A ressurreição de Lázaro

V Domingo da Quaresma

O grande amor de Jesus àquela família de Betânia tornava incompreensível sua aparente indiferença perante a enfermidade de Lázaro. Mas quando Deus tarda em intervir é por razões mais altas e porque certamente nos dará com superabundância

Mons. João S. Clá Dias, Fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório

 


O porquê dos milagres

Ao conceder a um taumaturgo a faculdade de realizar milagres, explica São Tomás, Deus tem por objetivo “confirmar a verdade por este ensinada”. O motivo principal se encontra na fé, pois a razão humana não tem suficiente altura para acompanhar os horizontes dessa virtude, e por isso muitas vezes é necessário serem as afirmações de caráter sobrenatural confirmadas pelo poder de Deus.

Esses atos que excedem as forças da natureza propiciam uma acrescida facilidade em crer na procedência divina de tudo quanto é transmitido a respeito de Deus. Ademais, através dos milagres, torna-se patente a presença de Deus no taumaturgo.

Ora, era indispensável ficar claro aos olhos de todos que a doutrina proclamada por Jesus procedia do próprio Deus e, muito mais ainda, proporcionar a cada um boas provas para crerem na união hipostática das duas naturezas, divina e humana, numa só Pessoa. Justamente em face dessa luminosa, magna e fundamental impostação se projeta a narração do Evangelho de hoje.

Naquele tempo, 1 havia um doente, Lázaro, que era de Betânia, o povoado de Maria e de Marta, sua irmã. 2 Maria era aquela que ungira o Senhor com perfume e enxugara os pés com seus cabelos. O irmão dela, Lázaro, é que estava doente. 3 As irmãs mandaram então dizer a Jesus: “Senhor, aquele que amas está doente”. 4 Ouvindo isto, Jesus disse: “Esta doença não leva à morte; ela serve para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela”. 5 Jesus era muito amigo de Marta, de sua irmã Maria e de Lázaro. 6 Quando ouviu que este estava doente, Jesus ficou ainda dois dias no lugar onde Se encontrava. 7 Então, disse aos discípulos: “Vamos de novo à Judeia”. 8 Os discípulos disseram-Lhe: “Mestre, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-Te, e agora vais outra vez para lá?” 9 Jesus respondeu: “O dia não tem doze horas? Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. 10 Mas se alguém caminha de noite, tropeça, porque lhe falta a luz”. 11 Depois acrescentou: “O nosso amigo Lázaro dorme. Mas Eu vou acordá-lo”. 12 Os discípulos disseram: “Senhor, se ele dorme, vai ficar bom”. 13 Jesus falava da morte de Lázaro, mas os discípulos pensaram que falasse do sono mesmo. 14 Então Jesus disse abertamente: “Lázaro está morto. 15 Mas por causa de vós, alegro-Me por não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos para junto dele”. 16 Então Tomé, cujo nome significa Gêmeo, disse aos companheiros: “Vamos nós também para morrermos com Ele”. 17 Quando Jesus chegou, encontrou Lázaro sepultado havia quatro dias. 18 Betânia ficava a uns três quilômetros de Jerusalém. 19 Muitos judeus tinham vindo à casa de Marta e Maria para as consolar por causa do irmão. 20 Quando Marta soube que Jesus tinha chegado, foi ao encontro d’Ele. Maria ficou sentada em casa. 21 Então Marta disse a Jesus: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. 22 Mas mesmo assim eu sei que o que pedires a Deus, Ele To concederá”. 23 Respondeu-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará”. 24 Disse Marta: “Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia”. 25 Então Jesus disse: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em Mim, mesmo que morra, viverá. 26 E todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais. Crês isto?” 27 Respondeu ela: “Sim, Senhor, eu creio firmemente que Tu és o Messias, o Filho de Deus, que devia vir ao mundo”. 28 Depois de ter dito isto, ela foi chamar a sua irmã, Maria, dizendo baixinho: “O Mestre está aí e te chama”. 29 Quando Maria ouviu isso, levantou-se depressa e foi ao encontro de Jesus. 30 Jesus estava ainda fora do povoado, no mesmo lugar onde Marta se tinha encontrado com Ele. 31 Os judeus que estavam em casa consolando-a, quando a viram levantar-se depressa e sair, foram atrás dela, pensando que fosse ao túmulo para ali chorar. 32 Indo para o lugar onde estava Jesus, quando O viu, caiu de joelhos diante d’Ele e disse-Lhe: “Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido”. 33 Quando Jesus a viu chorar, e também os que estavam com ela, estremeceu interiormente, ficou profundamente comovido, 34 e perguntou: “Onde o colocastes?” Responderam: “Vem ver, Senhor”. 35 E Jesus chorou. 36 Então os judeus disseram: “Vede como Ele o amava!” 37 Alguns deles, porém, diziam: “Este, que abriu os olhos ao cego, não podia também ter feito com que Lázaro não morresse?” 38 De novo, Jesus ficou interiormente comovido. Chegou ao túmulo. Era uma caverna, fechada com uma pedra. 39 Disse Jesus: “Tirai a pedra!” Marta, a irmã do morto, interveio: “Senhor, já cheira mal. Está morto há quatro dias”. 40 Jesus lhe respondeu: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?” 41 Tiraram então a pedra. Jesus levantou os olhos para o alto e disse: “Pai, Eu Te dou graças porque Me ouviste. 42 Eu sei que sempre Me escutas. Mas digo isto por causa do povo que Me rodeia, para que creia que Tu Me enviaste”. 43 Tendo dito isso, exclamou com voz forte: “Lázaro, vem para fora!” 44 O morto saiu, atado de mãos e pés com os lençóis mortuários e o rosto coberto com um pano. Então Jesus lhes disse: “Desatai-o e deixai-o caminhar”. 45 Então, muitos dos judeus que tinham ido à casa de Maria e viram o que Jesus fizera, creram n’Ele (Jo 11, 1-45).

