Quem é o verdadeiro discípulo?

Comentário ao Evangelho do VIII Domingo do Tempo Comum

A missão de conduzir as almas ao Reino dos Céus é confiada por Nosso Senhor aos humildes, por reconhecerem a própria insuficiência. Por isso, seus esforços pela salvação das almas coroam-se de bons frutos

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP

A necessidade de um guia seguro

Num mundo em que a verdadeira caridade em relação ao próximo vai se tornando rara pelo predomínio do egoísmo, grande é o drama daqueles que atravessam a vida sem alguém que lhes indique o caminho da verdadeira felicidade. A esse respeito, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira tece o seguinte comentário:

“Lembro-me de que, em meu tempo de pequeno, nós caminhávamos pela rua e víamos muitos cachorros sem dono. Uma vez, vi minha avó passar um pito em um neto que se tinha revoltado: ‘Vá! Se quiser, faça o papel de cachorro sem dono’. De repente, a tragédia de não ser guiado apresentou-se em toda a sua amplitude a meu espírito. A alegria de ser guiado é, exatamente, a do fiel que tem em quem depositar a sua fidelidade, é a alegria de todo homem que tem o senso da hierarquia, o senso da ordem e o senso da disciplina”.

Ora, o desejo de ser ensinado e a busca de um guia seguro constituem uma característica das almas retas, que sentem sua própria contingência e natural incapacidade de chegar, por si só, às sublimidades da Revelação. Por isso, elas se voltam para os que receberam o mandato de ensinar em nome de Deus, desejando ser instruídas por eles nas vias da bem-aventurança. O papel de quem recebeu esta incumbência é indicar o caminho certo, sem desviar-se dos preceitos da Religião, nem para a direita nem para a esquerda (cf. I Mac 2, 22).

A Igreja, guia das almas

Mais do que a qualquer pessoa individualmente eleita para conduzir as almas, tal missão foi confiada por Deus à Santa Igreja Católica, tendo sido vinculada ao ministério petrino a salvação de todos. Ser guiado nesta Terra significa, então, ser conduzido pela Igreja, abrir-se para a luz dela emanada e para as graças que ela franqueia à humanidade. Cabe aos evangelizadores serem verdadeiros guias, mostrando aos homens a bússola da verdade.

Assim procedendo, eles colocam seus dirigidos no caminho da santidade, sendo imprescindível, contudo, manterem-se cientes de que seu papel se limita ao de serem meros instrumentos, devendo tudo atribuir à solicitude da Igreja.

Este princípio fundamental é um dos ensinamentos mais importantes contidos no Evangelho do 8º Domingo do Tempo Comum.

Um cego à frente de outros cegos

Naquele tempo, Jesus contou uma parábola aos discípulos:
“Pode um cego guiar outro cego? Não cairão os dois num buraco?”

Por essa parábola o Divino Mestre, ressaltando quão grande é a insensatez de aceitar a direção de quem não enxerga, desenvolve uma aplicação espiritual muito eloquente. Cego do Reino de Deus é aquele que se propõe a fazer apostolado sem conduzir as almas para Nosso Senhor, desejando gozar do prestígio e da fama que normalmente cercam os portadores da verdade. Tal cegueira se origina em uma grave discrepância de visualização, conforme assevera um exegeta contemporâneo: “Jesus Se refere a outro tipo de cegos: aos que não veem os acontecimentos nem as pessoas com o olhar de Deus e pretendem falar em seu lugar”.

Quem é chamado a evangelizar — todo batizado, portanto — está na condição de um modelo, de um verdadeiro guia perante aquele que ainda não foi iluminado pela luz da graça. Suas palavras, sua impostação de espírito e seu exemplo pessoal servirão de paradigma aos outros, que tenderão a ver nele a personificação das virtudes e da doutrina cristã professada.

Poderá acontecer, inclusive, que o enlevo pela Sacratíssima Pessoa de Jesus seja despertado pela integridade de vida das almas fervorosas, tal como se verificou entre os cristãos no corrompido Império Romano: “Vede como eles se amam”, comentavam os pagãos, pois nunca haviam presenciado a prática da caridade fraterna. O Apóstolo reconhece a força do exemplo quando lembra aos coríntios: “Fomos entregues em espetáculo ao mundo, aos Anjos e aos homens” (I Cor 4, 9). E também aos primeiros fiéis da comunidade de Filipos: “Brilhais como os astros do universo” (Fl 2, 15).

