XVIII Domingo do Tempo Comum
Diante dos prazeres, até legítimos, que a vida nesta Terra pode oferecer, facilmente o homem se esquece da eternidade para a qual foi criado
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP
A vocação trocada por uma fechadura….
Conta-se que certa vez um monge acabou por abandonar sua vocação em troca de uma mera bagatela. Havia ele trabalhado durante anos como exímio ferreiro e, em determinado momento, sentira em seu interior um forte impulso para seguir as vias da vida contemplativa. Deixando tudo, dirigiu-se a um mosteiro, onde foi admitido.
Passado algum tempo, foi-lhe destinada uma cela cuja porta rangia e batia sem cessar dia e noite, pois não se fechava bem. Querendo resolver o problema, nosso monge pediu licença ao superior e fabricou uma magnífica fechadura. Além disso, aproveitou para consertar a própria porta, ajustando-a melhor ao marco da parede. Afinal, conseguiu transformá-la numa peça modelar para toda a comunidade.
Encantado com seu próprio labor, passeava pelos corredores do edifício, admirado por não achar nenhuma fechadura comparável à dele, tão perfeita e bem acabada. Entretanto, com o correr dos meses, foi criando dentro de si um apego excessivo pelo acessório, aparentemente inofensivo.
Certo dia ordenou o abade uma mudança de celas na comunidade. Acabrunhado pela perspectiva de ver-se obrigado a repetir o minucioso trabalho em seu novo destino, o monge-ferreiro pediu permissão para levar consigo a fechadura. Mas, por determinação do superior, ninguém dispunha de autorização para transladar alguma parte do mobiliário na mudança de uma cela para outra. Descontente com a deliberação do prior e não estando disposto a renunciar à sua excelente fechadura, o monge arrancou-a da porta e decidiu abandonar a vocação religiosa, recebida das mãos de Deus, portando consigo o objeto de seu apego e embrenhando-se nos caminhos do mundo…
O que está por detrás da história da fechadura desse monge? É o que nos ensina o Evangelho do 18º Domingo do Tempo Comum.
O episódio narrado neste Evangelho se passa quando Jesus e seus discípulos estavam a caminho de Jerusalém, cidade onde Ele iria consumar sua missão divina. Anteriormente, por duas vezes, já havia predito a Paixão (cf. Lc 9, 22.44). Contudo, os discípulos não entendiam o elevado significado de tal anúncio e ainda tinham a esperança de serem os primeiros no suposto Reino Messiânico a ser fundado por Cristo neste mundo (cf. Lc 9, 45-46). Para corrigir essa visualização humana, Ele os enviara em missão, dando-lhes poder para expulsar os demônios, e lhes ensinara o Pai Nosso, incitando-os à perseverança e confiança na oração (cf. Lc 10, 1.17; 11, 1-4). Foi em meio às atividades desse ministério tão sobrenatural que foi feito ao Mestre este singular pedido.
Naquele tempo, 13 alguém, do meio da multidão, disse a Jesus:
“Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo”.
As palavras iniciais do trecho evangélico contemplado deixam-nos patente a inteira disposição de Nosso Senhor de atender todas as pessoas ao seu redor. Mantendo o livre acesso a Si, sem intermediário algum, encontrava-Se sempre pronto a responder às necessidades dos que d’Ele se aproximavam. Só este minúsculo pormenor já seria suficiente para encher-nos de confiança.
De fato, a cena narrada apresenta-nos o caso de uma pessoa que se dirigiu a Jesus para pedir ajuda. Trata-se, sem dúvida, de um irmão mais novo enfrentando dificuldades na partilha de uma herança que lhe cabia. Pela lei civil judaica, quando dois irmãos herdavam do pai um legado, este deveria ser dividido em três partes, ficando duas para o mais velho e tão somente uma para o outro (cf. Dt 21, 17).1 Dado o caráter ganancioso do ser humano, apesar da lei, esse preceito não deixava de motivar frequentes discussões no momento de sua aplicação. Era comum tais contendas terminarem diante de um juiz, de um rabino ou de outro árbitro apropriado. Segundo comenta Lagrange, “os rabinos haviam habituado os judeus a recorrerem a eles para fechar as questões que deviam mais ou menos ser resolvidas de acordo com os princípios do direito”.2.
