Embora constatemos a instintiva repugnância de nossa natureza em relação a todo sofrimento, é nele que se encontra a porta da autêntica felicidade, e no amor ao próximo o sinal característico do cristão
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP. Fundador dos Arautos do Evangelho
A harmonia da natureza humana no Paraíso
Nossa vida na face da Terra pode ser definida como uma grande prova, pois viemos a este mundo para enfrentar uma existência tisnada pelo pecado, repleta de dificuldades, e só se formos fiéis às graças recebidas obteremos o prêmio da eterna bem-aventurança. A prova é posta pelo Criador no caminho de todos os seres inteligentes, e nem sequer os Anjos foram chamados à visão beatífica sem passar por ela.1 Adão e Eva, nossos primeiros pais, tinham sido introduzidos no Paraíso, em graça, também para serem experimentados e não foram fiéis. Ao romper a obediência e comer o fruto proibido, foram expulsos do Éden e privados de muitos dos privilégios concedidos por Deus quando viviam em estado de justiça, dentre os quais a ciência infusa, que dava o conhecimento dos segredos da natureza, a impassibilidade, pela qual não adoeciam, e o magnífico dom de integridade.
O dom de integridade
Esse dom especialíssimo fazia com que todas as inclinações das paixões e os impulsos da natureza estivessem em harmonia com a lei divina.2 A sensibilidade e a vontade eram governadas pela razão perfeitamente equilibrada, e esta se submetia com docilidade às determinações de Deus. A ordenação do homem antes do pecado poderia ser comparada a um motor afinado, sem nenhum parafuso frouxo, ou a um crochê muito bem feito, sem nenhum ponto solto; em todos os movimentos de alma e de corpo reinava o mais completo equilíbrio, sem nenhum esforço. Com o dom de integridade jamais derramaríamos uma lágrima, não teríamos dores ou sofrimentos de qualquer tipo, e o drama não se apresentaria em nossas vidas, pois tudo seria conforme a ordem estabelecida pelo Criador.
Só conhecendo de perto Nosso Senhor e Nossa Senhora poderíamos ter uma ideia exata de tal privilégio, já que ambos o possuíram desde o primeiro instante da concepção, por não haver passado por Eles nem sequer a sombra da mancha do pecado. Em Jesus encontramos esse dom em grau infinito, pois n’Ele todas as ações humanas são reflexo das divinas, em consequência da união indestrutível entre ambas as naturezas. Esta graça de união faz com que Ele, mesmo enquanto Homem, seja intrínseca e absolutamente impecável, e que todo o seu Corpo e até o menor de seus movimentos sejam santos de maneira infinita.3 No caso de Nossa Senhora, pura criatura humana divinizada pela graça, reconhecemos esse dom por não haver n’Ela nenhum movimento desordenado.
Onde está a origem da necessidade do dom de integridade para o homem? No fato de ser ele um microcosmo, contando em sua natureza com elementos do reino mineral, vegetal, animal e espiritual, aos quais se acrescenta uma participação na vida divina, pela graça. Estes elementos trazem leis contraditórias que, devido ao pecado, se entrechocam em nosso interior. Por exemplo, se por um lado o elemento espiritual pede uma dedicação cada vez maior aos impalpáveis e ao sobrenatural, a lei animal se esquiva dessa tendência, chamando nossa atenção para o que é concreto e material. Enquanto o Mandamento de Deus ordena não cobiçar as coisas alheias, nossos instintos nos induzem à apropriação daquilo que nos agrada, embora não nos pertença.
Os exemplos poderiam ser indefinidamente multiplicados, pois há uma luta constante entre as várias leis que originam as dificuldades desta vida e causam tormento, perplexidade e dor.
Eis a razão de São Paulo afirmar: “No meu íntimo, eu amo a Lei de Deus; mas percebo em meus membros outra lei que luta contra a lei da minha razão e que me torna escravo da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7, 22-23).
É o preceito de Deus a exigir do Apóstolo um determinado comportamento, enquanto o instinto o leva a tomar atitudes em sentido oposto.
Esse é o drama do ser humano na face da Terra.
Por isso, querer programar uma vida sem sofrimento é algo impossível, pois não há ninguém livre de contrariedades. Não obstante, é factível compensar a ausência desse dom, fazendo com que, de alguma maneira, seus efeitos se operem em nossas almas?
