A Lei ou a Bondade?

 V Domingo da Quaresma

No episódio da mulher adúltera, os evangelistas não revelam tudo quanto estava oculto na urdidura feita pelos fariseus para colocar Jesus diante de um dilema: condenar a pecadora à morte, violando a lei romana, ou salvar-lhe a vida, desconsiderando a Lei de Moisés. Jesus superou a justiça salomônica

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP

Jesus veio para perdoar

Os Evangelhos são o testamento da misericórdia. O anúncio do maior ato de bondade havido em toda a obra da criação — a Encarnação do Verbo — é o frontispício, a bela abertura de sua narração. A chave de ouro com a qual esta termina deixa-nos sem saber se ainda não é mais bela e comovedora: a Crucifixão e Morte de Cristo Jesus para restabelecer a harmonia entre Deus e a humanidade.

A bondade divina une substanciosamente esses dois extremos, a Gruta de Belém e o Calvário, através de uma sequência riquíssima em acontecimentos escachoantes de amor pelos miseráveis: “Pois o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido” (Lc 19, 10).

Essa alegria de Jesus em perdoar transparece nas doutrinas, conselhos e até mesmo nas parábolas por Ele elaboradas a fim de que seus ouvintes melhor entendessem sua misericórdia, como, por exemplo, a do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32), a da ovelha desgarrada (cf. Lc 15, 4-7) e a da dracma perdida (cf. Lc 15, 8-10). A euforia de quem encontra, em qualquer dos três casos, reflete o contentamento do próprio Cristo ao promover o retorno de uma alma às vias da graça.

Ele é o Bom Pastor que ao apanhar a ovelha imprudentemente destacada do rebanho, a reconduz ao redil, a fim de infundir-lhe nova vida de maneira superabundante. E Ele a leva sobre seus próprios ombros, enquanto os Céus se enchem de um júbilo ainda maior do que o causado pela perseverança dos justos (cf. Jo 10, 11-16; Lc 15, 4-7).

Dentro dessa atmosfera de amor, jamais vimos Jesus, ao longo de sua vida pública, tomar a menor atitude depreciativa em relação a quem quer que fosse: samaritanos, centurião, cananeia, publicanos, etc. A todos invariavelmente atendia com divina atenção e carinho: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). Nenhuma pessoa d’Ele se aproximou em busca de uma cura, perdão ou consolo, sem ser plenamente atendida. Tal foi seu infinito empenho em fazer o bem, sobretudo aos mais necessitados: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores” (Mc 2, 17); “o Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu; e enviou-Me […] para publicar o ano da graça do Senhor” (Lc 4, 18-19).

O próprio Apóstolo dirá mais tarde: “Jesus Cristo veio a este mundo para salvar os pecadores, dos quais sou eu o primeiro” (I Tm 1, 15).

Malícia dos fariseus

Mas, assim como “é belo durante a noite acreditar na luz”,1 a Bondade substancial de Cristo Jesus se torna ainda mais luzidia aos nossos olhos quando contrastada com uma oposição toda feita de malícia. E esta nós a encontramos, radical e constante, do começo ao fim do Evangelho. Já o Precursor, ao distinguir entre os que o circundavam, alguns fariseus, os increpou: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que vos ameaça? […] Não digais dentro de vós: Nós temos Abraão por pai!” (Mt 3, 7.9).

São tão numerosas as investidas dos escribas e fariseus contra Jesus, em razão de sua misericórdia, que reproduziríamos uma boa parte dos Evangelhos se procurássemos ser minuciosos nas citações a esse respeito. Lembremos de passagem que eles chegam a chamá-Lo de possesso do demônio (cf. Jo 8, 52; 10, 20; Lc 11, 15), distorcem suas palavras e afirmações (cf. Mc 14, 58), perseguem-No com intensidade crescente (cf. Jo 7–11) até O condenarem à morte, e O acusam de revolucionário, porque, segundo eles, sublevava o povo contra o poder civil e afirmava que não devia ser pago o imposto ao imperador (cf. Lc 23, 2).