Um defeito comum a todas as eras
O contendor do Evangelho, ao se aproximar de Nosso Senhor pedindo-Lhe a intervenção na divisão de seus bens de família, nem parece ter-se detido um pouco para refletir a respeito da grandeza do Mestre diante da qual se encontrava, considerando-O apenas como alguém com enorme popularidade, como um advogado seguro para a causa que anelava ganhar para si. Bem podemos imaginá-lo sofrendo a perda do progenitor já na idade madura. A juventude ficara para trás e ele desejava garantir o futuro, preocupação muitas vezes dominante na pessoa que avança em anos.3 Essa é a mentalidade dos que, em tal etapa da vida, perdem o senso da generosidade e a capacidade de compreender o caráter transitório das posses temporais. E o irmão mais novo do Evangelho está com os olhos fixos em seu futuro, naquilo que poderíamos definir — apesar de paradoxal — como a perpetuidade desta Terra.
Desde o primeiro momento da saída de Adão e Eva do Paraíso Terrestre, a natureza humana passou a procurar o fruto da árvore da vida no exílio, na pátria terrena.
Também em nossos dias, e com mais intensidade do que em épocas anteriores, existe um forte anseio de encontrar, através da medicina, uma “ampola da vida eterna”, para tentar-se viver em um limbo permanente neste mundo.
Essa atitude é muito comum e — segundo expressão usada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira — poder-se-ia denominar “limbolatria”,4 termo que bem designa a posição dos adoradores de uma existência feliz em um limbo sem fim, numa contínua fruição de prazeres aqui neste mundo, esquecendo-se da verdadeira eternidade e do sobrenatural. Diante de tal concepção da vida, involucrada no pedido relatado no Evangelho, vejamos qual foi a resposta do Divino Redentor.
A missão de Nosso Senhor não era temporal
14 Jesus respondeu: “Homem, quem me encarregou de julgar ou
de dividir vossos bens?”
Não consta haver no Evangelho nenhuma negação clara e explícita de Jesus a qualquer pedido, sobretudo se feito com sincera humildade de coração. No entanto, no caso desse homem, Ele recusa pronunciar-se sobre o assunto, por não ser essa sua missão. Competia-a, sim, aos juízes e rabinos, os quais tinham por direito tal responsabilidade. Segundo comenta Santo Ambrósio, “aquele que tinha descido por razões divinas, com toda a justiça rejeita as terrenas, e não se digna fazer-se juiz de pleitos nem repartidor de heranças terrenas, pois a Ele cabia julgar e decidir sobre os méritos dos vivos e dos mortos”.5
Esses primeiros versículos são suficientes para deles tirarmos uma bela lição. A reação de Cristo nos mostra que quando alguém deseja um bem apenas para si, Deus se afasta. Zeloso, porém, pela eterna salvação de todos, quis apresentar àquele homem um novo ensinamento: o perigo de se deixar envolver de modo desequilibrado pelas questões de uma herança familiar. “Pedia o demandante a metade da herança” — afirma Santo Agostinho —, “pedia a metade de uma herança de Terra, e o Senhor lha ofereceu toda inteira no Céu: dava-lhe mais do que pedia”.6 Isso acontecera pelo fato de estar aquele homem voltado para os bens visíveis com uma volúpia incomum, querendo tê-los, de qualquer forma, em suas mãos.
O que é a ganância?
15 E disse-lhes: “Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de
ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida
de um homem não consiste na abundância de bens”.
Em primeiro lugar, é surpreendente ver Nosso Senhor fazendo uso da palavra atenção, para mostrar a importância capital da frase que ia proclamar. Ora, nesse versículo, devemos levar em conta que quando Jesus fala em “todo tipo de ganância” está querendo dizer que não devemos estar fixados desequilibradamente na questão do dinheiro. Mas não só. Com efeito, se dissesse somente “com a ganância”, poderia significar tão só o dinheiro. Havendo dito “contra todo tipo de ganância”, poderia ou não estar se referindo a ele, abarcando, portanto, outros bens materiais.
Se desejamos algo para nossa estabilidade ou bem pessoal, divorciado do amor a Deus e ambicionado com sofreguidão, isto se chama ganância! Ensina-nos o Doutor Angélico que o pecado da ganância se efetua “quando se almeja adquirir e ajuntar riquezas ultrapassando a devida moderação. Isto é próprio da avareza, a qual se define como sendo um desejo desmedido de possuir”.7 Voltando, então, à história do infeliz monge-ferreiro, cabe perguntar: como é possível a vida de um homem se resumir no amor a uma fechadura?
