No auge da fama e da popularidade de Nosso Senhor, todos esperam para breve sua aclamação como um líder político sem precedentes. Jesus, porém, desfaz essa errônea expectativa com o anúncio de sua Paixão
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP
A tentação da terceira posição
E difícil para o homem, no relacionamento com o próximo ou com Deus, agir segundo as exigências de sua consciência, da moral e da verdade. Tomar uma atitude decidida e definitiva constitui uma escolha árdua, pois, por um lado, no interior da alma, clama a voz das más inclinações decorrentes do pecado e, por outro, o convite à retidão, à perfeição e à santidade feito pela graça.
Optar por uma dessas solicitações acarreta sérias consequências, surgindo a partir daí uma luta que continua durante toda a vida até o momento do juízo particular, fato que explica a conhecida afirmação de Jó: “a vida do homem sobre a Terra é uma luta” (7, 1). Não há uma idade a partir da qual seja possível considerá-la encerrada; pelo contrário, as batalhas espirituais tornam-se cada vez mais impetuosas com o passar do tempo. Comprova-o a hagiografia, ao mostrar a luta presente na trajetória terrena dos santos, até o último suspiro deles. Célebre é a exclamação de São Luís Grignion de Montfort, na hora da morte, indicativa de seu constante esforço para se manter fiel à Lei divina, da qual se julgava cumpridor muito imperfeito: “Cheguei ao termo de minha carreira: não pecarei mais!”1
Contudo, quando não é justo, o homem esmorece nesse combate ascético e procura encontrar um meio de descansar, desejando alcançar a recompensa eterna sem fazer esforço. Tal é a razão pela qual não existe uma corrente com maior quantidade de adeptos quanto a chamada terceira posição. Trata-se do partido mais numeroso existente no mundo, desde a saída de Adão e Eva do Paraíso, porque a tendência do homem não é ceder ao mal enquanto mal — pois ser mau é incômodo e implica também em lutar, exige agrede, ou seja, capacidade de luta —, mas sim fugir da dor. Nossa existência acarreta sempre padecimentos, pois é impossível viver sem sofrer, ainda quando se é inocente. Nem a Inocência em Si mesma, Nosso Senhor, nem a Inocente por excelência, Nossa Senhora, ficaram livres da dor, sendo inconcebível uma existência, por mais excelsa que seja, isenta de adversidades.
São Luís Grignion de Montfort, em sua Carta circular aos Amigos da Cruz, tratou dessa luta interior ao mostrar o glorioso caminho dos eleitos: “O conhecimento experimental do mistério da Cruz é dado a conhecer a muito poucos. Para que um homem suba até o Calvário e se deixe crucificar com Jesus, em meio a seu próprio povo, necessita ser um valente, um herói, um homem determinado e unido a Deus; que escarneça do mundo e do inferno, de seu corpo e de sua própria vontade; um homem resolvido a sacrificar tudo, a realizar tudo e a padecer tudo por Jesus Cristo. Sabei, queridos Amigos da Cruz, que aqueles que dentre vós não se encontrem com esta disposição, estes andam com um pé só, voam apenas com uma asa e não merecem estar convosco, porque não merecem ser chamados Amigos da Cruz, a qual devemos amar com Jesus Cristo, corde magno et animo volenti — com largueza de coração e ânimo generoso (cf. II Mac 1, 3)”.2
Não existe um terceiro caminho no qual juntemos as vantagens e as glórias da obediência a Deus com o gozo e as fruições do pecado. A batalha de nossa vida espiritual, portanto, cifra-se em tomarmos fervorosamente a primeira posição, sem nos deixarmos enganar pela falsidade da terceira. Como abrir, então, nossas almas à árdua via do sofrimento, única forma de atender ao chamado do Divino Mestre? É o que nos ensina Nosso Senhor neste Evangelho do 12º Domingo do Tempo Comum.
