O Céu, fechado para a humanidade depois do pecado original, nos foi aberto para sempre por Aquele que é o Cordeiro, o Bom Pastor e a Porta do redil
Mons. João S. Clá Dias, fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório
A Porta do verdadeiro redil
Devemos compreender a presente parábola dentro do quadro político-social e econômico de Israel na época de Nosso Senhor, o que corresponde a uma realidade bem diferente da civilização industrial e globalizada em que vivemos. O pastoreio ― do qual poucos terão uma noção exata em nossos dias ― constituiu uma das principais atividades do povo eleito no Antigo Testamento, tendo penetrado profundamente na psicologia, na cultura e nos costumes judaicos.
Por conseguinte, as imagens tiradas do cotidiano pastoril eram muito acessíveis aos ouvintes do Divino Mestre. Ele as empregou para referir-Se a algo tão elevado que é impossível de ser traduzido a não ser por símbolos: Deus feito Homem cuida com toda a perfeição de cada um de nós, como de uma ovelha muito querida. Nosso Senhor Jesus Cristo Se sente representado por um Pastor ideal, zeloso e dedicado. Em consequência, a figura heroica do pastor adquiriu um cunho sagrado e, com o tempo, passou a adornar paredes de catacumbas, objetos litúrgicos, túmulos, monumentos sacros, entre outros, como designação corrente d’Aquele que veio ao mundo para salvar suas ovelhas.
Naquele tempo, disse Jesus: 1 “Em verdade, em verdade vos digo, quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por outro lugar, é ladrão e assaltante. 2 Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. 3 A esse o porteiro abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz para fora. 4 E, depois de fazer sair todas as que são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque conhecem a sua voz. 5 Mas não seguem um estranho, antes fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”. 6 Jesus contou-lhes esta parábola, mas eles não entenderam o que Ele queria dizer. 7 Então Jesus continuou: “Em verdade, em verdade vos digo, Eu sou a Porta das ovelhas. 8 Todos aqueles que vieram antes de Mim são ladrões e assaltantes, mas as ovelhas não os escutaram. 9 Eu sou a Porta. Quem entrar por Mim, será salvo; entrará e sairá e encontrará pastagem. 10 O ladrão só vem para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 1-10).
O redil, exigência do cuidado do rebanho
Naquele tempo, disse Jesus: 1 “Em verdade, em verdade vos digo,
quem não entra no redil das ovelhas pela porta, mas sobe por
outro lugar, é ladrão e assaltante”.
Muitas vezes os pastores tinham de arriscar a própria vida para defender as ovelhas, pois, além de não existirem armas eficazes como as atuais, em geral eles eram pessoas pobres, dispondo apenas de um cajado para enfrentar os lobos e os ladrões. Tão frequentes eram os assaltos aos rebanhos, que os pastores costumavam se congregar para terem maior segurança e, à noite, recolhiam todas as ovelhas num grande redil. Um deles ficava de vigília, à entrada, e se revezavam ao longo das horas. Esta era a única passagem para entrar e sair do aprisco, sendo usada tanto pelos animais quanto pelos donos.
Os ladrões, entretanto, nunca transpunham a porta para realizar seus intentos, mas faziam um rombo na cerca, por onde penetravam e levavam as ovelhas.
As ovelhas só conhecem a voz do seu pastor
2 “Quem entra pela porta é o pastor das ovelhas. 3 A esse o porteiro
abre, e as ovelhas escutam a sua voz; ele chama as ovelhas pelo
nome e as conduz para fora. 4 E, depois de fazer sair todas as que
são suas, caminha à sua frente, e as ovelhas o seguem, porque
conhecem a sua voz. 5 Mas não seguem um estranho, antes
fogem dele, porque não conhecem a voz dos estranhos”.
Em certa ocasião, o Autor teve oportunidade de assistir a cenas semelhantes a esta, ficando surpreso ao constatar como, de fato, o pastor conversa com suas ovelhas. Ainda que sejam bastante numerosas, ele as identifica pelo nome, sabe qual é o comportamento de cada uma e distingue as que necessitam de maiores cuidados. Porém, o que mais impressiona é ver como as ovelhas conhecem a voz de quem as apascenta. Às vezes, basta um assobio ou um mero gesto para todas se juntarem ao seu redor e permanecerem ali quietas, olhando-o atentas como se estivessem entendendo suas palavras. E quando ele nomeia alguma, esta reage, movimentando-se. Se, pelo contrário, é um estranho que tenta imitar o pastor, elas não lhe dão atenção. O ladrão poderá levar uma ou outra ovelha, mas nunca conseguirá roubar o rebanho inteiro, pois este só se move ao comando do pastor.