Sejamos honestos e olhemos bem de frente o amplo campo de bens ao nosso redor. São João da Cruz os define com precisão: “entendemos por bens temporais riquezas, estados, ofícios e outras pretensões, e ainda filhos, parentes, casamento, etc.”.8 Esses bens poderão consistir até mesmo em uma fechadura, um bichinho ou um objeto ao qual nos apegamos em excesso ou de modo desequilibrado, embora nos afaste de Deus.
No entanto, existem outras espécies de ganância como a do sentimentalismo e do romantismo, que nos obrigam a pôr Deus de lado para adorarmos o que é meramente humano. Quando alguém entrega seu coração à ganância dessa consideração e adoração dos outros — e esta é a essência do romantismo —, sempre quererá mais, vivendo em contínua inquietação. Ainda outro tipo de ganância é a vaidade, que leva ao desejo de chamar a atenção sobre si, seja pela beleza física, causando cuidado excessivo da própria aparência, seja por achar-se possuidor de uma grande inteligência ou dotado de outras qualidades. Ganância podemos ter inclusive em relação à saúde, tomando cuidados desproporcionais e exclusivos em relação ao corpo e ao tratamento das doenças.
O apego pode se concentrar em poucos bens
Nosso Senhor fala em “abundância de bens”. Todavia, é preciso ter presente que se nos encontramos em uma situação de escassez material, de dinheiro ou de bens de outra índole, isto não significaria estarmos livres do risco de apego a alguma coisa, como mostra o conto sobre o monge e a fechadura.
Nesse sentido, continuando sua análise, São João da Cruz comenta como, de fato, é terrível a afeição desregrada à abastança material, mas explica que se uma pessoa tem muitos bens, o apreço dela se dividirá por todos eles. Será o caso, por exemplo, de um possuidor de mil moedas de ouro. Se vier a perder uma só, ficando com novecentos e noventa e nove, o abalo não será tão grande. Porém, se perder novecentos e noventa e nove, todo o seu cuidado pelas mil moedas se concentrará na que lhe restou. Dessa forma, quem tem poucos bens pode lhes ter um apego tão intenso como o de um nababo por toda a sua fortuna, esquecendo-se, por causa disso, de Deus.
É indispensável, contudo, ressaltar um matiz importante. Jesus não está condenando, nesta parábola, a posse de bens, nem o princípio de propriedade, mas sim a ganância, ou seja, o desregramento na consideração dos bens temporais.9
Um homem abençoado por Deus
16 E contou-lhes uma parábola: “A terra de um homem rico deu
uma grande colheita”.
O Divino Mestre frisa, já no princípio, a fortuna desse homem da parábola. Era rico, bem estabelecido e atendido com largueza em todas as suas necessidades. De fato, a pecuária e a agricultura eram as principais fontes de riqueza na Palestina daquele tempo. E ele estava, pois, lucrando, porque a generosidade de Deus lhe havia proporcionado a alegria de viver na abundância. Tanto tinha sido favorecido, que sua terra lhe dera uma grande colheita e, segundo podemos supor pela continuação da narrativa, com um resultado muito superior ao normal.
Ora, essa terra, a quem pertence? Sem dúvida é propriedade do agricultor, mas quem a criou? Quem a fez produzir frutos? É certo que foi a semente, entretanto… quem engendrou a semente? E se formos mais adiante, chegaremos à conclusão de que, no fundo, tudo é de Deus e só a Ele pertence! “De Deus procedem todos esses benefícios, a boa terra, a boa temperatura do céu, a abundância de sementes, a ajuda dos bois e de tudo o que a agricultura necessita para produzir com abundância. E o que descobrimos nesse homem?”.10 Descobrimos que, diante de tal bondade da Providência Divina, sua reação não foi de reciprocidade.
Egoísmo e ganância sempre vão de mãos dadas
17 “Ele pensava consigo mesmo: ‘O que vou fazer? Não tenho
onde guardar minha colheita’. 18 Então resolveu: ‘Já sei o que
vou fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles
vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. 19 Então
poderei dizer a mim mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva
para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!’”