Regressar às vias do dom de integridade
A solução se encontra em um fator a respeito do qual houve quem ousasse aproximá-lo ao gênero dos sacramentos,4 quiçá um “oitavo sacramento” — acrescentando de forma analógica um novo componente ao definitivo septenário que a doutrina católica nos ensina —, e este é o sofrimento.
Há na alma humana, de fato, uma aptidão que o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira designava como “sofritiva”, que consiste em “uma como que capacidade e necessidade de sofrer”.5
Da mesma forma que os nossos músculos precisam ser exercitados para não definhar, assim também nós — uma vez expulsos do Paraíso e perdido o dom de integridade — precisamos passar pelo exercício do sofrimento para que este equilibre nossa natureza desordenada.
E quando nossa faculdade de sofrer “não se esgota pelo sofrimento efetivo, acaba determinando uma frustração maior que faz sofrer mais do que o sofrimento. O modo menos sofrível de levar a vida consiste em sofrer.
Uma das razões profundas dos desequilíbrios modernos é que as pessoas não sofrem, porque acabam estabelecendo a ideia de que é possível levar uma vida sem sofrimento”.6 Numa palavra, é a dor que faz do homem uma criatura ditosa nesta vida de estado de prova.
Tal doutrina parece muito difícil de ser admitida, pois nossa natureza não pode rejeitar a felicidade e está a cada instante à sua procura. No entanto, já os filósofos pagãos intuíram, pelo simples recurso à razão e à lógica, o papel da dor na vida humana. “Julgo-te um desgraçado se nunca o foste: passaste a vida sem ter contrariedade; ninguém (nem mesmo tu) conhecerá até onde alcançam tuas forças”,7 chegou a afirmar Sêneca. Deus, que nos criou ávidos de encontrar a felicidade, também colocou em nossa alma a capacidade de sofrer.
Qual a razão para este divino modo de agir? É o que nos ensina com grande profundidade a Liturgia do 5º Domingo da Páscoa.
A verdadeira glória só nasce da dor
O Evangelho apresenta um trecho do discurso de despedida de Nosso Senhor na Santa Ceia. Nesse momento auge, em que Ele instituía para os séculos futuros o Sacramento da Eucaristia — o mais precioso de todos os Sacramentos, no que diz respeito à substância —, tinha diante de Si um assistente de péssimas intenções. Depois de Judas receber o pedaço de pão molhado, a morte entrou nele, pois, embora já estivesse em pecado mortal por ter tramado a entrega do Divino Mestre, tornou-se presa de um demônio animado de grande fúria, o qual não suportava mais a humilhação infligida aos infernos por um Homem que operava tão grandes milagres e tinha tanto poder. O espírito das trevas, desde muito antes, constatara quanto seu império periclitava, já fora de controle.8
31 Depois que Judas saiu do cenáculo, disse Jesus: “Agora foi
glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado n’Ele. 32 Se
Deus foi glorificado n’Ele, também Deus o glorificará em Si
mesmo, e O glorificará logo”.
À primeira vista, o versículo parece incompreensível. Qual é o momento, o agora, em que Nosso Senhor diz que é glorificado? É quando Judas abandona de forma definitiva o convívio do Colégio Apostólico, a fim de entregar o Salvador aos poderes deste mundo, para ser julgado e morto. Jesus, em sua natureza divina, tinha pleno conhecimento de todas as dores pelas quais iria passar, a ponto de transpirar Sangue no Horto das Oliveiras.
Perante a perspectiva da traição, porém, ficou “perturbado em seu espírito” (Jo 13, 21), pois, mesmo tendo em sua personalidade divina a ciência daquele instante, desde toda a eternidade, no que dizia respeito aos meros sentimentos humanos ainda não sofrera a experiência da deslealdade, o que dilacerou seu instinto de sociabilidade. Ademais, outro Apóstolo haveria de negá-Lo e os demais fugiriam; por isso Ele diz: “Para onde eu vou, não podeis ir” (Jo 13, 33). A cena é pungente, pois, sendo sua natureza humana perfeita, essa infidelidade Lhe custou muito mais do que custaria a qualquer um de nós.