O exemplo do Salvador
A passagem apresentada neste domingo situa-se no período áureo da vida pública de Jesus, quando sua fama no mundo hebraico caminhava para o apogeu e se celebravam seus feitos por toda parte. A notícia dos milagres realizados já se espalhara por Israel, e não havia um só recanto onde não se comentasse a trajetória ascensional daquele Mestre cheio de influência e poderes sobrenaturais. Fillion comenta a importância do momento histórico e das afirmações de Cristo ora contemplados: “Chegamos a palavras e acontecimentos de altíssima importância. […] eis aqui acontecimentos extraordinários, inclusive dentro de uma vida tão extraordinária como foi a de Nosso Senhor. Essa vida, de si tão sublime, vai subir a regiões ainda mais elevadas antes de descer ao que muito justamente se chamou de vale profundo da dor e da humilhação. Se daqui em diante Jesus se ocupa menos em instruir o povo e o vemos mais raramente em contato com ele, consagra, em troca, mais atenção ao pequeno grupo de seus Apóstolos, aos quais revelará os segredos de sua origem e missão. Assim iremos penetrando cada vez mais no coração do Evangelho”.3
De fato, o episódio deste domingo é tido como um dos pontos auges do convívio do Salvador com os discípulos, e marco importante da instituição da Igreja docente. Os evangelistas São Mateus e São Marcos relatam encontrar-Se Jesus, nesse dia, nas proximidades de Cesareia de Filipe, cidade situada em território pagão, incrustada numa região isolada e de grandiosa beleza. São Lucas, embora não ofereça maiores especificações geográficas, registra um precioso pormenor que antecedeu a confissão de Pedro e o primeiro anúncio da Paixão: o Mestre estava orando.
Certo dia, 18a Jesus estava rezando num lugar retirado, e os
discípulos estavam com ele.
A oração de Jesus constitui um apaixonante mistério mencionado em diversas ocasiões ao longo dos Evangelhos. Dentre os quatro evangelistas, São Lucas mostra-se mais atento a esse detalhe, referindo-o com certa frequência. Os grandes episódios da vida de Cristo são precedidos por períodos de prece. O Evangelista menciona onze ocasiões em que Jesus reza ao Pai, embora nem sempre se detenha no conteúdo de tais colóquios.4
Dessa vez Nosso Senhor procura um lugar ermo e, sem despedir os que O seguiam, afasta-Se um pouco deles e entrega-Se a uma recolhida oração. Nossa piedade, estimulada pela grandeza do ato — o qual, de si, já bastaria para redimir a humanidade —, nos conduz à formulação de algumas perguntas: se Ele é Deus, a quem rezava? É Ele o destinatário da prece e, ao mesmo tempo, quem reza? A pluma dos teólogos torna-se débil para expressar a excelsitude do fato. Sendo Deus e Homem, e possuindo, por tal razão, duas naturezas distintas unidas na Pessoa Divina do Verbo, em Cristo encontra-se a onipotência unida à humanidade, sem que esta última perca uma só de suas características, tais como inteligência, vontade, sensibilidade, memória, imaginação e demais faculdades. Sua prece, portanto, parte da natureza humana e dirige-se à Trindade, cuja Segunda Pessoa é Ele mesmo, sendo a expressão da vontade humana de Jesus, deliberada e absoluta, intercessão perfeita que deve ser atendida.
Quão insondável e profunda é a oração do Mestre! Nunca conheceremos nesta vida ― tão só no Céu ― a força impetratória de um pedido d’Ele, como na comovedora frase “eu roguei por ti” (Lc 22, 32), pela qual perseverou não apenas São Pedro, mas também cada um de nós.
A excelência da oração e do recolhimento
Grande é o apreço de Nosso Senhor pela oração, tanto que quis servir-Se dela para derramar graças sobre o mundo. O que podia conceder diretamente como Deus, preferiu pedir enquanto Homem, indicando à humanidade um caminho infalível e harmônico com os desígnios divinos. Agindo dessa maneira, ensina São Cirilo de Alexandria, “constituía-se em modelo de seus discípulos”.5
Cornélio a Lápide, por sua vez, tece as seguintes considerações a propósito do valor e dos efeitos da oração: “Não há lugar nem tempo em que não devamos rezar. A oração é a coluna das virtudes, a escada da divindade, das graças e dos Anjos para descer à Terra, e dos homens para subir à montanha eterna. A oração é a irmã dos Anjos, o fundamento da fé, a coroa das almas […]. A oração é uma corrente de ouro que liga o homem a Deus, Deus ao homem, a Terra ao Céu; ela fecha o inferno, encadeia os demônios; previne os crimes e os apaga… A oração é a arma mais forte; ela oferece uma inquebrantável segurança, é o maior tesouro; ela é o porto seguro da salvação; é o verdadeiro lugar de refúgio”.6 Com efeito, a oração faz do homem um ser mais espiritualizado, no qual prevalece a graça de Deus e aquietam-se as paixões desregradas.