A atitude inicial do proprietário é a daquele que, de repente, se depara com uma situação de fartura inesperada. “Que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita!”. Lamentável foi a intenção, cheia de egoísmo, subjacente a este seu primeiro pensamento. Ao encontrar os campos floridos e prontos para deles tirar o rendimento de uma safra como jamais lograra imaginar, o homem sentiu efervescer em si o elixir da “limbolatria”, isto é, o desejo de permanecer nesta Terra por toda a eternidade, sem infortúnios, como demonstram as palavras do versículo seguinte.
Deus desapareceu de seus planos, e quando isso acontece, entra o desastre. Como efeito, quando O retiramos do centro de nossas preocupações, nossa própria pessoa assume com rapidez o papel principal de nossa vida, pois para nós só existem dois amores: ou amamos a Deus até o esquecimento de nós mesmos, ou amamos a nós mesmos até o esquecimento de Deus.11
O personagem da parábola quer guardar o produto da boa colheita de modo exclusivo para sua satisfação. Conforme advertia Nosso Senhor pouco antes, ele é ganancioso e avarento; deseja tudo para si e só para si! Partindo de um princípio errado — o da egolatria —, nem sequer se lembra de fazer algum bem aos outros. Havendo recebido com copiosidade das mãos do Criador aquela colheita, e numa quantidade tão superior à esperada, de forma a nem ter onde armazená-la, ele deveria, segundo o desejo divino, utilizá-la também para o bem do próximo. Mas não lhe passara pela cabeça semelhante possibilidade! Se uma alma não tem a Deus como centro de suas cogitações, entra-lhe uma sofreguidão própria ao apego e, com ela, a perturbação. “Non in commotione Dominus — o Senhor não está na agitação” (I Re 19, 11). O espírito de ganância faz-nos perder a paz.12
Do mesmo modo como o já comentado monge-ferreiro não se preocupara em fazer novas fechaduras para todas as celas do mosteiro — embora fosse notável na profissão e tivesse sobrada habilidade para fazê-las —, aquele proprietário da parábola pretende construir os celeiros pensando em uma estabilidade baseada no mero gozo da vida pessoal. Em ambos sobressai uma profunda atitude egoísta.
Por outro lado, o Mestre não afirma haver uma intenção explícita de pecado em tudo isso. No entanto, ao pôr na boca daquele agricultor as palavras “descansa, come, bebe e aproveita…”, aponta para um esquecimento do Primeiro Mandamento da Lei de Deus: “Amarás o Senhor teu Deus sobre todas as coisas”. Quem causara aquela situação de fartura fora agora posto de lado e não mais lembrado.
É por esse motivo que tal proprietário nem acha suficiente o considerável sustento reservado nos celeiros já existentes. No ano seguinte e nos próximos, iria colher de novo, quiçá ainda mais. Contudo, a avareza e o desejo de fruir tornavam-no cego. Este é o pensamento de todos quantos são dominados pela ganância. Nunca se satisfazem com os dons recebidos das mãos de Deus, ansiando por algo a mais. “A razão pela qual a cobiça nunca se sacia é que o coração do homem está feito para receber a Deus. […] Assim sendo, não pode enchê-lo aquilo que é menos que Deus”.13
Essa insatisfação traz um desequilíbrio emocional, traduzindo-se seus frutos na falta de virtude, devido ao desejo desordenado de querer cada vez mais.
É a ganância qualificada por São Bernardo de “mal sutil, secreta peçonha, peste oculta, artífice da dor, mãe da hipocrisia, pai da inveja, origem dos vícios, semente de excessos, […] traça da santidade que torna cegos os corações, converte em doenças os próprios remédios e em novos achaques a medicina”.14
Ai de quem erige sua vida — espiritual ou temporal — só para si mesmo! Mais cedo ou mais tarde ouvirá a mesma advertência saída dos lábios de Nosso Senhor ao homem desta parábola.
No fim da vida, de nada nos servirá a ganância
20 “Mas Deus lhe disse: ‘Louco! Ainda nesta noite, pedirão
de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?’
21 Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo,
mas não é rico diante de Deus”.
Continuava a acumular trigo e bens materiais, pretendendo construir um novo celeiro seguro, pois fizera da vida no tempo seu último fim, julgando prolongá-la eternamente. Sua loucura consistiu em um ato de desamor em relação ao eterno. Esse pobre coitado talvez até tenha visto a demolição da antiga despensa. Sem embargo, nem sequer pôde ver os fundamentos da nova construção.