Encontro com Marta e Maria

Betânia, segundo a própria narração, ficava a menos de 3 km de distância de Jerusalém. Essa propriedade pertencente à família de Lázaro havia sido utilizada por Jesus com frequência, quase todas as vezes que devia ir a Jerusalém, não só por sua proximidade, mas até mesmo pelo conforto. Essa é também a razão de ali se encontrarem muitos judeus. O luto era observado ao longo de sete dias, sendo os três primeiros reservados para o pranto e os quatro outros para receber as visitas de pêsames.

O costume rabínico era estrito e rigoroso, comportando até mesmo o jejum (cf. I Sm 31, 13), em meio às lágrimas (cf. Gn 50, 10). Em essência, ao retornar do enterro — que, aliás, devia ser no próprio dia do falecimento —, o ritual ordenava cobrir a cabeça e sentar-se ao chão com os pés descalços. As visitas não pronunciavam nenhuma palavra, pois essa iniciativa cabia apenas aos parentes dos falecidos.

O convívio, nessas circunstâncias, era silencioso. Assim permaneceu Maria, por não ter ideia da chegada de Jesus à aldeia, enquanto Marta foi ao seu encontro a fim de Lhe noticiar todo o ocorrido. Uma vez mais os fatos nos revelam as características próprias a cada uma das duas irmãs. Marta é mais dada à administração, às relações sociais, etc., e Maria mais ao fervor amoroso. Por tal motivo Marta não avisa sua irmã, pois seria impossível retê-la junto às visitas enquanto se desenrolasse seu diálogo com o Mestre. Aliás, esse diálogo não poderia ter transcorrido com maior ternura e delicadeza. Não há a menor sombra de queixa da parte de Marta ao afirmar: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”, pelo contrário, trata-se da manifestação de um pesaroso sentimento feito de confiança no poder de Jesus.

Maria, por sua vez, repetirá pouco depois exatamente essa mesma frase, permitindo-nos perceber o teor das conversas havidas entre ambas naqueles últimos dias.

Entretanto, a fé de uma e outra ainda não havia atingido sua plenitude, pois não podiam imaginar o grande milagre que iria ser operado por Jesus. Marta não tem noção do poder absoluto de Jesus, e daí o condicionar as ações do Divino Mestre aos pedidos que Ele faça a Deus: “Mas mesmo assim eu sei que o que pedires a Deus, Ele To concederá”.

Marta externa sua firme crença na ressurreição final e nessa ocasião espera rever seu irmão em corpo e alma, sem jamais imaginar a possibilidade de reencontrá-lo naquele mesmo dia. Jesus, o Divino Didata, vê chegado o momento de proferir uma das mais belas afirmações do Evangelho. Em outros trechos Ele terá revelado:

“Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6); “Eu sou a Luz do mundo” (Jo 8, 12); “Eu sou o pão da vida” (Jo 6, 35); mas nenhuma atinge a altura teológica desta, em questão: “Eu sou a Ressurreição e a Vida. Quem crê em Mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em Mim, não morrerá jamais”.

E com uma paternalidade comovedora pergunta a Marta: “Crês isto?”, para movê-la a um ato explícito de fé e fazê-la crescer em méritos.

O diálogo dera seus melhores frutos, era necessário consolar a outra irmã. Marta a avisa “dizendo baixinho” que o Mestre chegara. Conforme seu temperamento arrojado, saiu a toda pressa para encontrá-Lo. Seu gesto levou todos os visitantes a imitá-la; imaginando que ela iria chorar junto ao túmulo, seguiram-na.