Este grande ensinamento se aplica de modo muito especial à pessoa do sacerdote, e reclama dos que lançam as redes do apostolado uma fortíssima vinculação com o Divino Mestre. A condução das almas rumo ao Reino dos Céus supõe a irradiação do sobrenatural, a comunicação das alegrias que inundam a alma de quem conhece a Jesus, vive de sua vida e experimenta a efusão de sua bondade. É a partir do comércio com Aquele que prometeu atrair todos a Si (cf. Jo 12, 32) que somos conclamados a levar ao mundo inteiro a Boa-nova da salvação. (…)

Cegueira espiritual

Ensina a doutrina católica que toda missão evangelizadora consiste em guiar as almas para Nosso Senhor Jesus Cristo: “A transmissão da fé cristã é primeiramente o anúncio de Jesus Cristo, para levar à fé n’Ele”. Entretanto, não faltaram na História homens que fizeram dessa altíssima missão uma alavanca para a concretização de seus objetivos pessoais, valendo-se das prerrogativas de anunciadores de Cristo para, no fundo, se anunciarem a si próprios, tornando-se cegos espirituais.

Chamados por vocação — que muitas vezes pode ser autêntica, outras vezes nem tanto — a instruir os outros, tais cegos julgam ter compreendido a verdade de forma tão plena como ninguém. Isso, que certamente pode acontecer, sendo motivo de enriquecimento para a Igreja quando é autêntico, torna-se uma catarata espiritual nos olhos da alma, caso não venha de Deus. Esta cegueira se manifesta quando os pseudoguias se recusam a aceitar qualquer correção, não admitindo nenhuma falha que eventualmente lhes seja indicada. Eles jamais reconhecem ser passível de erro sua doutrina ou conduta. (…)

Características do verdadeiro discípulo

“Um discípulo não é maior do que o mestre;
todo discípulo bem formado será como o mestre”.

Nosso Senhor traça, logo em seguida, o perfil do verdadeiro discípulo, confrontando a postura dos cegos com a de quem tem perfeita acuidade visual. Valendo-Se de insuperável didática, apresenta primeiro a figura dos que não veem, impressionando negativamente a multidão, para depois revelar a atitude de perfeição moral do discípulo fiel e, pela força do contraste, torná-la ainda mais atraente.

Ensina Ele que o discípulo bem formado, desenvolvendo todas as suas qualidades, será um prolongamento do mestre. Naquela sociedade onde o ensino religioso era baseado no relacionamento entre mestre e discípulo — pois assim funcionavam as escolas rabínicas —, sua linguagem é muito adequada, referindo-se a uma realidade conhecida por todos. Era na frequência assídua à casa do mestre, nas longas conversas e especulações sobre a Torá, e na assimilação de um modo peculiar de interpretar a Lei que o discípulo era instruído, terminando por se tornar um filho espiritual. São Paulo mesmo dirá ter sido formado “aos pés de Gamaliel” (At 22, 3).

Partindo dessa concepção, Nosso Senhor estabelece a linha do discipulado no Novo Testamento, porém numa nova perspectiva. Deixa claro não redundar a aprendizagem bem conduzida numa emancipação de quem se instrui, nem significar uma oportunidade para aprender os segredos do ofício, visando a uma escalada na qual se termine sendo mais do que o formador. Com o advento do Salvador veio até nós o verdadeiro Mestre, Aquele que derramaria o único Sangue capaz de redimir o mundo, diante de quem todos emudecem reconhecendo a própria pequenez, para receberem a medida que lhes cabe do seu espírito.

Mais tarde, quando se servirem da palavra, os discípulos oferecerão, na condição de mero instrumento, a água cristalina da sã doutrina, haurida diretamente da contemplação do Divino Mestre. Assim procederam os maiores luminares da Igreja, os quais, por sua vez, foram os mais submissos seguidores de Jesus.