Quem não cumpre o Primeiro Mandamento da Lei de Deus encontra-se no caso desse infeliz. Tal é a atitude de muitas pessoas, as quais, “obscurecidas com a cobiça, nas coisas espirituais servem o dinheiro e não a Deus, e movem-se pelo dinheiro e não por Deus, pondo à frente o preço e não o divino valor e prêmio, fazendo de muitos modos seu principal deus e fim o dinheiro, antepondo-o ao último fim que é Deus”.15 Esquecem-se das duas vidas presentes dentro de si: a humana e a divina, e cuidam com todo o zelo da primeira, deixando de cuidar da última, que é o estado de graça.
Ora, quem de nós não sofreu a tentação de acumular outros tipos de bens, apesar de eles nos afastarem de Deus e da eternidade, esquecendo a breve duração da nossa vida? Quantos e inúmeros casos há, na História, de pessoas cuja vida foi arrancada precisamente quando passavam pelo auge de uma realização terrena! Com efeito, afirma com severidade São João da Cruz: “todas as vezes que gozamos de maneira vã, Deus está nos olhando, traçando algum castigo e trago amargo, segundo o merecido”.16 Não sejamos loucos! Quem pode assegurar o dia e a hora da própria morte, se até os médicos são incapazes de determiná-las com exatidão? Quem pode garantir a duração de sua vida até o fim da noite de hoje? Quem pode certificar-se de que continuará existindo amanhã? Para morrer, basta uma única condição: estar vivo!
Portanto, é mil vezes melhor estar, a todo instante, com a principal atenção posta no que é eterno. Depois da morte viveremos para sempre e, em um determinado momento, recuperaremos nossos corpos, em estado de glória ou de horror, dependendo de nossas obras. Se formos para o Céu receberemos a glória, mas se formos para o inferno será o perpétuo sofrimento.
Valerá a pena, pois, ficar perturbado, vivendo na aflição das coisas concretas, esquecendo-se das eternas? Ao proceder desse modo, por mais que possuamos incontáveis colheitas, desejemos construir inúmeros celeiros ou tenhamos propriedades sem fim; ou, em situação oposta, ainda que sejamos pobres, sentados à beira de um caminho pedindo esmola, o resultado será o mesmo: ficaremos amargurados, como o triste homem da parábola, dispostos a com ele construir um celeiro para esta Terra e não para a eternidade.
A legitimidade da reserva
Entretanto, uma pergunta pode surgir em nosso interior: como agir em relação às incertezas da vida presente? É legítimo fazer reservas? Como apaziguar as lícitas preocupações humanas com a estabilidade material? Na verdade, quem não examinasse com esmero o texto evangélico poderia ficar com uma impressão errada, imaginando que está se reprovando o direito de possuir, pois o homem da parábola é tido como louco pelo próprio Jesus. Estaria Deus condenando a aspiração a um direito, posta por Ele mesmo na alma humana17 — o direito de propriedade —, dando a ideia de que é pecado desejar ou possuir bens?
Qual foi a loucura do homem? Teria Cristo condenado o ato de fazer reserva, pelo simples fato de o agricultor, havendo reunido uma enorme colheita, muito acima de suas expectativas, ter querido levantar um celeiro capaz de receber grandes quantidades até o fim da vida? Se assim fosse, toda casa com despensa estaria condenada, porque não seria permitido fazer provisões, de acordo com este Evangelho…
Infelizmente não é raro ouvirmos argumentos absurdos contra o direito de propriedade. Ora, ele está presente nessa aspiração posta por Deus no coração humano. E é a prática de tal direto que nos permite conservar os meios para garantir a subsistência e atender as necessidades pessoais e familiares ou, até mesmo, para uma digna representação social. Mas, antes de tudo, é preciso ser rico perante Deus. E essa riqueza se conquista tendo-se a primeira atenção voltada para os bens eternos. Dessa forma, se o amor a Deus estiver presente e o egoísmo posto de lado, até o fazer reserva e o entesourar bens será legítimo.
