Comentário ao Evangelho do XXI Domingo do Tempo Comum
“Senhor, são poucos os que se salvam?”. Pergunta feita a Jesus com escasso intuito de perfeição. Entretanto, muitos serão os interessados em conhecer a resposta do Divino Mestre. Ouçamo-la com atenção
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP, Fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório
Ao se apresentar diante de nós uma possível viagem, nossas atenções começam a dividir-se entre o presente e o futuro, entre o ambiente atual com suas ocupações e o lugar para onde rumaremos. Se nossa ausência for de longa duração, e ainda mais se nosso destino se localizar num país bem distante, entraremos num certo estado de tensão que poderá ser maior ou menor, em função do temperamento e mentalidade de cada um, mas a indiferença total raramente acontecerá.
Passaporte, roupas, objetos, remédios, etc., constituirão um pensamento mais ou menos constante em meio às nossas atividades normais do dia a dia, antes de partir. O idioma, os costumes, o clima, a alimentação, etc., excitarão nossa curiosidade, alimentando o sonho de uma experiência nova, meio mitificada quanto às possíveis felicidades. Do amanhecer ao apagar das luzes, nossa imaginação percorrerá as ruas, praças e monumentos daquela cidade onde iremos morar durante um certo tempo. As providências concretas, por menos metódico que se seja, terão prioridade em nossas responsabilidades e afazeres, e a tal ponto que provavelmente teremos iniciado nossa viagem muito antes de subir no avião.
No entardecer desta vida, empreenderemos a mais importante e definitiva mudança de nossa existência rumo à… eternidade. Mas será diferente de todas as outras, pois não poderemos levar absolutamente nada de nossos pertences e nem sequer será preciso passaporte. Ela não terá volta atrás e deverá se realizar a sós, sem acompanhantes. A partida é inadiável, desde todo o sempre foi fixada por Deus, e não terá atraso. A chegada tanto poderá dar-se no inferno, quanto no Céu, e para este último local ainda é possível que haja uma passada pelo Purgatório.
Porém, essa é a viagem por quase todos relegada ao esquecimento. Carreira, dinheiro, prazeres, saúde — em síntese, o mundanismo — é a obsessão que transtorna as mentes desde a saída de Adão do Paraíso, prolongando pelos séculos e milênios os ecos do episódio havido entre Marta e Maria: “Marta, porém, afadigava-se muito na contínua lida da casa. Parou então e disse: ‘Senhor, não Te importas que a minha irmã me tenha deixado sozinha com o serviço da casa? Diz-lhe, pois, que me ajude’. O Senhor respondeu-lhe: ‘Marta, Marta, tu afadigas-te e andas inquieta com muitas coisas, quando uma só coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada’” (Lc 10, 40-42). De fato, só uma coisa é necessária: a salvação eterna. “Pois, que aproveitará a um homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16, 26).
O Evangelho de hoje nos convidará a considerar de perto essa passagem para a eternidade.
22 Ia pelas cidades e aldeias ensinando, e caminhando para
Jerusalém.
Jesus quer salvar a todos. E estando a caminho de sua última visita a Jerusalém, não deixava de entrar nas cidades e aldeias a fim de ensinar a cada um. Exemplo para nós: em nosso apostolado, jamais devemos fazer acepção de pessoas ou de lugares, a Boa-nova é destinada a um âmbito universal.
23a Alguém Lhe perguntou: “Senhor, são poucos os que se
salvam?”
