Formamos um só corpo, e todos nós bebemos de um só Espírito (cf. I Cor 12, 13). Quem é o Espírito Santo, como foram as circunstâncias e quais as principais graças concedidas a Maria e aos discípulos por ocasião de Pentecostes? Eis os ensinamentos que a Liturgia nos coloca à disposição na Solenidade de hoje, fazendo-nos compreender onde se encontra a verdadeira paz
Monsenhor João S. Clá Dias, EP
19 Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-Se no meio deles, disse: “A paz esteja convosco”. 20 Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos se alegraram por verem o Senhor. 21 Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai Me enviou, também Eu vos envio”. 22 E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. 23 A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os perdoardes eles lhes serão retidos” (Jo 20, 19-23).
A prova pela qual haviam passado os Apóstolos excedia as forças da frágil natureza humana e, apesar do testemunho entusiasmado de Maria Madalena, não lhes era fácil crer na Ressurreição; talvez seu abatimento fosse o resultado de não se julgarem dignos de receber uma aparição do Senhor, segundo pondera São João Crisóstomo, devido ao horroroso abandono no qual deixaram o Mestre em sua agonia.
Na sua bondade infinita, Jesus não deixou transcorrer muito tempo para se manifestar também a eles. Escolheu uma excelente oportunidade para tal: no anoitecer e estando as portas fechadas, para tornar ainda mais patente a grandeza do milagre de sua Ressurreição.
A chegada da noite é o momento em que a apreensão cresce no interior de todos os temerosos. Por outro lado, penetrar num recinto com portas e janelas fechadas, só mesmo em corpo glorioso poderia alguém realizar tamanho prodígio.
Qual seria o lugar onde estavam reunidos, não se sabe com exatidão. A hipótese mais provável recai sobre o Cenáculo.
Outro particular interessante é a posição escolhida por Cristo para lhes dirigir a palavra. Ele poderia ter preferido saudá-los logo à entrada, no entanto caminhou entre eles e foi colocar-Se bem ao centro. Esse deve ser sempre o posto de Jesus em todas as nossas atividades, preocupações e necessidades. O deixá-Lo de lado, além de ser falta de respeito e consideração, é condenar ao fracasso qualquer iniciativa, por melhor que seja.
Sua saudação também nos chama especialmente a atenção: “A paz esteja convosco”.
À primeira vista seríamos levados a julgar compreensível que Ele desejasse acalmá-los das perturbações que os acometiam desde a prisão no Horto das Oliveiras. E, de fato, esse bem poderia ser um de seus intentos, mas o significado mais profundo não reside nessa interpretação. Para melhor o entendermos, perguntemo-nos o que é paz.
“Paz é a tranquilidade da ordem”, diz Santo Agostinho, ou seja, uma ordem permanentemente tranquila. E São Tomás demonstra ser a paz efeito próprio e específico da caridade, pois todo aquele que está em união com Deus vive na perfeita ordem, ao harmonizar todas as suas potências, sentidos e faculdades à sua causa eficiente e final. Essa união faz brotar na alma que a possui um profundo repouso interior e nem sequer os inimigos externos a perturbam, porque nada lhe interessa a não ser Deus: “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Rm 8, 31).
Ora, sabemos pela teologia que o Espírito Santo é a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade e procede do Pai e do Filho por via do amor. N’Ele está a raiz, ou semente, da qual nasce o fruto da caridade. Ao amarmos a Deus e ao próximo, a alegria e o consolo penetram em nosso interior. Desse amor e gozo, procede a paz.
Jesus, desejando-lhes a paz, oferecia-lhes um dos principais frutos desse Amor infinito que é o Espírito Santo.
20 Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então
os discípulos se alegraram por verem o Senhor.
Por esta atitude do Senhor podemos bem avaliar o quanto o pavor havia penetrado na alma de todos, apesar de ouvirem a voz do Divino Mestre desejando-lhes a paz.
Por isso tornou-se indispensável mostrar-lhes aquelas mãos que tanto haviam curado cegos, surdos, leprosos e inúmeras outras enfermidades, mãos que talvez eles mesmos tivessem, a seu tempo, osculado. Sim, aquelas mãos que, havia pouco, tinham sido transpassadas por terríveis cravos. Era preciso comprovarem tratar-se do Redentor, vendo seu lado perfurado pela lança de Longinus.
Naquele momento sentiram a alegria pervadir suas almas, pois constataram não estar diante deles um fantasma, mas sim o próprio Jesus em Corpo, Sangue, Alma e Divindade. Cumpria-se, assim, sua promessa: “hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria” (Jo 16, 22).
Transparece nessa atitude seu profundo intuito apologético, ao fazê-los ver suas santas chagas, ao contrário de como procedera com Santa Maria Madalena ou até mesmo com os discípulos de Emaús.