Jesus, a Misericórdia substancial, não é menos duro para com eles: “Se compreendêsseis o sentido destas palavras: Quero a misericórdia e não o sacrifício… não condenaríeis os inocentes” (Mt 12, 7). Por sete vezes, Jesus os chama de hipócritas, com a expressão: “Ai de vós escribas e fariseus hipócritas”, para — em cada uma — atribuir-lhes um pecado (cf. Mt 23, 13-29).

Ódio contra a bondade de Jesus

Essa indisposição farisaica contra Jesus tomava como motivo implícito sua infinita misericórdia, virtude específica de Deus: “Quem é de Deus ouve as palavras de Deus, e se vós não as ouvis é porque não sois de Deus” (Jo 8, 47). E, sobretudo, porque não queriam ser verdadeiros filhos de Deus, mas sim do diabo (cf. Jo 8, 44). Além dessa terrível ascendência que lhes é definida por Jesus, recebem também o título de “ladrões”, “homicidas” (Jo 10, 10) e “víboras” (Mt 12, 34).

Ora, o ódio farisaico contra a Bondade também deveria se refletir na repulsa que manifestavam em relação aos necessitados. E é, portanto, no contraste com a acidez dos fariseus e escribas contra os pecadores que vemos rebrilhar ainda mais a bondade de Cristo. Ela se torna histórica quando chega aos extremos limites de absolver uma Madalena (cf. Lc 7, 47-48) ou, no alto do Calvário, o bom ladrão (cf. Lc 23, 43).

Os fariseus se indignavam contra essas atitudes de Jesus porque seu puritanismo procedia de uma falsa justiça, toda feita de orgulho, e por isso se afastavam dos miseráveis, desprezavam-nos e jamais demonstravam sentimentos de compaixão por qualquer carente.

É no embate entre a Bondade infinita e o falso amor à Lei, que se desenrola o drama do Evangelho de hoje.

O episódio da mulher adúltera

1 Dirigiu-se Jesus para o Monte das Oliveiras.

Segundo nos diz Alcuíno,2 Jesus passava o dia pregando no Templo de Jerusalém e, ao entardecer, retornava a Betânia para repousar na casa de Lázaro. De acordo com este versículo, nessa ocasião, por ser a última tarde de festa, é possível que Jesus tenha passado a noite em oração, no Monte das Oliveiras. Quem melhor comenta esta passagem é o padre Andrés Fernández Truyols, SJ:

“Terminado o ministério apostólico de todo dia, tornado mais árduo pelas discussões às quais seus eternos adversários o obrigavam, que não lhe deixavam momento de repouso, enquanto seus ouvintes voltavam cada um para sua casa, Jesus se retirou para o Monte das Oliveiras. Não parece que se afastasse até Betânia, o que teria sido provavelmente indicado pelo autor. O mais certo é que passasse a noite numa tenda ou uma gruta; talvez naquela que foi considerada por muitos como a Gruta da Agonia ou, porventura, na que se encontra quase no topo do monte, e que a tradição consagrou como a cátedra dos ensinamentos de Jesus, sobre a qual Santa Helena edificou uma basílica. Desse modo, tanto de uma como da outra, Jesus podia dirigir-se rapidamente ao Templo pela porta oriental, que coincidiria mais ou menos com a hoje chamada Porta Dourada. De resto, o Monte das Oliveiras era um local familiar para Jesus”.

2 Ao romper da manhã, voltou ao Templo e todo o
povo veio a Ele. Assentou-Se e começou a ensinar.

Ninguém jamais poderá imaginar a irresistível força de atração exercida por Jesus em relação a quem viesse a conhecê-Lo. Disso dão uma ideia os Evangelhos, que constituem meras sínteses de maravilhas indescritíveis. Tal é seu empenho em fazer o bem que, logo ao raiar do dia, Ele vai ao Templo, certamente já seguido por outros pelo caminho. À sua entrada todos se juntam a seu redor para ouvi-Lo. Era o início de mais uma longa jornada de pregação conversada, na qual poderiam tomar parte ativa, com perguntas ou comentários, quaisquer dos presentes, numa atmosfera inteiramente amena e familiar. Por isso, Ele Se sentou e começou a ensinar. De repente, aquele sagrado convívio foi interrompido por um fato inusitado.

A adúltera é apresentada a Jesus

3 Os escribas e os fariseus trouxeram-Lhe uma mulher
que fora apanhada em adultério.4a Puseram-na no meio da multidão…

A adúltera foi colocada no centro da multidão, para ser julgada como fautora de um crime e, dessa forma, ipso facto, constituíram a Jesus como juiz.