A situação descrita por Nosso Senhor nestes versículos ocorria a cada manhã, quando o pastor ia buscar os animais no redil. A tal ponto se criava uma como que intimidade entre o pastor e suas ovelhas, que estas adquiriam certo instinto pelo qual o reconheciam com precisão e, saindo do meio das outras, se colocavam diante dele, que as conduzia para fora. Reunido todo o rebanho, iniciava-se a marcha rumo aos campos, com o pastor sempre à frente, para fazer face aos que pretendessem assaltá-lo.
Tal imagem é lindíssima, e muito apropriada para o Divino Mestre ser compreendido. E, ao longo da História, quantos lobos, ladrões e mercenários vêm tornando esta parábola cada vez mais clara!
6 Jesus contou-lhes esta parábola, mas eles não entenderam o que
Ele queria dizer.
Quem ouvia esta pregação de Nosso Senhor? Os fariseus, que não queriam admitir o recente milagre da cura de um cego de nascença (cf. Jo 9, 1-41). Em meio à celeuma provocada, Jesus iniciou este discurso procurando explicar-lhes o porquê de seu divino empenho em fazer o bem. Ele narra a parábola de um modo diferente do que Lhe era habitual, pois, à medida que a compõe, vai aplicando-a a Si. Contudo, para entendê-la era preciso ter fé e o coração aberto à ação do Espírito Santo, o que faltava aos fariseus. Como eram “guias espirituais de Israel, não podiam suspeitar que eles mesmos fossem ‘assaltantes’ espirituais do rebanho”.
Jesus é a única Porta
7 Então Jesus continuou: “Em verdade, em verdade vos digo, Eu
sou a Porta das ovelhas”.
Embora a figura do pastor seja a mais conhecida desta parábola, Jesus primeiro Se apresenta como Porta do redil. Qual o seu simbolismo? Deus criou Adão em graça e, ao introduzi-lo no Paraíso, sujeitou-o a uma prova: “não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás” (Gn 2, 17). Bastava ter obedecido ao mandado divino que o homem nunca experimentaria a morte, pois sua alma inocente “possuía uma força dada sobrenaturalmente por Deus, graças à qual podia preservar o corpo de toda corrupção”. Sua existência transcorreria feliz naquele local de delícias, “durante todo o tempo de sua vida animal, para ser transferido depois disso ao Céu, quando tivesse obtido a vida espiritual”.
Em determinado momento a alma passaria a gozar da visão beatífica — em virtude da qual o seu corpo se tornaria glorioso —, dando início ao eterno convívio com Deus. No entanto, com o pecado original o Céu se fechou para toda a humanidade e ninguém entraria jamais nele se não nos tivesse sido outra vez aberto por Nosso Senhor Jesus Cristo, o Cordeiro imolado, o Bom Pastor e a Porta do redil, nossa Páscoa, ou seja, passagem deste mundo para a bem-aventurança. Só aqueles que O aceitarem habitarão nessa sublime morada, porque Ele é o caminho seguro para atingir a perfeição. Sem Ele não há santidade, sem Ele não há salvação.
Os ladrões de almas…
8 “Todos aqueles que vieram antes de Mim são ladrões e
assaltantes, mas as ovelhas não os escutaram”.
Neste versículo, Jesus estabelece uma distinção muito clara entre o que Ele faz pelas ovelhas e o modo de agir dos bandidos. Através dos patriarcas e dos profetas, Deus revelara ao povo eleito a Religião verdadeira. No entanto, quando o Redentor veio ao mundo, seus representantes — perdido o desejo de salvar as almas — a desviaram daquele rumo inicial, só se preocupando em manter sua posição de prestígio na sociedade. Tais eram os fariseus, verdadeiros mercenários que, ao invés de proteger o rebanho, o oprimiam, transmitindo-lhe uma doutrina deturpada e egoísta, pela qual exigiam o cumprimento dos atos exteriores e desprezavam “os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia, a fidelidade” (Mt 23, 23). Ora, o Divino Mestre expunha a verdade e mostrava como deveria ser o autêntico trato entre os ministros de Deus e o povo, contrário ao que os fariseus preconizavam com suas práticas.