Outra nota de bondade consiste no fato de Ele ter velado o esplendor de seu Corpo glorioso, caso contrário a natureza humana dos Apóstolos não teria suportado o fulgor da majestade do Homem-Deus ressurrecto.
21 Novamente, Jesus disse: “A paz esteja convosco. Como o Pai
Me enviou, também Eu vos envio”.
Mais uma vez Jesus lhes deseja a paz e deixa entrever quão importante é a tranquilidade da ordem. Como objetivo imediato, visava Jesus proporcionar-lhes a indispensável serenidade de espírito face às desavenças e mortais perseguições que lhes moveriam os judeus. Por outra parte, Jesus Se dirige aos séculos futuros e, portanto, à própria era na qual vivemos. Também a nós Ele nos repete o mesmo desejo de paz formulado aos Apóstolos naquele momento, em especial à nossa civilização que tem suas raízes em Cristo — Rei, Profeta e Sacerdote —, cuja entrada neste mundo fez-se sob o belo cântico dos Anjos: “na Terra paz” (Lc 2, 14). Não foi outro o dom por Ele oferecido antes de morrer na Cruz, ao despedir-se:
“Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz” (Jo 14, 27). Contudo, a humanidade hoje se suicida em guerras, terrorismos e revoluções. E qual a causa? Não queremos aceitar a paz de Cristo.
Tal qual a caridade, a paz começa na própria casa. Antes de tudo, é preciso construí-la dentro de nós mesmos, dando à razão iluminada pela fé o governo de nossas paixões. Sem essa disciplina, entramos na desordem. Ora, vai se tornando cada vez mais raro encontrar um ser humano no qual esse equilíbrio é procurado com base no esforço e na graça. O espontaneísmo domina despoticamente em todos os rincões. Vivemos os axiomas da Sorbonne de 1968: “É proibido proibir”; “A imaginação tomou conta do poder”; “Nada reivindicar, nada pedir, mas tomar, invadir”. Eles pareciam ser para a humanidade uma pedra filosofal de felicidade, sucesso e prazer… Que desilusão!
A paz deve ser a condição normal e corrente para o bom relacionamento social, sobretudo na célula mater da sociedade, a família. Eis um dos grandes males de nossos dias: a autoridade paterna se autodestruiu, a sujeição amorosa da mãe se evanesceu e a obediência dos filhos foi carcomida pelo capricho, desrespeito e revolta. Essas enfermidades morais, transpostas para a vida da sociedade, redundam em luta civil, de classes e até mesmo entre os povos.
A humanidade sofre essas e muitas outras consequências do pecado de ter repudiado a paz de Cristo e abraçado a paz do mundo, ou seja, o consumismo, o igualitarismo, o laicismo, a adoração da máquina, etc.
Sentencia a Escritura: “‘Não há paz para os ímpios’, diz meu Deus” (Is 57, 20). “Curavam as chagas da filha do meu povo com ignomínia, dizendo: ‘Paz, paz; quando não havia paz’” (Jr 6, 14). Os milênios transcorreram e nos encontramos novamente na mesma perspectiva de outrora, com uma agravante: corruptio optimi pessima ― a corrupção do ótimo resulta no péssimo. Sim, a rejeição da paz verdadeira trazida pelo Verbo Encarnado é muito pior do que a impiedade antiga, e de consequências ainda mais drásticas.
A ordem fundamental do edifício da paz deriva essencialmente do Evangelho e do Decálogo, ou seja, do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por amor a Ele. Daí floresce a paz interior do homem e a harmonia com todos os outros, amados por ele com real caridade. Esse é o melhor remédio para todos os males atuais, desde a “epidemia” das depressões — enfermidade paradigmática de nosso século — até o terrorismo. É indispensável reconhecermos em Deus nosso Legislador e Senhor, pois, se ao longo da vida não existir a moral individual nem a familiar, haverá menos ainda o verdadeiro equilíbrio social e internacional. O caos de nossos dias no-lo demonstra em demasia.
Sendo a paz fruto do Espírito Santo, fora do estado de graça e da prática da caridade não nos é dado encontrá-la. Por tal motivo, quem se torna empedernido no pecado não pode gozar da paz: “Mas os ímpios são como um mar encapelado, que não pode acalmar-se, cujas ondas revolvem lodo e lama. ‘Não há paz para os ímpios’, diz meu Deus” (Is 57, 20).
O mesmo Isaías nos proclama a prodigalidade e a grandeza da bondade de Deus para com os justos: “Pois eis o que diz o Senhor: vou fazer a paz correr para ela [Jerusalém] como um rio, e como uma torrente transbordante a opulência das nações” (Is 66, 12).
Essa é a razão mais específica do fato de Jesus ter desejado uma segunda vez a paz a seus discípulos. É Ele o autor da graça e, portanto, o autor da paz: “Ele é a nossa paz” (Ef 2, 14). “A graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17).