O Salvador ainda nos oferece outro tocante exemplo nessa cena. Ao retirar-Se para rezar, ensina a não nos limitarmos unicamente à oração comunitária, como a participação na Eucaristia ou outros atos litúrgicos. Sem menosprezar a prece coletiva, à qual está ligada a promessa da sua presença — “onde dois ou três estão reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18, 20) —, Ele mostra ser muito benfazejo rezar a sós, longe das aglomerações.
Ao contar que estava acompanhado de perto apenas pelos discípulos — pormenor que, no parecer de Bento XVI, denota o quanto eles “estão incluídos nesse estar só, em seu reservadíssimo estar com o Pai”7 —, quis o Evangelista mostrar a relação entre a oração do Divino Mestre e o elevado tema tratado por Ele a seguir.
Jesus interroga os discípulos sobre sua Pessoa
18b Então Jesus perguntou-lhes: “Quem diz o povo que eu sou?”
19 Eles responderam: “Uns dizem que és João Batista; outros, que
és Elias; mas outros acham que és algum dos antigos profetas que
ressuscitou”.
Voltando-se para os Apóstolos, Nosso Senhor os interroga a respeito do que ouvem dizer sobre Ele. A pergunta possui claramente uma finalidade didática, dando a entender a antecipação de outra mais importante. Podemos imaginar Jesus ouvindo com interesse as mais variadas e calorosas narrações da repercussão de suas obras oferecidas pelos Doze, os quais, no contato direto com as multidões, puderam recolher todo tipo de impressões, para oferecer ao Mestre um substancioso relato dos comentários populares. Sem necessitar de tal testemunho — que já conhecia desde toda a eternidade —, Ele procedeu desse modo para trazer à tona a opinião geral, antes de fixar a verdadeira, que de muito a ultrapassava. Ficaria patente aos olhos dos discípulos, portanto, a insuficiência das afirmações admitidas e a necessidade de possuírem a seu respeito uma visão perfeita.
Tudo indica haver sido essa conversa mais extensa do que a sintética narração dos evangelistas, os quais, na afirmação de São João Crisóstomo, “costumam resumir fatos e palavras, movidos pelo desejo de ser breves e sucintos”.8 Terão aflorado opiniões diversas, mais ou menos acertadas. Sintetizando o parecer dos judeus quando faziam um paralelo entre Jesus e as figuras de João Batista, Elias e Jeremias (cf. Mt 16, 14), os Apóstolos transmitem o que era a voz corrente. Não obstante, Jesus era incomparavelmente mais: a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Deus feito Homem, que viera para operar curas corpóreas, sanar as almas e, mediante o sacrifício cruento do Calvário, extirpar a chaga do pecado e abrir as portas do Céu. Por fim, chegara o momento dessa altíssima revelação!
A confissão de Pedro
20 Mas Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?”
Pedro respondeu: “O Cristo de Deus”. 21 Mas Jesus proibiu-lhes
severamente que contassem isso a alguém.