Esse fato, inevitavelmente, levanta uma importante questão: o que teria acontecido com o homem implicado na mesma falta? Qual a razão de ele não ter sido apresentado a Jesus, nessa ocasião? Ora, o texto da Escritura é peremptório sobre a obrigatoriedade da punição de ambos: “Se um homem cometer adultério com uma mulher casada, com a mulher de seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos de morte” (Lv 20, 10); ou ainda: “Se se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, ambos deverão morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma. Assim, tirarás o mal do meio de ti” (Dt 22, 22).

Várias hipóteses levantam os autores a esse respeito; não encontramos, porém, nenhuma que leve até ao extremo a desconfiança em relação à perfídia daqueles escribas e fariseus. Permitido nos seja, conhecendo a consumada maldade que lhes era característica, levantar uma suspeita sobre a “fuga” do infrator adúltero: não seria ele cúmplice de seus mandantes para, assim, conseguirem um flagrante? Neste caso, provavelmente, a adúltera teria sido induzida ao crime, deixando-se levar mais por ingenuidade e pela inclinação de suas paixões, do que por dolo.

Cabe aqui a pergunta clássica: “A quem aproveitou o crime?”. Já na época de Daniel, os acusadores não haviam conseguido agarrar o suposto parceiro de Susana no adultério caluniosamente inventado pelos dois juízes anciãos. E no caso do Evangelho de hoje, quem era o criminoso? A mulher teria se negado a declará-lo? Espanta-nos a facilidade com que os escribas e fariseus encontraram uma adúltera, para ser introduzida no Templo, bem àquela hora e em tal circunstância, tão favoráveis para armar uma cena show que envolvesse a Jesus.

Acrescente-se este outro dado: duas criaturas humanas, adultas, que fossem perpetrar um crime punido com pena de morte imediata, por mais primitivas que fossem, procurariam se proteger de qualquer risco de um flagrante. Ora, o caso em questão realizou-se em condições tais que dificilmente deixaria de ter sido planejado por terceiros, interessados em sua consecução.

Os fariseus invocam uma lei em desuso

4b …e disseram a Jesus: “Mestre, agora mesmo
esta mulher foi apanhada em adultério. 5 Moisés
mandou-nos na Lei que apedrejássemos tais
mulheres. Que dizes Tu a isso?” 6 Perguntavam-Lhe
isso, a fim de pô-Lo à prova e poderem acusá-Lo.
Jesus, porém, Se inclinou para a frente e
escrevia com o dedo na terra.

A expressão “apanhada em adultério” confere ainda mais substância à hipótese de um crime planejado por várias pessoas, com um intuito que se tornará explícito na revelação contida no versículo seguinte. Ademais, a afirmação fortemente categórica da parte deles evitava que fossem arguidos por Jesus a respeito das provas, pois nem a própria mulher procurava defender-se. Talvez, pela delicadeza de sua alma feminina, não insinuava sequer quem fosse seu cúmplice naquele crime.

Flávio Josefo, famoso historiador judeu daqueles tempos — portanto, de certo modo, insuspeito —, conta-nos que havia caído em desuso a lei que punia com pena de morte os réus condenados por esse tipo de crime.

Rigorismo em meio ao relaxamento geral dos costumes

Sob o reinado dos Herodes, a corrupção dos costumes em Jerusalém havia chegado ao extremo. Quiçá fosse essa uma circunstância que propiciasse aos fariseus e escribas criarem, junto a Jesus, o impasse de como proceder naquele caso de adultério. Seja como for, “sob as aparências de zelo pela Lei, aqueles homens hipócritas e rancorosos armavam para Jesus uma armadilha maldisfarçada. Estavam certos de que Aquele a quem chamavam ironicamente pelo epíteto de ‘amigo de pecadores e publicanos’ Se mostraria indulgente com a culpada; e então eles O acusariam de violar a Lei divina num ponto fundamental”.