Era evidente tratar-se de uma pergunta feita por um judeu, apesar de estar naqueles tempos generalizada entre o povo a ideia de que todos os filhos de Abraão se salvavam, sem exceção, pelo simples fato de serem tais. Para entender-se melhor o porquê da curiosidade nessa matéria, deve-se notar que, de quando em vez, apareciam afirmações em escritos apócrifos, inflando o número dos que se perdem em relação aos poucos que se salvam. Daí o desejo desse hebreu que acompanhava o Mestre pelo caminho, de obter uma resposta exata, conforme comenta um conceituado exegeta: “É frequente esta preocupação nos rabinos. Pensava-se na salvação eterna, sobretudo na dos israelitas, porque os demais haviam merecido sua perdição e quase se alegravam dela”.1
Aliás, essa é uma questão que passou a ser muito discutida na própria Era Cristã, debaixo dos mais variados prismas. Por exemplo, em inícios do século VI, espalhou-se por certos ambientes da Europa uma heresia sobre a salvação final dos Anjos e homens em sua totalidade, terminando, assim, as penas eternas do inferno. Essa doutrina foi condenada pelo Papa Vigílio, no ano de 543: “Se alguém diz ou sente que o castigo dos demônios ou dos homens ímpios é temporal e que em algum momento terá fim, ou que se dará a reintegração dos demônios ou dos homens ímpios, seja anátema”.2
Um dos mais delicados estudos talvez seja o teológico, quando as hipóteses levantadas não encontram uma claríssima formulação na doutrina revelada. Esse é justamente o caso em questão, e bem definido pelo famoso padre Antonio Royo Marín, OP:
“Eis aqui um dos problemas mais angustiantes e difíceis que podem oferecer ao teólogo. A pergunta é uma das que, com maior frequência e apaixonado interesse, formula a maioria das pessoas. E, sem embargo, não há outra em toda a Teologia católica que possa responder-se com menos segurança e certeza. A divina Revelação está muito obscura; a Tradição cristã está muito dividida, e a Igreja nada definiu a este propósito. Não podemos mover-nos, por conseguinte, senão no terreno das meras conjecturas e probabilidades.
“Daí a grande diversidade de opiniões, sobretudo entre os pregadores e teólogos. Desde o extremo rigorismo de um Massillon — cujo terrível sermão sobre ‘o pequeno número dos que se salvam’, atormentou tantos espíritos — até o otimismo exagerado e imprudente de tantos outros que salvam quase todo o mundo, há uma grande variedade de opiniões intermediárias”.3
E com sua concisão sempre clara e luzidia, São Tomás assim se expressa sobre a matéria: “A respeito de qual seja o número dos homens predestinados, dizem uns que se salvarão tantos quantos foram os anjos que caíram; outros, que tantos como os Anjos que perseveraram; outros, enfim, que se salvarão tantos homens quantos anjos caíram e, ademais, tantos quantos sejam os Anjos criados. Mas, melhor é dizer que só Deus conhece o número dos eleitos que hão de ser colocados na felicidade suprema”.4
Ele respondeu-lhe: 23b “Esforçai-vos por entrar pela porta
estreita, porque vos digo que muitos procurarão entrar e não
conseguirão”.
É imperativo o conselho de Jesus: esforçai-vos, indicando-nos o quanto não se deve deixar para “procurar” entrar à última hora. Mas, infelizmente, é assustador o número de pessoas que, ao longo da vida, se despreocupam de saber o que lhes acontecerá após a morte. Muitos estão dispostos a trocar o Céu pelo fugaz prazer de um segundo e agem tal qual o fez Judas Iscariotes face às enganosas delícias deste mundo: “Que quereis dar-me e eu vo-lo entregarei” (Mt 26, 15). Não são poucos os que preferem Barrabás a Jesus, entregando-se às paixões e pecados em detrimento do convívio sem fim, com Deus. São Basílio descreve o modo pelo qual eles fazem essa insensata opção:
“Com efeito, a alma vacila sempre: quando reflete sobre a eternidade se decide pela virtude. Mas, quando olha o presente, prefere os prazeres da vida. Aqui vê a moleza e os deleites da carne; lá, a sujeição, a servidão e o cativeiro da mesma. Aqui a embriaguez, ali a sobriedade. Aqui os risos dissolutos, lá a abundância de lágrimas. Aqui as danças, lá a oração. Aqui o canto, lá o pranto. Aqui a luxúria, lá a castidade”.5
Mas, qual é essa porta estreita? Jesus no-la indica: “Nem todos os que dizem Senhor, Senhor, entrarão no Reino dos Céus, senão aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mt 7, 21).
Ela consiste, portanto, na obrigação nossa de abater o orgulho, controlar nosso olhar, pensamentos e desejos, guardar nosso coração das afeições desordenadas, viver da fé e da esperança na prática da verdadeira caridade, etc.
25 “Quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, vós,
estando fora, começareis a bater à porta, dizendo: ‘Senhor, abre-
nos’. Ele responderá: ‘Não sei donde sois’”.