Depois de ouvir com atenção o que os Apóstolos tinham a dizer, Nosso Senhor os interroga, por sua vez, sobre essa mesma questão. Agora importa saber o pensamento deles, já que estão em privilegiadas condições para emitir um juízo. Não veem Jesus apenas ao longe, nas praças ou no Templo, mas acompanham-No todos os dias; entregaram-se a seu serviço e são os depositários de sua máxima confiança. Seria cabível opinarem o mesmo que o povo, posto que vissem e soubessem muito mais? “Aqui” — dirá São Tomás de Aquino — “a fé dos discípulos é examinada”.9 Ao formular a pergunta, separando-os do resto das pessoas — “e vós?” —, deixa o Mestre entrever que espera de seus seguidores uma resposta diferente, por não corresponderem os comentários do povo à plena verdade. Por isso, ensina São Cirilo: “Quão discreto é esse ‘vós’! Distingue-os dos outros para que também fujam de suas opiniões e assim não tenham uma ideia indigna d’Ele”.10
Sobre a didática empregada por Nosso Senhor ao incitá-los a um parecer, ensina o Doutor Angélico que Ele atuou dessa forma por desejar dar-lhes o mérito da fé.11 Caberia a Pedro, o Apóstolo veemente, decidido e loquaz, a glória de ser o primeiro a proclamar que Jesus era o Filho de Deus encarnado, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Sua percepção, todavia, não poderia ser atribuída à sua mera perspicácia natural, mas sim a uma graça especial para apreender aquilo que a inteligência não alcançava, por se tratar de um dos principais mistérios de nossa fé: “Quando Jesus lhes perguntou qual era o parecer do povo, todos falaram; no momento em que deseja conhecer a opinião pessoal deles, Pedro se adianta a todos e exclama: ‘Tu és o Cristo’”.12 Tão solene confissão foi ditada por uma elevada inspiração no interior de Pedro, conforme reconhece o Salvador: “Feliz és, Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16, 17). Um magnífico passo rumo à exaltação de Nosso Senhor está dado partindo de seus mais próximos.
A seguir houve a instituição do papado, episódio que faz vibrar a alma católica, apesar de omitido na versão de São Lucas (cf. Mt 16, 18-19). Está dito, no entanto, que Jesus proibiu severamente transmitir a terceiros o que acabava de ser dito, impedindo com divina autoridade que extravasasse daquele âmbito uma declaração de tamanha gravidade. Não é difícil intuir que ali pairava uma graça favorecendo a entusiasmada aceitação da verdade. Além disso, é natural prever a explosão de cólera que esse ato de fé causaria, caso chegasse aos ouvidos das autoridades religiosas de Israel. Havia outro motivo — como analisaremos logo abaixo — para desaconselhar, por ora, a difusão da verdadeira identidade do Senhor.
Espera de um falso Messias
Os Apóstolos, como todos em Israel, aguardavam com sofreguidão o advento do Messias prometido por Deus e anunciado pelos profetas. Uma santa expectativa norteava a vida de cada judeu, fazendo convergir para esse personagem mitificado todos os seus anseios de felicidade. Em si mesmo, tal impulso deve ser tido não somente como legítimo, mas também como uma reação salutar à paganização da sociedade daquele tempo e sinal de fidelidade às promessas da Escritura. Caso não procedessem assim, dariam os hebreus mostras de uma reprovável tibieza. Era Deus que, em sua admirável Providência, os vinha preparando para a chegada de seu ungido. Haviam passado mais de quatro séculos da morte de Malaquias, e depois dele nenhum outro profeta erguera a voz entre os filhos de Abraão. Esse silêncio, acrescido às vicissitudes históricas que tiveram como palco a Palestina, nesse extenso período, concorria para compenetrá-los da importância e necessidade de tal varão.
Entretanto, uma deformação se estabelecera na mentalidade do povo eleito — e, por conseguinte, na dos Apóstolos — a respeito da índole da missão desse enviado. O Messias, o Cristo de Deus, não era para eles senão aquele que viria estabelecer a dominação dos judeus sobre os outros povos, resolver todos os problemas políticos, sociais e, sobretudo, financeiros do país; traria ele, antes de mais nada, uma felicidade humana. Ou seja, seria a súmula de uma espécie de super Moisés, de super Davi e de super Salomão, personagens que tinham levado a nação israelita a um auge de glória e fizeram tremer os estrangeiros. Ao lado de tão formidável poderio, pensavam eles, o Messias também seria um homem justo, cumpridor da Lei e temente a Deus, tal como os maiores expoentes do judaísmo. Coadunaria uma religiosidade exemplar com o despotismo dos césares, o respeito à Torá com o desrespeito aos gentios: numa palavra, seria o imperador da terceira posição. Com esse Messias haveria alguém que, por fim, traria todos os benefícios e extirparia todos os males de Israel.