Na mesma linha, comenta o padre Andrés Fernández Truyols, SJ: “A pergunta, aparentemente respeitosa e até honorífica para Jesus, era na realidade insidiosa. Se Ele Se pronunciasse pelo castigo, tacha-Lo-iam de duro; se absolvesse, seria acusado de violar a Lei”.5 Por outro lado, vale a pena observar o contraste entre os fiéis, que ouvem enlevados as palavras do Salvador, e a sanha dos doutores da Lei e dos fariseus em condenar Jesus. “Enquanto os pacíficos e simples admiravam as palavras do Salvador, os escribas e fariseus Lhe faziam perguntas, não para aprender, mas para preparar armadilhas à verdade”.

Querem tornar Jesus réu de sua própria sentença

Tornou-se famoso o dilema criado pelos fariseus a propósito do pagamento do imposto, se a César ou ao Templo. O “dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21) marcou a História. Entretanto, o caso trazido a lume pela Liturgia de hoje foi montado com muitíssimo mais habilidade. Decidindo por uma ou outra solução, Jesus, ou se levantaria contra o poderio romano, ou se declararia discordante de Moisés e, portanto, do Sinédrio. Se sua sentença fosse no sentido de que lapidassem a

mulher, na certa seus inimigos procurariam entregá-Lo a Pilatos por ter violado a lei imposta por Roma às províncias conquistadas e suas sufragâneas: o direito de vida e de morte lhe pertencia com exclusividade. Sem contar que teriam elementos para sublevar o povo contra sua radicalidade e intransigência.

Jesus contra Moisés

Se Jesus a absolvesse, agitariam os fiéis pelo fato de Ele Se opor à Lei de Moisés e O arrastariam ao Sinédrio para ser excomungado e entregue à autoridade romana. Provavelmente, “queriam colocar Cristo em oposição à Lei de Moisés, dando a entender que O consideravam um outro Moisés, o qual trazia uma lei mais perfeita que a do primeiro.

Tudo era feito para incentivá-Lo e provocá-Lo, de modo que Ele tomasse partido contra a Lei de Moisés, dando-lhes ocasião de acusá-Lo. Que dizes Tu a isso? Contrapondo-O a Moisés, como se O elevassem acima de Moisés. Tu, que és maior que Moisés, a quem não se aplicam suas leis, porque promulgas outra melhor e mais perfeita, o que dizes? Aprovas ou reprovas a sentença da Lei mosaica? Por todos os meios, procuram colocá-Lo na tentação de dizer algo contra Moisés, em face de todo aquele público, já que O reconhecem como superior ao grande legislador”.

Jesus responde por escrito

Chama especialmente a atenção a inédita atitude do Divino Mestre, de inclinar-Se, permanecendo sentado, e pôr-Se a escrever “com o dedo na terra”. Jesus Se encontrava perto do pátio das mulheres, na galeria do Tesouro, e não sabemos de que maneira era constituído o piso desse local. Seja como for, provavelmente a escrita seria de molde a poder ser lida por outrem. Consideremos o fato de escribas e fariseus terem se postado perto de Nosso Senhor e, ainda mais, por se encontrarem de pé, não lhes era difícil ler os caracteres desenhados por Ele. Jesus escrevendo: é a única ocasião em que isso acontece em toda a narração dos Evangelhos. Como imaginar a forma das letras e a sequência das palavras? Evidentemente, só poderiam ser as mais belas entre todas as possíveis. Algo legível deveria restar no chão, talvez impresso sobre a própria poeira do caminho.

O que teria escrito Ele naquele momento? Mais adiante trataremos desse pormenor.

Jesus eleva a questão do plano jurídico ao moral

7 Como eles insistissem, ergueu-Se e disse-lhes:
“Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro
a lhe atirar uma pedra”.

No Deuteronômio encontramos a clara obrigatoriedade de a primeira testemunha de um crime, punido com pena de morte, atirar a primeira pedra: “Tens, ao contrário, o dever de matá-lo: serás o primeiro a levantar a mão para matá-lo, e a levantará em seguida o povo” (Dt 13, 9). Ou, como mais adiante: “As mãos das testemunhas serão as primeiras a feri-lo para matá-lo, depois as mãos de todo o povo” (Dt 17, 7).

Diante do Senhor se encontravam mestres da Lei e fariseus, peritos no domínio desses conhecimentos relativos à jurisprudência. Portanto, Jesus não se exime, pronuncia a sentença, mas, a propósito de sua execução, aproveita o ensejo para transferir a problemática do campo jurídico a um plano muito mais elevado, ou seja, o moral.