“A alma tão delicada e ponderada de Jesus teve de sofrer múltiplas incompreensões, preconceitos e ideias ambiciosas de seus Apóstolos. […] Uma dor mais lancinante estava reservada ao Coração de Jesus: um dos Doze, que Ele havia escolhido com tanto zelo, acompanhado com tanto devotamento, a quem dera inclusive uma missão de confiança, deveria traí-Lo”.9 Cristo recebeu aquela ingratidão com equilíbrio perfeito, num estado de espírito plenamente resignado. Contudo, enquanto sofria, veio-Lhe também o consolo, porque sabia ser através dessa aceitação que iniciaria sua glória.
O Pai queria a maior glória para o Filho
A partir do momento em que Nosso Senhor — Segunda Pessoa da Santíssima Trindade e, ao mesmo tempo, Homem perfeitíssimo com a alma na visão beatífica, dotado de ciência infusa e de conhecimento experimental — deu seu pleno consentimento à Paixão, essa glória se realizou. Sua exaltação consistiu em ser preso, passar por todos os tormentos da condenação, subir ao Calvário, ser levantado na Cruz e ali derramar todo o Sangue, até o traspassamento do seu Coração. Quando o Verbo eterno Se encarnou, fê-lo invertendo uma lei por Ele instituída, pois sua alma fora criada na visão beatífica e, apesar disso, assumiu um corpo padecente, quando deveria ser glorioso.10 Ele rejeitou tais prerrogativas por desejar um corpo semelhante ao nosso, apenas não manchado pelo pecado, para poder padecer, dar-nos exemplo e, sobretudo, porque o queria o Pai, com vistas a que a glória eterna d’Ele enquanto homem fosse a maior possível.
O sofrimento bem aceito, amado e assumido Lhe obteve o triunfo, o que significa que o cumprimento dos desígnios do Pai não exigia a magnificência do corpo glorioso, os esplendores de um poder terreno ou uma exaltação da parte dos homens, mas apenas a conformidade com a dor.
Ademais, estava Nosso Senhor ciente de que o fim não era a morte, e sim a Ressurreição e a Ascensão aos Céus, onde receberia a definitiva glorificação e o reconhecimento eterno do Pai, dos Bem-aventurados e dos Anjos, por haver cumprido sua missão redentora. Reciprocamente, o Pai também seria glorificado, porque Ele e o Filho são um. Era essa união substancial que permitiria, pela aceitação do sofrimento tal como este se apresentava, que Jesus enaltecesse Aquele que O enviara.
Nossa glória também deve estar no sofrimento
Uma análise mais profunda dos padecimentos de Cristo indica que nossa glória também é obtida pelo sofrimento. Quantas vezes a graça nos inspira a trilharmos uma determinada via, que passamos a percorrer com entusiasmo, na qual, entretanto, surgem dificuldades. Diante do sofrimento nunca devemos desanimar. Pelo contrário, quando a cruz se apresentar, cabe-nos imitar Nosso Senhor Jesus Cristo: ajoelharmo-nos, oscular o instrumento de nossa amargura e pô-lo aos ombros com determinação, certos de que assim se inicia o caminho da nossa glória. Nesse sentido ensina com sabedoria São Francisco de Sales: “Quão felizes são as almas que […] bebem corajosamente o cálice dos sofrimentos com Nosso Senhor, que se mortificam carregando sua cruz, e que sofrem e recebem de sua divina mão toda sorte de acontecimentos, com submissão e amor, conforme o seu beneplácito”.11 O mesmo Doutor da Igreja ainda comenta: “O sofrimento dos males é a mais digna oferta que podemos fazer Àquele que nos salvou sofrendo”.12
Os dramas que temos de enfrentar são indispensáveis para a conquista da eternidade feliz. Ao aceitarmos um sofrimento com toda resignação, amor e piedade, introduzimos na alma a paz, pois fazemos calar o egoísmo e manifestamos, não só por palavras, mas também por atos, o desejo de ir para o Céu, uma vez que “a felicidade consiste em sofrer com peso e medida, tendo em vista um determinado fim”.13 Desta forma, quando a tribulação se abater sobre nós nunca devemos murmurar contra Deus pelo fato de tê-la permitido; devemos seguir o exemplo de Jesus, que exclamou: “Se for possível afasta de mim esse cálice, mas faça-se antes a tua vontade do que a minha” (Lc 22, 42). Cheios de contentamento, conformemo-nos com a vontade de Deus, certos de que tudo o que nos acontece visa ao bem de nossas almas, pois Ele não pode querer para nós o mal.