Que imensa vitória! Por isso, Nosso Senhor faz aos Apóstolos uma nova revelação, logo após a declaração de Pedro, para todos inesperada. Primeiro Ele determina sigilo sobre sua origem, como se dissesse: “Não queirais jamais ensinar que Eu sou esse Messias que estais pensando. Sim, sou o Messias, mas não o que vós sentis e pretendeis. O Cristo que havereis de anunciar é o que Eu mesmo vos revelarei”.13 Depois, para extirpar o erro e educá-los adequadamente, Jesus, no dizer de Louis Veuillot, “sem lhes deixar formar qualquer ideia agradável da glória que os esperava, rasgou o véu do porvir, e mostrou-lhes o Calvário”.14
Sofrimento: a marca do Salvador
22 E acrescentou: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser
rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da
Lei, deve ser morto e ressuscitar no terceiro dia”.
“Tanto quanto o céu domina a Terra, tanto é superior à vossa a minha conduta e meus pensamentos ultrapassam os vossos” (Is 55, 9). Enquanto o povo esperava um Messias terreno, Nosso Senhor vinha trazendo o resgate da dívida infinita contraída com o Pai pelo pecado, o que nenhum homem, por mais santo e perfeito que fosse, poderia fazer. Não há termo de comparação para exprimir a superioridade da Redenção perante o mais esplendoroso dos impérios humanos, e, portanto, do que o Messias trazia aos judeus, comparado com o reino material que eles aguardavam.
Não obstante, para o pleno cumprimento de tão alta missão, era necessária a expiação na Cruz, a imolação do Filho de Deus. E essa declaração — que contradiz de forma contundente os sonhos de olhos abertos dos Apóstolos — é feita por Jesus com todo o seu realismo. Santo Ambrósio reconhece a dificuldade dos Doze em admitir o prenúncio da Paixão e comenta: “Quiçá porque sabia o Senhor que era difícil acreditar no mistério da Paixão e Ressurreição, mesmo tratando-se de seus discípulos, quis ser Ele mesmo o anunciador”.15 Já os vaticínios dos profetas do Antigo Testamento apontavam para um Messias padecente, fato de que ninguém queria se lembrar. Nosso Senhor, despertando-os de uma profunda letargia, mostra que seria desprezado pelo poder vigente, por aqueles sem cuja aprovação — ponderavam os Apóstolos — não se estabeleceria o reinado messiânico.
Ele quebra, desse modo, o apoio psicológico depositado em homens de falsa sabedoria, indicando serem precisamente estes os que tramariam a sua morte.
Então Jesus, o Mestre, seria morto! Sim, “é preciso estabelecer para sempre a verdadeira natureza da salvação trazida por Cristo; ela é operada pelos seus sofrimentos e pela sua morte”.16 A impressão produzida foi tão forte que os Apóstolos parecem não prestar atenção no anúncio da ressurreição ao terceiro dia. Quiçá tenha sido esse pasmo que os fez omitir novas perguntas sobre como se daria tal holocausto. Sem embargo, era chegado o momento de conhecerem o plano de Deus ao enviar o Filho Unigênito, uma vez que o Pai desejava conferir-Lhe toda honra e toda a glória e eles estavam a poucos meses desse acontecimento pinacular.
“Christianus alter Christus”
23 Depois Jesus disse a todos: “Se alguém me quer seguir,
renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me. 24 Pois
quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; e quem perder a sua
vida por causa de mim, esse a salvará”.
Voltando-se para a multidão, que até esse momento estivera guardando uma respeitosa distância do pequeno grupo, Nosso Senhor também lhe dirige a palavra. O ensinamento desses versículos nasce do ousado anúncio de seus padecimentos, e indica que, embora não fosse o momento de falar publicamente da Paixão, Ele considera oportuno instruir seus seguidores sobre o verdadeiro discipulado e a adequação dos espíritos à realidade da Cruz.
“Se alguém me quer seguir…”. O convite é explícito, respeitando, contudo, o livre-arbítrio, sem impor-se a ninguém à força. É preciso que os bons tenham o mérito da liberdade bem empregada, e sua adesão ao Divino Mestre deve se fundamentar no enlevo, nunca na coação. As pessoas congregadas ali em grande número não foram obrigadas a acompanhar Jesus até Cesareia de Filipe. E os Apóstolos também abandonaram as redes e os labores devido a um livre assentimento pessoal.