Especialmente digna de nota é a cena de seu encontro com Jesus. Marta era mais controlada em suas emoções, determinada em seus objetivos e, portanto, capaz de expor em palavras todos os seus sentimentos. Maria, bem diferente de sua irmã, tem arroubos de fervor sensível pelo Mestre, seu amor não conhece fronteiras e nem permite ser freado em suas manifestações, sua alma seráfica a leva a lançar-se aos pés de Jesus, e o máximo que consegue exprimir é sua dor, em breves termos. De resto era chorar, soluçar, e com tal substância que todos se viram tocados por sua reação, acompanhando-a no pranto.

Maria era tão carismática em sua fé, no ardor de seus desejos e na comunicação de sua benquerença por Jesus, que Ele próprio “estremeceu interiormente, ficou profundamente comovido”. Bem dizia De Maistre: “La raison ne peut que parler, c’est l’amour qui chante!”. Nossas palavras podem convencer, mas nosso amor poderá até mesmo tocar o Sagrado Coração de Jesus. Quão humano, sem deixar de ser divino, Ele Se mostra nessa ocasião, sobretudo ao derramar, também Ele, suas preciosíssimas lágrimas, santificando, desta forma, as lágrimas roladas de todos os corações sofredores por amor a Deus ou arrependidos de suas faltas.

Era essa a maior prova de amor externada pelo Salvador, até aquele instante, em relação ao seu amigo Lázaro.

Sempre “pedra de escândalo” (Is 8, 14), os campos se dividem em vista de suas lágrimas. Alguns são tomados de admiração, outros O recriminam por ter deixado morrer Lázaro. Hipocrisia pura, segundo autores clássicos, pois se põem a julgar Jesus antes mesmo de qualquer ação sua. Esse é o efeito de uma antipatia preconcebida, radicada, talvez, no vício da inveja.


Ressurreição de Lázaro

Diferentemente de outros túmulos, este de Lázaro era escavado em rocha não no sentido horizontal, mas sim, no chão e na vertical. Para se chegar ao local onde haviam depositado o corpo de Lázaro, precisava-se descer um bom número de degraus. Ao redor do sepulcro, estavam todos em forte expectativa, pois os antecedentes prognosticavam um portentoso acontecimento.

Com magna autoridade, Jesus ordena, para espanto dos circunstantes: “Tirai a pedra!”. Marta, sempre criteriosa, não resiste em ponderar que o cadáver já estaria em decomposição depois de quatro dias. “Senhor, já cheira mal”. Magistral a resposta de Jesus: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?”.

Belíssima oração a de Nosso Senhor; com o túmulo já aberto, o mau odor ferindo as narinas dos presentes, a atenção não poderia ser mais intensa. Ele reza não por necessidade, “mas digo isto por causa do povo que Me rodeia, para que creia que Tu Me enviaste”.

Por um simples desejo seu, a lápide teria voltado ao nada e Lázaro surgiria à porta do sepulcro, rejuvenescido, limpíssimo e perfumado. E como era conveniente constar aos olhos de todos a potência de suas ordens, “exclamou com voz forte: ‘Lázaro, vem para fora!’”.


Dois portentosos milagres se operam, não só o da pura ressurreição. Lázaro estava atado da cabeça aos pés, impedido de caminhar; entretanto, subiu pela escada que dava acesso à entrada do túmulo, estando até mesmo com um sudário ao rosto. Imaginemos a impressionante cena de um defunto subindo degrau por degrau, sem liberdade de movimentos e sem enxergar, mas já respirando com visíveis sinais de vida.

“Desatai-o e deixai-o caminhar” é a última voz de comando do Divino Taumaturgo.

Nada mais relata o Evangelista; nenhuma palavra a respeito de Lázaro ou das manifestações de alegria de suas irmãs; apenas a conversão de “muitos dos judeus que tinham ido à casa de Maria”.

Escapa à Liturgia de hoje a traição de alguns que, seguramente indignados, “foram aos fariseus e lhes contaram o que Jesus realizara” (Jo 11, 46), levando o Sinédrio a decretar sua morte (cf. Jo 11, 53), matéria esta considerada com quanta profundidade ao longo da Semana Santa.


 Um convite à confiança

Aí está o poder de Cristo manifestado em pleno esplendor para alimentar-nos em nossa fé. Esta Liturgia nos convida a uma confiança maior que a do centurião romano, ou seja, é preciso crer em Jesus com um ardor marial. Se a Santíssima Virgem estivesse ao lado das irmãs, decerto — além de lhes aconselhar a aguardarem com paz de alma a chegada de seu Divino Filho — recomendaria a ambas que procurassem fazer “o que Ele vos disser” (Jo 2, 5).

Por maior que sejam os dramas ou aflições em nossa existência, sigamos o exemplo e a orientação de Maria, crendo na onipotência de Jesus, compenetrados das palavras de São Paulo: “todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são os eleitos, segundo os seus desígnios” (Rm 8, 28). ♦


O Inédito sobre os Evangelhos, Vol. 1. Ano A. Quaresma.

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