Consideremos com alegria que estamos nesta Terra apenas de passagem, pois, se nela permanecêssemos para sempre, os tormentos iriam variando e se sucedendo indefinidamente. Portanto, para aqueles que enfrentam bem a prova à imitação de Nosso Senhor, a morte significa ter chegado o momento de descansar. Por isso canta a Igreja na Liturgia dos defuntos: “requiescant in pace — descansem em paz”.
Não foi outro o ensinamento de São Barnabé e São Paulo aos fiéis de Antioquia, contemplado na primeira leitura desta Liturgia: “É preciso que passemos por muitos sofrimentos para entrar no Reino de Deus” (At 14, 22).
Por outro lado, a ausência do sofrimento significa a perda de uma valiosa oportunidade para comprovarmos o quanto somos contingentes e dependemos de Deus, já que existimos apenas porque Ele nos sustenta no ser, a cada instante. Dessa dependência só nos compenetramos pela dor, pois ela mostra a nossa pequenez e nos leva ao reconhecimento de que necessitamos de um Bem infinito, não existente em nós.
Uma prática antiga sob uma nova forma
Sem embargo, para que a dor bem aceita dê seus frutos, Jesus nos oferece um meio seguro: um novo mandamento para guiar a conduta de todos os que se consideram seus discípulos.
33a “Filhinhos, por pouco tempo estou ainda convosco”.
O Mestre estava ciente, como foi recordado, de que a hora da partida já se aproximava e, embora fosse ressuscitar, iria deixá-los após a Ascensão aos Céus. Assim, antes do início de seus suplícios, desejava transmitir as recomendações mais importantes, criando condições para que os Apóstolos se dessem conta da iminência da Paixão e fixassem a essência de sua divina doutrina.
34 “Eu vos dou um novo mandamento: amai-vos uns aos outros.
Como Eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros”.
Surpreende que na primeira frase deste versículo Nosso Senhor Se refira ao amor de uns pelos outros como um mandamento novo. Sabemos que desde o início da humanidade o amor já era praticado e todos se queriam de alguma maneira. Onde está a novidade? Precisamente na forma que nos é indicada, pois esse amor não é como antes. Esta novidade é o exemplo dado por Ele, conforme ensina São João Crisóstomo: “Como é que chamou ‘novo’ a este mandamento, se já é encontrado no Antigo Testamento? Ele o tornou novo pelo modo com que se amariam. Para este fim, acrescentou: ‘como Eu vos tenho amado’. […] Não mencionou os milagres que iam realizar e os identificou [os discípulos] por sua caridade. Por que fez isso? Porque esta virtude é o sinal distintivo dos homens santos e a base de toda virtude. Por meio dela todos somos salvos”.14
De fato, até então o amor se moldava por padrões humanos, correspondendo à retribuição de algum benefício recebido ou a uma iniciativa que traria como consequência o auxílio desejado. Sempre havia um fundo de interesse — ou de vantagem, pelo menos — no amor ao próximo como era concebido nas sociedades do Antigo Testamento. Pois bem, Jesus nos ensina não ser esse o amor que Ele tem por nós.
Enquanto Deus, Ele quer bem a cada um com amor perfeito, eterno e absoluto; bem como a partir de sua humanidade nos estima como irmãos, sendo que a origem dessa afeição é a sua divindade. Esse amor de Deus por suas criaturas é misterioso e tem suas peculiaridades, pois, como Criador, Ele é o único que não pode amar o que fez senão por amor a Si mesmo, já que, ao criar, deixou seu vestígio em todos os seres,15 conforme lemos no Livro da Sabedoria: “Porque amais tudo que existe, e não odiais nada do que fizestes, porquanto, se o odiásseis, não o teríeis feito de modo algum. Como poderia subsistir qualquer coisa, se não o tivésseis querido, e conservar a existência, se por vós não tivesse sido chamada? Mas poupais todos os seres, porque todos são vossos, ó Senhor, que amais a vida” (Sb 11, 2426).