Cada palavra de Nosso Senhor soava como uma acusação à atitude que eles tomavam, recusando-se a aceitar sua mensagem e a Redenção que lhes oferecia. Assim, os fariseus não só desempenhavam o papel de ladrões, como também fechavam a porta do redil às ovelhas: “Vós fechais aos homens o Reino dos Céus. Vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar” (Mt 23, 13).
É possível que também nós nos deparemos com quem se diga pastor, mas na realidade não o seja. São mercenários gananciosos, que vivem à busca de dinheiro, mais preocupados com sua subsistência e com o acúmulo de riqueza do que com o bem das almas. Cabe-nos rezar para estarmos concernidos no exemplo das ovelhas que são dóceis à voz do pastor e não escutam os bandidos.
Permaneçamos sempre atentos para saber o que a graça quer de nós, procuremos afastar-nos dos perigos e nunca nos desgarremos da grei de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Ao mesmo tempo, o demônio e as paixões também agem com relação a nós como um salteador. Todos nascemos com a Lei de Deus gravada no coração, a qual nos impulsiona a buscar a verdade, o bem, o belo, o unum, e a repelir seus opostos. Em consequência, para abraçarmos o mal e optarmos pelo erro somos obrigados a deformar a consciência, construindo uma doutrina falsa que justifique nossa escolha. Deste modo, aceitamos sem obstáculos o ladrão ― ou seja, o demônio, o pecado ― que entra no aprisco, e a ele nos entregamos.
É Cristo que robustece o senso moral
9 “Eu sou a Porta. Quem entrar por Mim, será salvo; entrará e
sairá e encontrará pastagem”.
Em sentido contrário ao apontado no versículo anterior, o Divino Mestre Se apresenta como a Porta que dá acesso à pastagem, porque é Ele quem nos leva a robustecer o senso do ser, o senso moral que o pecado enfraquece. A voz de Nosso Senhor Jesus Cristo nos convida à inocência, à prática da virtude; nela reconhecemos o timbre da santidade. Ao dizer: “Eu sou a Porta”, Ele Se declara o Messias, o único caminho para a salvação, o único que possui o direito de conduzir o rebanho.
Uma aplicação à Igreja
Esta ideia se coaduna inteiramente com a promessa de imortalidade da Igreja, feita por seu Divino Fundador ao Príncipe dos Apóstolos: “tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja; as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16, 18). A voz de Jesus Cristo é inconfundível para as ovelhas que de fato aderiram a Ele, e ninguém as ilude. Por mais que os meios de comunicação ou os inimigos da Igreja tentem desviá-las, fazendo propaganda daquilo que é alheio a Ele, quem segue o Bom Pastor sente no fundo da alma onde está a verdade. E Ele sempre concede ao rebanho graças especiais para dispersar seus adversários.
Deus quer nos dar tudo em abundância
10 “O ladrão só vem para roubar, matar e destruir. Eu vim para que
tenham vida e a tenham em abundância”.
Ainda em linguagem parabólica, Ele indica o pecado daqueles que desviam os outros da Religião verdadeira: matam as almas, afastando-as de Nosso Senhor, que é a vida. E a missão d’Ele, ao contrário, é dar aos homens essa vida, a qual é muito superior à que anima a formiga, o colibri, o esquilo, o homem e até mesmo os Anjos, pois é a vida do próprio Deus! Ele a introduz em nossa alma no Batismo e a confirma quando recebemos a Crisma.
Mas… que vida tem Deus? Parece tão simples e nossa inteligência não consegue alcançá-la, porque Ele é eterno, infinito, onipresente, onipotente, onisciente! E é tão rico que o Pai, ao pensar em Si mesmo, gera uma Segunda Pessoa, igual a Si, que é a Palavra d’Ele, o Filho. Os dois Se olham e Se amam tanto, que do encontro desses dois amores procede o Espírito Santo, a Terceira Pessoa, idêntica ao Pai e ao Filho. Eis a vida de Deus: desde toda a eternidade e por toda a eternidade, os três Se contemplam, Se entendem e Se amam mutuamente. A criação do universo foi como um transbordamento do que há em Deus, mais ou menos à maneira de um champagne que extravasa da garrafa e se derrama em taças. Ele quis nos criar para nos tornar partícipes da felicidade d’Ele, e por isso “o Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14). Ele Se fez Pastor, Ele Se fez Porta, para que todos nós recebêssemos “da sua plenitude graça sobre graça” (Jo 1, 16), e tivéssemos a vida “em abundância”.