Após esse segundo voto de paz, Jesus envia seus discípulos à ação, tornando claro o quanto é necessário jamais se deixar tomar pelo afã dos afazeres, perdendo a serenidade. Um dos elementos essenciais para o apostolado bem sucedido é a paz de alma de quem o faz.
Outro importante aspecto a considerar neste versículo é a afirmação do princípio da mediação tão do agrado de Deus. Jesus Se apresenta aqui como o Mediador Supremo junto ao Pai e, ao mesmo tempo, constitui os Apóstolos como mediadores entre o povo e Ele. Aqui podemos medir quanto são enganosas as máximas igualitárias ao procurarem destruir o senso de hierarquia.
22 E depois de ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o
Espírito Santo”.
A descida do Espírito Santo sobre Maria e os Apóstolos se deu depois da subida de Jesus ao Céu e talvez daí decorre o fato de alguns negarem a realidade do grande mistério operado por Ele na ocasião, narrada no versículo em análise. Esse erro, mais explícito no começo do século VI, foi solenemente condenado pela Igreja no V Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 553: “Se alguém defende o ímpio Teodoro de Mopsuéstia, que diz […] que depois da Ressurreição, quando o Senhor soprou sobre os seus discípulos, dizendo: ‘Recebei o Espírito Santo’ (Jo 20, 22), não lhes deu o Espírito Santo, mas soprou só a modo de figura […], seja anátema”.
O Espírito Santo não procede apenas do Pai, mas também do Filho. Ele é o amor entre ambos. E como definir o amor? É muito mais fácil senti-lo do que defini-lo. Dois amigos que muito se querem, ao se encontrarem depois de longo período de separação, se abraçam fortemente e cheios de alegria. O que significa esse gesto tão espontâneo e efusivo, senão a manifestação de um amor recíproco? Os dois quase desejam, nessa hora, uma fusão de seus seres. O interior das mães se desfaz, suas entranhas parecem estar sendo arrancadas ao verem seus filhos partirem. Os que se amam querem estar juntos e se olhar. E quanto mais robusto é o amor, maior será a inclinação de se unirem.
Ora, quando os dois seres que se amam são infinitos e eternos, jamais esse impulso de união poderá manter-se dentro dos estreitos limites de uma mera tendência emocional, como muitas vezes se passa entre nós, homens. Entre o Pai e o Filho, esse amor é tão vigoroso que faz proceder uma Terceira Pessoa, o Espírito Santo.
Nossos amores, em não raras circunstâncias, são volúveis. Deus, muito pelo contrário, porque Se contempla a Si próprio, Verdadeiro, Bom e Belo, eterna e irresistivelmente, Se ama desde todo o sempre e para sempre, e desse amor faz proceder uma Terceira Pessoa infinita, santa e eterna, o Divino Espírito Santo. O amor é eminentemente difusivo e por isso tende a comunicar-se, a entregar-se.
Curiosa é a diferença de forma empregada por uma e outra Pessoa para se comunicar com os homens.
O Filho veio a este mundo assumindo nossa natureza em humildade e apagamento. Pelo contrário, o Espírito Santo, sem assumir outra natureza, marca sua presença com símbolos de estrépito e majestade. A face da Terra será renovada por Ele, daí a manifestação do esplendor, força e rapidez dos fenômenos físicos que acompanharam sua infusão de graças nos que se encontravam reunidos no Cenáculo, porque eles deveriam ser apóstolos e testemunhas. Era preciso que fossem iluminados e protegidos, e soubessem ensinar.
No Evangelho de João essa doação do Espírito Santo tem em vista a faculdade de perdoar os pecados:
23 “A quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a
quem não os perdoardes eles lhes serão retidos”.
Que grande dom concedido aos mortais por meio dos sacerdotes: o perdão dos pecados! E que imensa responsabilidade a de um Ministro de Deus! Dele diz São João Crisóstomo: “Se o sacerdote tiver conduzido bem sua própria vida, mas não tiver cuidado com diligência da dos outros, condenar-se-á com os réprobos”.
Conclusão
Quanto se fala de paz, hoje em dia, e quanto se vive no extremo oposto dela! O interior dos corações se encontra penetrado de tédio, apreensão, medo, desânimo e frustração, quando não de orgulho, sensualidade e falta de pudor. A instituição da família vai se tornando uma peça de antiquário. A ânsia de obter, não importa por que meio, sem levar em conta o direito alheio, vai caracterizando todas as nações dos últimos tempos. Em síntese, não há paz individual, nem familiar, nem no interior das nações.
Eis porque nossos olhos devem voltar-se à Rainha da Paz a fim de rogar sua poderosa intercessão para que seu Divino Filho nos envie uma nova Pentecostes e seja, assim, renovada a face da Terra, como melhor solução para o grande caos contemporâneo. ♦
O Inédito sobre os Evangelhos. Vol. 01. Ano A.