Entretanto, em se tratando dos seres racionais, Deus não pôs neles apenas um rastro, mas fê-los à sua imagem.16 Podemos compreender isso melhor, em alguma medida, através de um exemplo. A máquina fotográfica goza de imensa aceitação em nossa sociedade, porque com ela se pode guardar a lembrança de algum momento da vida que gostaríamos de reviver. Ora, a fotografia é apenas uma reprodução inanimada dos acontecimentos, e não deixa de ser verdadeiro que ela retém algo do que se passa. Nós somos “fotografias”, nas quais as Três Pessoas da Santíssima Trindade Se comprazem em reconhecer sua imagem e em amar-Se a Si mesmas refletidas, contemplando em ato o plano idealizado desde toda a eternidade para cada um de nós.
Amor manifestado no empenho de santificar os outros
A extensão do amor divino é incomensurável, pois Deus está disposto a fazer por nós tudo quanto seja necessário, a ponto de ter oferecido a própria vida passando pela crucifixão, o pior suplício de seu tempo. Ele Se imolou por todos e o faria se fosse por um só homem. Por essa razão nosso amor para com os outros também deve ser levado até às últimas consequências, ambicionando para eles o que Deus quer para cada um: a santidade. Desejar que o próximo saia da consideração egoísta, pragmática e interesseira do mundo e rume para a Jerusalém Celeste é a mais perfeita manifestação de amor que podemos lhe dar.
Devemos empreender, para isso, todos os meios ao nosso alcance, suportando suas debilidades, corrigindo-o com compaixão, dando bons exemplos e sacrificando nossos gostos e preferências pessoais, se com isso o ajudamos na prática da virtude, ainda sabendo que esses pequenos atos representam muito pouco perto do que nos está reservado ao cruzar os umbrais da eternidade, pelos méritos infinitos do Divino Modelo. Maravilhoso mandamento que, ao ser praticado, ordena a alma e elimina apegos, caprichos e dificuldades do relacionamento humano. Desta maneira, todas as misérias se desvanecem, permanecendo apenas um amor sobrenatural, que é a ternura de Deus pelas criaturas e das criaturas entre si.
É oportuno também aplicarmos esse ensinamento a um plano individual, a cada um de nós. Se esse deve ser nosso amor para com os outros, recordemos que quando a prática da virtude da humildade é mal concebida, temos a tendência de considerar nossas próprias insuficiências para nos autodestruir, indo contra o amor de Deus. Uma vez que fomos criados, podemos afirmar com plena certeza que há em nós algum reflexo divino que deve ser objeto do nosso amor para conosco, paralelo ao amor que Ele nos tem. Quando fazemos algo de bom e Ele nos premeia, não está exaltando o nosso esforço, mas seus próprios dons,18 e, portanto, Se glorifica a Si próprio. E se são os dons d’Ele que reconhecemos em nós, cabe-nos amá-los para praticar o novo mandamento com toda integridade.
O sinal distintivo dos verdadeiros cristãos
35 “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se tiverdes
amor uns aos outros”.
Neste último versículo Nosso Senhor dá um passo a mais e declara ser a forma de amor ensinada por Ele o fator distintivo dos que realmente O seguem. As pessoas alheias ao convívio dos cristãos, ao verem um amor tão autêntico, dão-se conta de que ali está presente o próprio Deus. E apesar de ter Ele ido para o Céu, não abandonou sua Igreja, pois prometeu: “Sempre que dois ou mais estiverem reunidos em meu nome, eu estarei entre eles” (Mt 18, 20). O fato de vivermos sob o influxo do amor sobrenatural de que Ele nos deu exemplo é um modo de prolongar nesta Terra sua presença, orientando, amparando e instruindo com desinteresse os que também O amam, sem nenhum sentimentalismo, romantismo ou egoísmo, senão com um amor tão puro que cause admiração aos homens e até aos próprios Anjos, a ponto de estes últimos poderem encontrar na face da Terra um límpido espelho do convívio entre os eleitos na visão beatífica.