Porém, o amor a Deus exige um desdobramento de amor ao próximo. É preciso, então, receber e economizar para sempre distribuir, sem guardar com exclusividade para si. Esta regra estende-se não só ao dinheiro e aos bens puramente materiais, como também a todo e qualquer benefício ou qualidade dada por Deus. Poder-se-ia, do mesmo modo, aplicar a condenação do Evangelho a quem estuda apenas com o intuito de se tornar um gênio e não para transmitir seus conhecimentos aos outros; quem reza por si e nunca pelos demais; quem se relaciona com seus semelhantes com intuito de satisfazer o desejo de louvores e estima pessoal, e não de fazer-lhes o bem, em função da salvação eterna. Tais desvarios tornam os atos de uma pessoa maléficos e marcados com o carimbo inconfundível do egoísmo.
Não tirar os olhos da eternidade
E necessário, pois, termos presente quão rápido passamos por esta Terra. Nossa atenção não pode fixar-se só neste mundo e esquecer o outro. Quantas vezes, ao longo dos séculos, verificamos que, quando uma nação ou uma área de civilização decide voltar-se para Deus, abrindo-se para a perspectiva da eternidade, tudo quanto é bom floresce!
Por outro lado, quando os homens excluem Deus do centro de suas vidas e Lhe roubam o lugar a Ele reservado, toda espécie de desastres e castigos desabam em cima deles. Encontramo-nos, atualmente, em uma era de invenções e de magníficas descobertas científicas, as quais eram impensáveis em tempos idos. Ora, essas maravilhas acarretam para os homens um novo e grave problema, pois, diante delas, muitos podem ficar tão obcecados que se esquecem de Deus…
Em nossos dias, com mais ímpeto que antes, a imoralidade parece querer destruir de modo definitivo a moralidade, conforme indica a velocidade de degradação das modas, dos costumes, da família. Os desregramentos morais vão se generalizando de tal maneira que, se fosse oferecido a pessoas com expectativa de morte iminente um remédio para prolongar a vida um pouco mais, exigindo-lhes, porém, a renúncia à impureza, sem dúvida alguma, boa parte delas preferiria morrer, antes de perder a possibilidade de cometer esse gênero de pecado. Quem assim procede tem, no fundo, um espírito no qual impera uma deliberada desobediência aos Dez Mandamentos, pois seus olhos estão postos nas coisas daqui de baixo e não nas do alto. Com eles se passará o que expressa também a primeira leitura de hoje, do Eclesiastes:
“Um homem que trabalhou com inteligência, competência e sucesso vê-se obrigado a deixar tudo em herança a outro que em nada colaborou, também isto é vaidade” (Ecl 2, 21).
O sentido etimológico da palavra vaidade é vazio. Quem vive buscando ganâncias, imaginando com elas preencher a própria alma, corre atrás de um vazio. Quando fazemos uma viagem definitiva para outro país, temos a possibilidade de levar conosco todos os nossos pertences. Contudo, quando saímos deste mundo — passando pelo Juízo — rumo à eternidade, nada podemos levar, nem a própria roupa, pois esta fica na sepultura, com o corpo, e torna-se alimento dos vermes. Então, melhor será aplicar o capital no tesouro espiritual, para chegarmos ao outro lado muito mais afortunados. É o conselho que hoje nos é dado: não fixarmos nossa atenção e preocupações nas coisas concretas desta Terra, mas sim nas da eternidade, o que se obtém aceitando a admoestação de São Paulo aos Colossensses, na segunda leitura da Liturgia deste domingo: “Fazer morrer em vós aquilo que pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos, cobiça” (Col 3, 5).
Em suma, o problema não está em ter ou não ter, mas em ser rico diante de Deus. E para isso é preciso não ser romântico, não ser vaidoso, não querer o elogio dos outros, não buscar o dinheiro com sofreguidão, não ser orgulhoso. Ser rico diante de Deus é, na verdade, ser despretensioso, ser abnegado. Ser rico diante de Deus é ter muita fé. Esta é a riqueza para a qual Jesus nos convida.
Para atingir tal meta, não existe outro caminho senão o da vida de oração, onde encontraremos as graças necessárias para chegarmos felizes à eternidade. Praticar a virtude, procurando ser bom com os outros e querendo o nosso autêntico bem pessoal, eis a preparação para essa viagem sem retorno, viagem que dispensa passaporte, carteira de identidade, cartão de crédito e até visto de entrada. A entrada vai depender, isto sim, de uma vida agradável a Deus e inteiramente fiel à sua Lei. ♦