Dez curas e um milagre

XXVIII Domingo do Tempo Comum

Compadecido dos sofrimentos físicos de dez leprosos, quis Nosso Senhor conceder-lhes a cura miraculosa que tinham pedido confiantes. Mas, como apenas um deles exprimiu sua gratidão, só este foi favorecido com o milagre mais importante

Monsenhor João S. Clá Dias, EP, Fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório


Duas classes de milagre: do corpo e do espírito

Na época de Nosso Senhor, o leproso, devido à falta de recursos médicos que possibilitassem o seu tratamento — carência que se prolongou por muitos séculos —, era um pária desprezado pela sociedade. Uma vez detectada a enfermidade, era ele apresentado ao sacerdote que, após um minucioso exame, o declarava legalmente impuro mediante um cerimonial apropriado. Se é verdade que ele não era deportado para uma ilha, segundo o costume adotado em tempos posteriores, deveria, contudo, ausentar-se da cidade, do convívio humano e viver isolado no campo. Obrigavam-no, ademais, a utilizar uma veste característica para anunciar a situação de excomunhão social em que se encontrava e a seguir certas normas, como a de se deslocar tocando uma campainha para indicar sua presença, de forma que as pessoas abrissem caminho, evitando o risco de contaminação pelo contato ou pela simples cercania.

Aproximando-se de alguém além do permitido, recebia de imediato uma severa reprimenda, pelo pânico gerado diante do perigo de o mal se espalhar. Arrastava-se assim “lamentando-se de si mesmo como o faria por um defunto, com as vestes rasgadas, a cabeça descoberta e a barba coberta com seu manto, gritando aos transeuntes, para que não se aproximem: ‘Imundo!’”.2

Ao longo de uma vida sem perspectiva de cura, veria seus próprios membros apodrecerem até caírem, num processo causador de nauseabundo odor e de incômodos vários.3 Tal estado produzia, como é compreensível, um profundo trauma psicológico. Ademais, como as doenças eram tidas, naquele tempo, como castigo pelos próprios pecados ou por aqueles cometidos pelos antepassados, a lepra trazia consigo também um drama moral:

Ser leproso de corpo significava, antes de tudo, possuir lepra de alma. “Encontramo-nos com ideias populares dos antigos, nas quais se mistura o religioso e o natural. O leproso se considerava castigado por Deus em virtude de pecados ocultos”.4 Nesse contexto social, desenrola-se a cena recolhida por São Lucas.

A lepra, enfermidade simbólica

Nesta passagem, Cristo nos mostra a lepra como uma doença simbólica, pois ela destrói o organismo e deforma a beleza do semblante. Ora, muito pior que a lepra física é a espiritual contraída por quem comete um pecado mortal. Se a lepra física desfaz o corpo, a do espírito enfeia a alma, a torna repulsiva aos olhos de Deus e faz com que a pessoa se torne escrava de suas más tendências e paixões. O leproso físico era expulso da sociedade, enquanto o espiritual é retirado de uma sociedade muito mais excelente, a divina, pela privação da graça santificante, das virtudes, dos dons, de todo o organismo sobrenatural e, sobretudo, da inabitação da Santíssima Trindade. “A lei dos judeus considera a lepra como uma enfermidade imunda, e a Lei do Evangelho não considera imunda a lepra externa, mas sim a interna”.8

A lepra física é contagiosa, característica verificada também na da alma, pois a pessoa que abraça as vias do pecado acabará causando escândalos que levarão outros à ruína espiritual. Se a lepra física, depois de uma vida infeliz, levava à morte, a lepra do pecado amargura a existência e conduz a uma morte muito mais terrível: a eterna infelicidade, no inferno. A lepra física atinge apenas o corpo, mas se o doente enfrentar a situação com cristã resignação e espírito sobrenatural progredirá na virtude, podendo vir a ser santo. O pecado, embora possa ser cometido sem suficiente noção da gravidade de suas consequências, destrói a vida divina na alma, que é sua maior beleza, dano muito pior do que destruir a formosura do corpo e a saúde.


A cena repete-se ao longo da História

O milagre operado por Nosso Senhor ao curar os dez leprosos, Ele o continua a realizar a todo instante em favor de qualquer pecador que, arrependido, venha a suplicar o seu perdão. Ele exige apenas que seja obedecida a mesma recomendação dada aos leprosos: apresentar-se ao sacerdote. Esta prescrição legal não era senão uma pré-figura da absolvição sacramental, instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual nossas almas são purificadas da lepra do pecado.