Os evangelistas costumam relatar as aproximações que o Divino Mestre fazia entre o Reino dos Céus e um banquete… Segundo as praxes da época, por medidas de segurança, além de outras razões, ao chegar o último convidado, o anfitrião trancava as portas. E assim, para tornar ainda mais clara a alegoria da porta estreita para se entrar no Céu, Jesus apresenta a parábola do pai de família que se fecha em casa com os seus filhos e amigos. Os que restaram fora pedirão que lhes deixe entrar, e receberão a resposta: “Não sei donde sois”. A razão dessa resposta não vinha do fato de não haver mais lugar, mas sim, por não terem querido entrar pela porta estreita.
Que surpresa para aqueles que julgavam estar salvos devido à prática de umas tantas e poucas obrigações religiosas…
A cena descrita nesta passagem traduz em termos domésticos uma profunda realidade eterna. A família aqui representada é a divina. A ela pertencem todos os batizados que vivem na graça de Deus e, nesta morrendo, gozarão da felicidade perpétua participativa do convívio da Santíssima Trindade. De fora daquela intimidade ficarão todos os que morrerem impenitentes de seus pecados. O Pai os tratará como estranhos desconhecidos.
26 “Então começareis a dizer: ‘Comemos e bebemos em tua
presença, tu ensinaste nas nossas praças’”.
É bem verdade. Quantas vezes nós nos aproximamos da mesa da Comunhão e nos beneficiamos dos demais Sacramentos, ouvimos boas pregações sobre o Evangelho, além dos conselhos em particular, no seio da Igreja fundada pelo Redentor. Porém, que proveito tiramos de todos esses privilégios? Eles nos são dados para melhor cumprirmos os Mandamentos. Insensatos são aqueles que se entregam a uma vida de pecado até a hora da morte, arriscando-se a ouvir dos lábios de Jesus a sentença irrevogável de eterna reprovação. Só então entenderão as palavras do Divino Mestre: “Pois, que aproveitará a um homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma?” (Mt 16, 26).
27 “Ele vos dirá: ‘Não sei donde sois; afastai-vos de mim vós todos
os que praticais a iniquidade’”.
Esta resposta contém duas afirmações:
“Não sei donde sois…”. Não devemos imaginar que somente serão objeto da rejeição de Jesus os não batizados. Também a nós, batizados, poderá ser ela aplicada se não cumprirmos nossos deveres. Neste caso, Jesus se dirigirá a nós de maneira ainda mais explícita: “Eu vos arranquei das trevas do pecado e vos redimi às custas de meu próprio sangue, elevando-vos à dignidade de filhos da Igreja. Mas vós quisestes as vias do orgulho e, seguindo o conselho de satanás, obedecer à lei do mundo e entregar-vos às paixões. Não ouvistes a voz da graça e a de meus Ministros”…
“… afastai-vos de mim vós todos que praticais a iniquidade”. Ser repelido por Deus é o mais terrível dos tormentos eternos, segundo nos ensina a Teologia. Nós somos criados com vistas à felicidade eterna, ou seja, a conhecer a Deus face a face e amá-Lo como Ele mesmo se ama — sempre guardadas as devidas proporções. Nossa alma tem sede desse convívio com Deus e só n’Ele repousaremos. Ora, o vermo-nos expulsos por Aquele que é a única Causa de nossa alegria, significaria para nós um tormento sem comparação. Que terrível palavra: “Afastai-vos de mim”…
28 “Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão,
Isaac, Jacó, e todos os profetas no Reino de Deus, e vós serdes
expulsos para fora”.
Devido à nossa sensibilidade física reforçada pelo instinto de conservação, somos levados a julgar o fogo do inferno o pior dos tormentos. Na realidade, possui ele uma intensidade fortíssima, a ponto de tornar desprezível qualquer forno de alta combustão na face da Terra e, portanto, sua capacidade de infligir sofrimentos é incalculável. Porém, a maior dor se encontra apontada nas últimas palavras do versículo 28: “… serdes expulsos para fora”.
Que o inferno existe, as Escrituras (Cf. Jt 16, 17; Ecl 7, 1819; Is 33, 14; Dn 12, 2; Mt 13, 49-50; 25, 41-46; etc.) e o Infalível Magistério da Igreja6 o proclamam como verdade revelada.