Sofrimento e amor: causas do prêmio final
Face ao panorama descortinado pelo Evangelho deste 5º Domingo da Páscoa, não podemos deixar de ter presente o fim a que nos conduz a noção sobrenatural do sofrimento e do amor ao próximo levado até à imitação daquele que Nosso Senhor manifestou por nós. Tal fim é apontado com muita clareza na segunda leitura, extraída do Apocalipse: “Esta é a morada de Deus entre os homens, Deus vai morar no meio deles. E eles serão o seu povo, e o próprio Deus estará com eles. Deus enxugará todas as lágrimas dos seus olhos. A morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem choro, nem dor, porque passou o que havia antes” (21, 3-4).
São João indica, profeticamente, o local destinado a todos os que seguirem as recomendações dadas pelo Redentor, onde não existe mais a dor e a alegria é plena na visão de Deus face a face.
Diante da eternidade feliz todo sofrimento desta Terra será nada, como escreveu Santa Teresinha: “quando penso que por um sofrimento suportado com alegria amaremos melhor a Deus durante toda a eternidade!”.19
Sim, nem sequer vamos nos lembrar das dificuldades que tivemos neste mundo, pois o estado de prova terá passado como num piscar de olhos. Restará apenas a bem-aventurança.
Não somos capazes de conceber como será a vida na eternidade: tão cheia de gozo que São Paulo, após subir ao terceiro céu, voltou sem conseguir exprimir em termos humanos o que Deus tem preparado para os que O amam (cf. I Cor 2, 9), e da qual São João Bosco, tendo visitado em sonho a antecâmara do Paraíso, regressou descrevendo maravilhas.20 O convívio com os Anjos, com os Santos, com Nossa Senhora e com Deus é o que nos aguarda; mas, para chegarmos a esse Reino, aceitemos com resignação todos os sofrimentos permitidos pela Providência Divina para o nosso bem e amemos nossos irmãos com sincera afeição.
Não nos esqueçamos de que as dores terminam na hora da nossa morte, enquanto no Céu “a caridade jamais acabará” (I Cor 13, 8).♦
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O Inédito sobre os Evangelhos. Vol. 05. Páscoa do Senhor.
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1) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.64, a.2.
2) Cf. Idem, q.95, a.1.
3) Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, p.72-73.
4) Cf. BEAUDENOM, Léopold. Méditations affectives et pratiques sur l’Évangile. Paris: Lethielleux, 1912, t.I, p.227-228; FABER, apud CHAUTARD, OSCO, JeanBaptiste. A alma de todo apostolado. São Paulo: FTD, 1962, p.112.
5) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 23 maio 1964.
6) Idem, ibidem
7) SÊNECA. Tratados filosóficos. Cartas. México: Porrúa, 1979, p.75.
8) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.81, a.2.
9) TANQUEREY, Adolphe. La divinisation de la souffrance. Tournai: Desclée, 1931, p.26.
10) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., III, q.14, a.1, ad 2.
11) SÃO FRANCISCO DE SALES. Sermon pour la feste de Saint Jean Porte-Latine. In: Œuvres Complètes. Sermons. 2.ed. Paris: Louis Vivès, 1862, t.IV, p.540.
12) SÃO FRANCISCO DE SALES. Lettre CXII, à une dame. In: Œuvres Complètes. Lettres Spirituelles, op. cit., t.X, p.333.
13) CORRÊA DE OLIVEIRA, op. cit.
14) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía LXXII, n.3. In: Homilías sobre el Evangelio de San Juan (61-88). Madrid: Ciudad Nueva, 2001, v.III, p.130.
15) Cf. ROYO MARÍN, OP, Antonio. Dios y su obra. Madrid: BAC, 1963, p.451.
16) Idem, ibidem.
17) SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. Vol de nuit. Paris: Gallimard, 1931, p.104.
18) Cf. SANTO AGOSTINHO. Epistola CXCIV, c.V, n.19. In: Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 1972, v.XIb, p.71.
19) SANTA TERESA DE LISIEUX. Carta 43b, à Irmã Inês de Jesus. In: Obras Completas. Paço de Arcos: Carmelo, 1996, p.345.
20) Cf. SÃO JOÃO BOSCO. Vestíbulo del Cielo. In: Biografía y escritos. Madrid: BAC, 1955, p.654-663.