Frase divinamente célebre, se ela fosse gravada de forma indelével em nossos corações, compenetrados estaríamos de nossa indignidade, de nossas insuficiências, pecados, etc., e não seríamos ásperos com ninguém, nem repreenderíamos com dureza de coração os culpados. Doçura, humildade e compaixão constituiriam a essência de nosso relacionamento, e assim, atrairíamos a benevolência de Deus e seríamos causa de edificação do próximo.

Creio que Cristo quis criticá-los, e não só dava a entender que podiam pecar, enquanto homens, e que eram pecadores de fato — quer dizer, que estavam manchados de pecados como a generalidade dos homens — mas também que eram hipócritas: cheios de iniquidade no interior, enquanto no exterior fingiam santidade e zelo religioso, tratando de apedrejar aquela mulher. Increpou-os como naquela outra ocasião em que os chamou de sepulcros caiados (cf. Mt 23, 27). Feriu-os, portanto, no íntimo da consciência, ao dizer-lhes: ‘Quem de vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra’, dando a entender que eles eram réus daquele pecado ou de outros maiores. Mas essa acusação é tão prudente que não parece ser Ele quem a faz, mas a consciência de cada um deles. O Salvador os remete às suas próprias consciências, estabelecendo-as como juízes, como se Ele ignorasse o que nelas havia. De certo modo, é de direito natural que quem acusa ou condena alguém esteja livre do pecado que lhe reprocha”.

Pode um homem julgar outro homem?

É insuperavelmente magistral essa resposta de Nosso Senhor, pois não assume a função de juiz, que lhe ofereciam os escribas e fariseus, mas sim a de Mestre, conforme o título empregado por eles ao Lhe proporem o julgamento. Como Altíssimo Conselheiro, Jesus lhes recorda que um juiz, apesar de seus pecados ou falhas, pode — e até deve — julgar e condenar, se necessário for; porém, levanta para eles um espinhoso problema: pode um pecador ser o executor da justiça de Deus?

O único, verdadeiro e competente Juiz é Nosso Senhor Jesus Cristo: “O Pai não julga ninguém, mas entregou todo o julgamento ao Filho” (Jo 5, 22). Todo aquele que de forma competente julga outro homem, por direito natural, positivo ou divino, assim o faz por delegação de Jesus Cristo. Entretanto, aquela sentença moral lançada contra homens orgulhosos que hipocritamente se julgavam santos e imaculados, de si não os deteria em sua determinação de cumprir a Lei, se esse fosse realmente seu objetivo exclusivo. Que mais faria Jesus para impedi-los?

Escrevendo, Jesus acusava os acusadores

8 Inclinando-Se novamente, escrevia na terra.

Por mais que São Jerônimo não seja acompanhado pela maioria dos autores, parece ter ele inteira razão em sua análise a respeito deste ponto. Não cremos ser de boa linha a opinião de alguns comentaristas, de que Jesus escrevia sem um objetivo definido, como simplesmente querendo significar seu desinteresse pela questão levantada, ou para ganhar tempo. Tudo leva a crer que os pecados, dignos do mesmo castigo, cometidos pelos acusadores, figuravam naquela escrita aparentemente informal. Santo Ambrósio é também partidário desta hipótese de São Jerônimo.

Se assim de fato foi, Jesus procedeu com invariável sabedoria e, ademais, com suma bondade, pois poderia contra-acusar de público cada um deles, e não o fez. Muito pelo contrário, colocava-lhes à disposição seu total perdão. Bastaria um arrependimento interior e um pedido de misericórdia, ainda que implícito, para todos saírem daquela situação em inteira harmonia com Deus e até mesmo entre eles próprios. Jesus lhes oferecia essa grande oportunidade, mas…

9 A essas palavras, sentindo-se acusados pela
sua própria consciência, eles se foram retirando
um por um, até o último, a começar pelos mais
idosos, de sorte que Jesus ficou sozinho, com
a mulher diante dele.