Todos somos pecadores

“Por que vês tu o cisco no olho do teu irmão,
e não percebes a trave que há no teu próprio olho?
Como podes dizer a teu irmão: irmão, deixa-me
tirar o cisco do teu olho, quando tu não vês a trave
no teu próprio olho? Hipócrita! Tira primeiro a trave
do teu olho, e então poderás enxergar bem para
tirar o cisco do olho do teu irmão”

Os versículos seguintes tratam da cegueira sob outro aspecto: a incapacidade de considerar o próximo como ele realmente deve ser visto. As origens desse defeito encontram-se no orgulho, pois quem não é humilde para considerar a Deus como deve, também não terá em relação ao próximo um juízo formado de acordo com os critérios divinos. A imagem da trave e do cisco reflete a desproporção existente, na maioria das vezes, entre a insatisfação dos orgulhosos e os defeitos do próximo, tal como são na realidade.

Bem diversa é a conduta dos que têm uma noção precisa a respeito de seus problemas e misérias. Por não se constituírem a si mesmos em finalidade daquilo que fazem, compreendem melhor as insuficiências dos outros e os tratam com afeto, como observa Doroteu de Gaza: “os santos não são cegos e todos odeiam o pecado; entretanto, não odeiam quem o comete, não julgam, mas têm compaixão, aconselham, consolam, cuidam dele como de um membro enfermo, fazem todo o possível para salvá-lo”.

Tirar a trave do olho significa banir a mentalidade farisaica a respeito de si mesmo e ter as vistas postas naqueles que são a nossa luz: Nosso Senhor Jesus Cristo e Maria Santíssima.

Dessa maneira estaremos em condições, inclusive, de tirar o cisco do olho de nosso irmão, levando-o a compreender sua discrepância em relação a esses supremos modelos e, por amor a Eles, desejar sua conversão. Qualquer outro método será inútil e não renderá fruto. (…)

Conclusão

A vida, comparada pelo salmista ao sopro da manhã e à sombra que passa (cf. Sl 38, 6-7), possui ínfima duração. Caminhamos todos para o grande dia da prestação de contas, quando Jesus nos chamará à sua presença e nos conduzirá às moradas da casa de seu Pai, se formos dignos de alguma recompensa. Sabemos desde já, porém, que o ingresso no Reino dos Céus é franqueado aos bons de acordo com os frutos apresentados. Por eles se conhecerá a sinceridade de nossa entrega a Deus.

Uma vez que Ele toma a iniciativa de nos amar por livre e espontânea vontade, arrancando-nos do pó e elevando-nos até o mais alto cume sobrenatural, a vida da graça, como Lhe retribuiremos? Este é o domingo da liturgia da generosidade, de nossa resposta a Deus por tudo quanto nos dá.

Peçamos a insuperável intercessão de Maria Santíssima, para d’Ela obter a graça de sermos transformados

Tendo bem presente que esses frutos também se referem ao modo de conduzirmos o nosso próximo pelas vias da salvação, peçamos a insuperável intercessão de Maria Santíssima, para d’Ela obter a graça de sermos transformados em discípulos restituidores de tudo quanto recebemos de Deus e, mais ainda, em filhos cuja vida possa ser comparada ao cristal colocado no ostensório: um mero instrumento que não impede aos fiéis a contemplação de Jesus-Hóstia, mas, pelo contrário, revela-se de qualidade tanto melhor quanto mais transparente for.

Sejamos autênticos seguidores de Nosso Senhor e devotados filhos da Igreja que se empenham em espargir pelo mundo a luz recebida do Alto, e assim toda sorte de bons frutos sairá de nosso interior, porque “quando os homens resolvem cooperar com a graça de Deus, são as maravilhas da História que se operam”.

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O Inédito sobre os Evangelhos, Vol. 06, págs. 106-121. Trechos do comentário do VIII Domingo do Tempo Comum.

Uma resposta para “Quem é o verdadeiro discípulo?”

  1. Salve Maria!
    Na oração clamo a Maria, na adversidade, peço a seu Filho que segure com suas mãos abençoadas.

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