A teologia busca razões claras para ajudar-nos na aceitação fácil desse indispensável dogma de Fé, como explica Pablo Buysse, em sua obra Dios, el alma y la religión: “Focalizemos, por exemplo, o seguinte caso, por desgraça muito frequente na vida passional. Um homem pretende seduzir uma angelical jovem. Ao resistir esta, profere uma ameaça. Em vão. A lâmina de um punhal ameaça o peito da jovem. Não cede apesar de tudo. O grito de raiva do malévolo se confunde com o grito de dor da vítima, que cai agonizante. O sedutor, desesperado, crava em seu próprio peito o punhal banhado ainda no sangue de sua vítima. Vede aí, um ao lado do outro, dois cadáveres: o do verdugo e o de uma mártir. Pode Deus confundi-los num mesmo destino? Não, mil vezes não. É preciso que esse criminoso seja castigado na outra vida e se premie para sempre essa virtude”.7
A pena dos sentidos
Ao cometer um pecado grave, a alma manifesta uma aversão a Deus e um apego à criatura. À primeira cabe a pena do dano e à segunda, a dos sentidos. Consideremos de início o menor dos sofrimentos: a pena dos sentidos.
Difícil é compreender a natureza de um fogo que não necessita de combustível. Fogo “inteligente”, que atinge não só a matéria — sem consumi-la — mas também os próprios espíritos, anjos e almas. Ademais, trata-se de um fogo cuja ação aprisiona, coarcta e mantém as almas, a contragosto, num lugar específico. Segundo nos comenta o padre Antonio Royo Marín,8 os horrores que alguém poderia enfrentar num calabouço escuro, sem poder mover-se, seriam nada em comparação com o encontrar-se prisioneiro perpétuo de uma criatura inferior, o fogo, que o tiraniza numa asfixiante e intérmina imobilidade.
Será físico o pranto dos condenados? São Tomás comenta ser analógica a afirmação contida neste versículo, a respeito do choro. Afirma ele que, após a ressurreição dos corpos, não poderão os condenados exteriorizar suas dores através das lágrimas, pois os ressuscitados não produzirão nenhum tipo de humor.9
Pena do dano
O fato de faltar ao homem a agilidade de um felino — o gato por exemplo — ou a força de um leão, não significa uma privação, mas sim uma simples carência, pois não é próprio à nossa natureza possuir essas qualidades. Contudo, o ser paraplégico ou cego, faz-nos sofrer uma verdadeira privação. Ora, fomos criados para Deus, por isso temos sede da felicidade infinita de vê-Lo e amá-Lo tal qual Ele é. E a privação eterna desse gozo, na condição de “expulsos para fora”, constitui o maior de todos os tormentos.
Acrescente-se a isso a exclusão da presença de todos os Anjos e Santos, em especial de Jesus e de Maria, além da perda dos bens sobrenaturais (graças, virtudes e dons) e da glorificação do próprio corpo. O ver nossos conhecidos de outrora na plenitude da felicidade, enquanto nós ardemos de indignação no “choro e ranger de dentes”, aumentará ainda mais um castigo, de si, inimaginável.
Ademais, se todas essas angústias fossem passageiras… Não! Serão eternas, ou seja, não terão fim.
29 “Virão muitos do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e
se sentarão à mesa do Reino de Deus”.
Será também terrível para um precito ver aqueles que viveram em sucessivas e posteriores épocas históricas ingressando no Reino dos Céus, enquanto ele é expulso de Deus para viver, eternamente imóvel, nas chamas do inferno.
Maria, Porta do Céu
30 “Então haverá últimos que serão os primeiros, e primeiros que
serão os últimos”.
Surpreendente será essa inversão de valores, por isso, não devemos jamais nos sentir seguros devido às nossas qualidades, nem pelas graças recebidas, menos ainda pela riqueza que possa estar em nossas mãos. É necessário servir a Deus com ardor e entusiasmo, entrando “pela porta estreita” que bem poderá ser Maria Santíssima.
Não é sem razão que a Ela foi dado o título de Porta do Céu. Estreita porque exige de nós uma confiança robusta em sua proteção maternal. Invoquemo-La em todas as tentações e dificuldades, a fim de comprovarmos a irrefutável realidade de quanto “jamais se ouviu dizer que algum daqueles que têm recorrido à sua proteção maternal, implorado sua assistência, reclamado o seu socorro fosse por Ela desamparado”.
E, ao chegarmos ao Céu, rendamos eternas graças aos méritos infinitos de Jesus e às poderosas súplicas de Maria. ♦