O Evangelho de hoje sugere-nos uma atualíssima aplicação. Não temos lepra física, porém, nem sempre podemos dizer que estamos isentos da lepra espiritual. E em quantas ocasiões fomos mais beneficiados que os dez leprosos… É preciso, pois, não agir como os nove ingratos, mas imitar o exemplo do samaritano: voltar para agradecer a Nosso Senhor Jesus Cristo por nos ter curado tantas vezes da lepra interior, a começar pela maldição do pecado original, também por Ele abolida.

A prática da verdadeira gratidão

No entanto, quão rara é a virtude da gratidão! Muitas vezes ela se pratica apenas por educação e meras palavras. Todavia, para ser autêntica, é preciso que ela transborde do coração com sinceridade. É lamentável, afirma o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, que “a virtude da gratidão seja entendida hoje de um modo contábil. De maneira que, se alguém me faz um benefício, eu devo responder, contabilisticamente, com uma porção de gratidão igual ao benefício recebido. Há, portanto, uma espécie de pagamento: favor se paga mediante afeto, bem como mercadoria se paga mediante dinheiro. Então, eu recebi um favor e tenho de arrancar de dentro de minha alma um sentimento de gratidão. Também fico pago, tenho um alívio, estou quite”.9 Essa é uma forma pagã, materialista, de conceber a gratidão. Bem diferente é essa virtude quando impregnada de espírito católico.

“A gratidão é, em primeiro lugar, o reconhecimento do valor do benefício recebido. Em segundo lugar, é o reconhecimento de que nós não merecemos aquele benefício.

E, em terceiro lugar, é o desejo de dedicar-nos a quem nos fez o serviço na proporção do serviço prestado e, mais ainda, da dedicação demonstrada com relação a nós. Como dizia Santa Teresinha, ‘amor só com amor se paga’. Ou a pessoa paga dedicação com dedicação ou não pagou. […]

Dentro dessa perspectiva, a gratidão de nossas almas ao benefício que Nossa Senhora nos fez, consentindo na morte de seu Divino Filho e aceitando as dores que sofreu para que fôssemos resgatados, […] deve ser imensa e deve nos levar a querer servi-La com uma dedicação análoga”.10

Ora, além de dar-nos a vida humana, Deus nos concede o inestimável tesouro da participação na sua vida divina pelo Batismo e, mais ainda, nos dá constantemente a possibilidade de recuperar esse estado quando perdido pelo pecado, bastando para isso o nosso arrependimento e a confissão sacramental. Sobretudo dá-Se a Si mesmo em Corpo, Sangue, Alma e Divindade como alimento espiritual para nos transformarmos n’Ele, santificando-nos de maneira a nos garantir uma ressurreição gloriosa e a eternidade feliz. Ele nos deixou sua Mãe como Medianeira, para cuidar do gênero humano com todo carinho e desvelo. Os benefícios que Deus nos outorga são, assim, incomensuráveis!

Qual não deve ser, pois, nossa gratidão em relação a Nosso Senhor e a sua Mãe Santíssima? Abraçar com entusiasmo e abnegação a santidade e batalhar com sempre crescente dedicação pela expansão da glória de Deus e da Virgem Puríssima na Terra, eis o melhor meio de corresponder ao infinito amor do Sagrado Coração de Jesus, que se derrama sobre nós às torrentes, do nascer do sol até o seu ocaso. ♦

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O Inédito sobre os Evangelhos. Vol 06. Comentário ao Evangelho do XXVIII Domingo do Tempo Comum.
2) COLUNGA, OP, Alberto; GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Pentateuco. Madrid: BAC, 1960, v.I, p.688.
3) Cf. LAGRANGE, OP, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Marc. 5.ed. Paris: J. Gabalda, 1929, p.29.
4) COLUNGA; GARCÍA CORDERO, op. cit., p.685.
8) TITO BOSTRENSE, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XVII, v.11-19.
9) CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 1 jun. 1974. 10) Idem, 27 dez. 1974.

Uma resposta para “Dez curas e um milagre”

  1. Salve Maria
    Esta leitura me fez refletir o quanto somos ingratos com o nosso Pai celestial, pois vivemos esperando ele operar grandes milagres em nossas vidas, não observamos o grande amor dele por nós na Santa Eucaristia, que muitas vezes ignoramos, outras vezes não agradecemos tão sublime amor por nós.
    Que Santa Mãe de Deus e nossa nos ensine a sermos verdadeiramente gratos a tão grande amor.
    Muito obrigado.
    Salve Maria.

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