Se Deus põe à nossa disposição essa vida com tal generosidade, basta pedir que Ele no-la dará. E não aos pouquinhos, porque Deus não é como uma pobre mãe a quem só resta um pouco de farinha e de azeite com que preparar um pão para o filho que quer comer um bolo. Ele possui tudo o que nós precisamos! Não podemos ter horizontes estreitos, ser medíocres na oração, mas devemos ser pessoas de grandes desejos, que imploram coisas ousadas na linha da perfeição. E como todos somos chamados à santidade, se rezarmos com decisão e energia, por meio da Santíssima Virgem, é certo que Ele nos atenderá.
Não permitamos que nos roubem a vida!
Nas eloquentes palavras de São Pedro, que a primeira leitura (At 2, 14a.36-41) apresenta à nossa consideração, encontramos uma afirmação intimamente relacionada com o Evangelho de hoje: “Convertei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para o perdão dos vossos pecados. E vós recebereis o dom do Espírito Santo. Pois a promessa é para vós e vossos filhos, e para todos aqueles que estão longe, todos aqueles que o Senhor nosso Deus chamar para Si” (At 2, 38-39).
Convertei-vos! É mister corresponder a este convite!
Ora, não haverá algo que faça o papel de ladrão em nosso dia a dia? Não haverá em nossa vida algo que precisemos cortar? Da mesma forma que se praticava a idolatria e havia desvios na época de Nosso Senhor, não haverá hoje alguma voz que nos confunda e nos desencaminhe, levando-nos a esquecer que a verdadeira Porta é Ele? Naquele tempo eram os fariseus, os saduceus, os herodianos. E hoje? É o momento de nos pormos a questão: internet, televisão, cinema, relacionamentos… há tantos ladrões, que todo o cuidado será pouco! Devemos ouvir a voz de Deus que sempre nos fala à alma e nesta Liturgia da Palavra nos adverte de que está sendo desdenhada, enquanto os falsos pastores entram, através dos rombos feitos por eles mesmos na cerca do redil, para roubar, matar e destruir.
O Bom Pastor ama até as ovelhas miseráveis
É possível que nosso exame de consciência nos acuse de alguma vez termos aderido aos ladrões. Lembremo-nos, então, de que Jesus ama tanto as suas ovelhas que Ele deseja dar-lhes a vida, apesar de miseráveis. E uma vida tão exuberante que ultrapassa a morte merecida pelo pecado de nossos primeiros pais e pelos nossos próprios pecados: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Se quisermos, pois, ser grandes na santidade, reconheçamos nossa incapacidade para praticar a virtude e, atribuindo a Deus todo o bem que fazemos, ofertemos-Lhe, confiantes, nossa debilidade, porque o Bom Pastor Se utiliza disso para manifestar seu poder, como Ele afirmou a São Paulo: “é na fraqueza que se revela totalmente a minha força” (II Cor 12, 9).
A principal lição a ser guardada deste 4º Domingo da Páscoa é que Jesus tem por nós um carinho que suplanta todos os afetos existentes na face da Terra. Ele é tão supremamente nosso Pastor que escolheu sofrer os tormentos do Calvário para nos salvar. Sinal de que nos ama até um limite inimaginável! Ele almeja a nossa santidade e cuida de nós, tal como diz o Salmo Responsorial (cf. Sl 22, 1.2c): “O Senhor é o Pastor que me conduz, não me falta coisa alguma”. Ele é dono de todos nós, ovelhas que o Pai Lhe entregou e, desde que não queiramos nos desgarrar, não permitirá que sejamos arrancados de suas mãos. Por isso, tenhamos total confiança n’Ele ao nos aproximarmos da Confissão, certos de que Ele perdoará nossos pecados, se estivermos arrependidos. Mas, sobretudo, saibamos buscá-Lo na Eucaristia, onde Ele Se oferece em Corpo, Sangue, Alma e Divindade e nos prepara para recebermos a vida em plenitude.
Isto se dará quando passarmos pela Porta do redil e adentrarmos no Céu, onde veremos a Deus face a face. Ali estaremos na alegria do Pai, do Filho e do Espírito Santo, numa gloriosa participação nessa família, que é a Santíssima Trindade, junto com Nossa Senhora, os Anjos e os Bem-aventurados. ♦
O Inédito sobre os Evangelhos. Ano A. Vol. 1.