre elas, menciona-se um eventual estreitamento de relações, decorrente de serviços prestados por São José ao longo do tempo.

A súplica onipotente de Maria

As peculiaridades e detalhes perderam-se pelo caminho, talvez por desígnio de Deus, a fim de concentrar a atenção dos séculos futuros na tão paradigmática festa das núpcias de Caná. Ali está simbolizado o lar católico como deve ser, e indicada a conduta a seguir face aos problemas e dificuldades da vida. Ali está prefigurada a família cristã assistida por Cristo, através da intercessão de Maria. A partir desse episódio, todos os cônjuges, até o fim do mundo, devem firmar-se na certeza de que Jesus solucionará qualquer drama ou aflição, se invocarem a onipotente mediação de Maria.

Harmonia conjugal

As épocas e os povos atingem seu esplendor quando a sociedade observa com rigor os princípios naturais e divinos relativos à constituição familiar. Este vasto e delicado assunto é de capital importância. Recordemos, a propósito, as palavras de sabedoria de um famoso Padre da Igreja, São João Crisóstomo:

“Ouve, marido, o que te pede São Paulo: ‘Amai vossas mulheres como Cristo amou a Igreja’ (Ef 5, 25). Viste qual é a medida da obediência? Pois igual deve ser a do amor. Queres que tua mulher te obedeça como a Igreja a Cristo? Pois ama tua esposa como Cristo ama a Igreja. Ainda que tenhas de sacrificar a vida por seu amor, ainda que tenhas de suportar mil padecimentos, não terás igualado nunca o que fez Cristo. […] Ainda quando vejas que ela te despreza e te insulta, tens de submetê-la a teus pés com cuidado, com afeto e com amizade. Não há um laço mais forte que o do amor para conciliar o marido e a mulher”.2

A harmonia conjugal torna perene, exemplar e frutuosa toda e qualquer atividade do marido ou da esposa; sobretudo, desse virtuoso entendimento se beneficiam os filhos. Por isso afirma o Eclesiástico: “De três coisas se compraz o meu espírito, as quais têm a aprovação de Deus e dos homens: […] um marido e mulher que se dão bem entre si” (25, 1-2).


Não buscar dinheiro ou beleza, ao casar-se

“Ditoso o homem que tem uma virtuosa mulher, porque será dobrado o número de seus anos. […] A mulher virtuosa é uma sorte excelente, é o prêmio dos que temem a Deus e será dada ao homem pelas suas boas obras” (Eclo 26, 1.3). Muitos conselhos poderíamos colher da Escritura e da espiritualidade da Igreja sobre as qualidades do matrimônio e sobre o quanto deve ele basear-se na virtude e na santidade, e não em motivos inferiores como a beleza física e o dinheiro. Fazer consistir nestes valores as razões essenciais de uma união indissolúvel é sinal de completa insensatez, pois a beleza física se desfaz com o passar dos anos e a riqueza de um cônjuge pode trazer muita aflição de espírito. Adverte-nos ainda o Eclesiástico: “Não olhes para a formosura da mulher, e não cobices uma mulher pela sua formosura” (25, 28). “Todo o preço é nada em comparação com uma alma casta” (26, 20).

Por intercessão de Maria

E foi numa festa nupcial que, a pedido de sua Mãe, Jesus quis realizar seu primeiro milagre, para assim tornar patente aos olhos do mundo o quanto o matrimônio deve ser tomado como uma via de santificação.

Maria já se encontrava nas bodas quando chegaram Jesus e seus discípulos. Bem se pode imaginar a emoção da Santíssima Virgem ao conhecer os neosseguidores de seu Filho. Certamente Ela os tratou, logo de início, com um carinho maternal todo feito de amor. Ali começou a se explicitar sua proteção especial por aqueles que resolvem entregar-se a Nosso Senhor Jesus Cristo. Não terá sido também em consideração aos Apóstolos — além de sua delicada atenção para com os nubentes — que Nossa Senhora pediu um milagre a Jesus?

IV – A mediação eficaz e a onipotência suplicante de Maria

A margem do profundo respeito havido no diálogo entre Mãe e Filho, a narração de São João permite levantar uma conjectura. Não é impossível que, ao longo de trinta anos de vida doméstica pervadida de afeto e mútua compreensão, o Filho tenha revelado à Mãe os grandiosos mistérios da Eucaristia.

E, neste caso, Maria poderia ter pensado que havia “chegado a hora” da instituição desse Santo Sacramento e Se inflamado no desejo de novamente receber em seu interior — já não como gestante, mas em sua Primeira Comunhão — o seu Filho, sob as Espécies Eucarísticas. Ao lado de incontáveis hipóteses plausíveis, uma é inteiramente certa:

Jesus operou esse milagre, por intercessão de Maria, para inculcar-nos a convicção de que, apesar de não haver chegado a hora, por uma palavra dos lábios da Mãe, Ele nos atenderá. Eis que em Caná abriu-se uma nova era na espiritualidade do gênero humano, com a inauguração de um especial regime da graça.

Ademais, em Caná, Maria nos ensina algo muito importante. Numa análise superficial, parece inexplicável a atitude de Nossa Senhora, pois, apesar da negação de Jesus, Ela ordena aos criados fazerem tudo quanto este lhes dissesse. Não havia Ele dito que não chegara ainda sua hora? Fica, portanto, em quem lê o Evangelho, a impressão de Maria não ter feito caso dessa resposta negativa.

Esclarece-nos a teologia ser esta atitude de Maria — à primeira vista um tanto obscura — uma excelente lição para nós.

Nem todas as determinações de Deus são absolutas. Há algumas que são condicionadas aos desejos e reações nossas. Ou seja, elas se cumprirão ou não, dependendo da manifestação de nossas disposições. Se Maria não tivesse recomendado aos serventes que agissem de acordo com as orientações de Jesus, os nubentes e seus convidados não teriam tomado o melhor dos vinhos da História, nem os Apóstolos assistido a tão grandioso milagre.

De onde se conclui ser importante rezarmos a Deus com fervor e constância, manifestando-Lhe nossas necessidades, pois é possível que Ele esteja à espera de nossa atitude para seguir uma ou outra via. Em Caná aprendemos de Maria o quanto Deus quer a nossa colaboração em sua obra.

Devido a esse sublime papel de medianeira e de onipotência suplicante da Santíssima Virgem, que se inicia publicamente nas Bodas de Caná, talvez pudéssemos dividir a História da espiritualidade em duas grandes eras: antes de Maria e depois de Maria. ♦


1) JOÃO PAULO II. Audiência Geral, de 1/12/1999.
2) SÃO JOÃO CRISTÓSTOMO. Homilies on Ephesians. Hom.XX. In: Nicene and Post-Nicene Fathers. Massachusetts: Hendrickson, 1995, v.XIII, p.144.
3) Fonte: O meu Devocionário, Edições Paulinas, Porto Alegre, 1963. Páginas 226 a 231.

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