Essa narração contribui, ainda mais, para a probabilidade de estar relacionada a escrita no solo com os pecados de cada um dos acusadores. Não teria Jesus começado pelos mais velhos? Se o simples enunciado da sentença os tivesse convencido a todos, a desistência deveria ser coletiva e concomitante. O fato de se retirarem um a um indica que a conclusão de não ser conveniente ali permanecer, foi individual e sucessiva. Por outro lado, a ser verdadeira a interpretação de São Jerônimo e de Santo Ambrósio, não reconheceram aqueles homens suas faltas e delas não pediram perdão.

O pecado não compensa

10 Então Ele Se ergueu e vendo ali apenas
a mulher, perguntou-lhe: “Mulher, onde
estão os que te acusavam? Ninguém te
condenou?” 11 Respondeu ela: “Ninguém, Senhor”.
Disse-lhe então Jesus: “Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar”.

Ao notar a adúltera que seus acusadores iam-se retirando, começou a sentir crescente alívio em seu interior, atingindo um clímax após a saída do último deles. A perspectiva da morte por lapidação a amedrontara e promovera uma constatação frequente nos pecadores arrependidos: o pecado não compensa! A grande vergonha e humilhação diante daquele numeroso público talvez a fizessem sofrer ainda mais.

A última terrível prova: o santíssimo olhar de Jesus. A Sagrada Face, íntegra em sua divina moralidade, a pureza e a virgindade em essência, sendo contempladas pelo delírio carnal envergonhado e arrependido… Só um ardoroso sentimento salvaria do merecido castigo aquela pobre alma: um pedido de perdão! Jesus não exigirá dela uma declaração explícita e formal, apenas lhe manifestará sua insuperável delicadeza: “Ninguém te condenou?”.

Respeitando a Lei, Jesus é misericordioso.

Com um procedimento tão sábio quanto inusitado, ninguém mais poderia acusar o Mestre de haver desconsiderado a Lei de Moisés e, portanto, de ter sido exageradamente indulgente.

Ele não repetira senão a própria atitude dos fariseus e, ademais, Ele levara a pecadora a declarar: “Ninguém, Senhor”. Seguindo o exemplo de todos, Ele tampouco a condenaria.

Assim, “quebra o laço que Lhe armaram os caçadores” (Sl 123, 7), confirma a Lei, faz rebrilhar sua dignidade, põe em fuga seus inimigos, produz maior admiração, respeito e submissão junto ao povo que O cercava e perdoa a pobre pecadora, despedindo-a com uma advertência: “Não peques mais”.

Com essa admoestação, Ele ainda lhe concedia sua graça, sem a qual nenhuma virtude se pratica estavelmente.

Os acusadores foram julgados, a pecadora foi perdoada

Que magnífica lição de penitência, de perdão e da necessidade da perseverança, oferecida a cada um de nós neste vale de lágrimas no qual fomos concebidos e vivemos! Jesus, o único que teria direito de lançar desde a primeira até a última pedra, concede à pecadora uma bela experiência da grandeza de sua misericórdia. Ali sentiu-se ela verdadeiramente amada pela infinita bondade de um Coração sagrado, humano e divino. E a felicidade que, de maneira equivocada, buscara no pecado, encontrou-a no perdão e na benquerença d’Aquele que os escribas e fariseus haviam escolhido para juiz: o Mestre.

Aqueles que se apoiavam na Lei para acusar saíram julgados; a pecadora arrependida, que deveria ser morta, retirou-se na graça de Deus. Ninguém jamais foi ou será tão intransigente com o erro quanto Jesus; ninguém mais manso do que Ele para com os pecadores.

Este é mais um dos episódios do Evangelho nos quais transparecem, de um lado, a infinita bondade do Sagrado Coração de Jesus, ardendo em chamas de desejo de perdoar, e, no extremo oposto, a dureza de alma dos escribas e fariseus, que não só rejeitam esse perdão, até para si próprios, mas jamais reconhecem com humildade suas respectivas faltas.

Quando se defende a Lei por puro egoísmo, não só não se tem forças para praticá-la, como não se aceita a Bondade! ♦

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O Inédito sobre os Evangelhos, Vol. 05. Trechos do comentário do V Domingo da Quaresma.
1) ROSTAND, Edmond. Chantecler. Paris: L’Avant-Scène, 1994, p.45.
2) Cf. ALCUÍNO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Ioannem, c.VIII, v.1-11.

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