Pois bem, para levar à plenitude a adesão a Nosso Senhor, são indispensáveis novas renúncias, que sempre devem ser feitas por meio de um generoso sim da parte de cada um. A maior delas, sem lugar a dúvida, é a que diz respeito a si próprio, e por isso mais custa ao homem. Privado do dom de integridade, em razão do pecado original, ele vive num desequilíbrio que gera um apreço desmesurado por sua própria pessoa, levando-o, quando não é santo, a amar-se e a enaltecer-se de maneira pecaminosa. Ora, o perfeito amor a Deus não se atinge por meio da condescendência com essa má inclinação, mas pela entrega total do próprio ser Àquele que nos criou. A renúncia a si mesmo em benefício da glória de Deus torna-se uma exigência da fidelidade a Ele.
Abraçar a cruz significa assumir com radicalidade o cumprimento da vocação específica, recebida desde o Batismo. É fácil aceder ao chamado divino quando esse convite desponta em nosso interior soprado pelo vento favorável das consolações. Com o início das dificuldades de cada dia, em meio à aridez, aos padecimentos físicos ou morais, à perseguição ou aos atrativos do mundo, faz-se necessário abraçar o ideal e segui-lo por amor, tal como o exemplo de Nosso Senhor ao carregar a cruz com alegria, apesar de estar imerso num oceano de amargura. E suas dores foram incomparavelmente maiores do que as nossas, pois Jesus não nos pede nada que Ele mesmo não tenha padecido antes, em grau superlativo.
Têm sido extensos os comentários dos teólogos a respeito da interpretação desse impressionante versículo 24, onde se torna claro como o valor da vida eterna sobrepuja o da terrena, merecendo, inclusive, o alto preço do martírio. Entretanto, podemos ressaltar que “ganhar a vida” significa também ter uma existência pautada pelos Mandamentos, visando como objetivo a santidade. Em nossa época, na qual os homens pagam qualquer tributo para trilhar uma carreira brilhante e construir um nome de prestígio, lucraria muito quem meditasse nessa passagem, pois no afã de se obter um êxito mundano pode-se rumar para o inferno.
Em suma, o Evangelho deste 12º Domingo do Tempo Comum nos proporciona elementos para um exame de consciência: qual tem sido nossa postura perante a cruz com que Nosso Senhor Jesus Cristo passa diante de nós e nos convida a segui-Lo? Temos grandeza de alma para integrar o número de seus seguidores que têm espírito consequente, ou, mesmo nos deixando maravilhar pela sublimidade de seu ensinamento, somos iludidos pela atração das coisas pecaminosas, a exemplo dos filhos das trevas? Seremos contados no número dos que procuram a terceira posição, harmonizando o bem com o mal, numa união ilegítima?
A Liturgia de hoje nos aponta a solução para um dos maiores males do angustiante século em que vivemos, no qual a humanidade se utiliza de todos os meios tecnológicos, médicos e sociais para evitar a dor, e padece, como nunca, de angústias inenarráveis.
À primeira vista, parece um mistério o fato de nunca terem existido tantas possibilidades de bem-estar e, simultaneamente, sermos flagelados por toda espécie de catástrofes. Isto se deve a que fugimos da cruz por desconhecermos a imensa felicidade oferecida por ela quando é abraçada com alegria. À medida que adequamos todo o nosso modo de ser, perspectivas, visualizações, desejos, pensamento, dinamismo, atividade e tempo em função de Nosso Senhor, somos invadidos por uma paz interior que a nada pode ser comparada. Descem as bênçãos do Alto e operam-se as maravilhas da graça.
Com razão afirma o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “A graça do enlevo pelas coisas celestes, pelas coisas de Deus, proporciona a uma pessoa coragem para que ela carregue grandes cruzes como se fossem pequenas. Quer dizer, esse amor latente por Deus, por Nossa Senhora, pelas grandezas do Céu age com tal profundidade no homem que, por um ato de consentimento livre, consciente — e ao mesmo tempo subconsciente, o que parece paradoxal, porém verdadeiro —, ele se deixa transformar. E o amor à Cruz é o sintoma dessa mudança de mentalidade”.17
Assim, conformados com o Divino Redentor, estaremos aptos não só a reconhecê-Lo como o verdadeiro Messias, confessando com São Pedro: “Tu és o Cristo de Deus”, mas diremos também com o chefe da Igreja, desta vez com um timbre de autenticidade que somente a cruz é capaz de oferecer: “Senhor, sabes tudo, tu sabes que te amo” (Jo 21, 17). ♦