Os benefícios das tentações

Comentário ao Evangelho do I Domingo da Quaresma

No deserto, Jesus não foi tentado apenas ao fim dos quarenta dias de jejum, mas ao longo de todo esse período. Quis Ele submeter-Se a essa prova para nos dar exemplo, pois ninguém, por mais santo que seja, é imune à tentação

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP


A luta dos dois generais

Pervadidos de mistério e propícios à meditação, o Batismo do Senhor e a tentação no deserto constituem o pórtico de sua vida pública. Sobre essa matéria muito tem sido escrito ao longo dos séculos, procurando esclarecer seus mais profundos significados.

Fixemos hoje nossa atenção nas tentações sofridas por Jesus. Depois da teofania no rio Jordão, encontramos no deserto dois sumos generais, Cristo e satanás, num enfrentamento face a face. A guerra ali travada tornou-se o paradigma da luta de todo homem durante sua existência terrena, a qual, por sua vez, recebe a influência de um e outro general.

A aceitação de uma dessas influências determina sua vitória ou derrota pessoal. (…)

Ensinamentos a tirar das tentações de Jesus Cristo

1 Jesus, cheio do Espírito Santo, partiu do Jordão
e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde esteve
quarenta dias, e foi tentado pelo demônio. Não comeu
nada nestes dias; passados eles, teve fome.

Este início do capítulo 4 vem envolto num insondável mistério. “Cheio do Espírito Santo…”. Ademais, “foi levado pelo Espírito…”. Por que levado? Outro Evangelista dirá conduzido , e um terceiro, impelido. São verbos categóricos que exprimem bem o poder empregado pelo Espírito Santo para agir em nossas almas quando eleitas para uma grande missão.

O Batismo deve ter-se realizado à altura de Jericó. Dali saindo, provavelmente subiu as encostas agrestes do Monte da Quarentena — Djebel-Qarantal —, composto de rochas avermelhadas, com cinco cristas muito características, separadas por consideráveis ravinas. Ainda hoje encontram-se por aquelas pedras escavações feitas à mão, que o zelo fervoroso de contemplativos trabalhou para favorecer a solidão procurada por eles. No seu ponto mais alto, um observador pode percorrer o lindo panorama circular: ao norte, o Hermon; a oeste, a terra de Judá; ao sul, o Mar Morto; a leste, o Monte Nebo (de onde Moisés avistou a Terra Prometida pouco antes de morrer), e os planaltos da Pereia.

Naqueles tempos, por lá deviam vagar animais selvagens, tornando o lugar muito inóspito para qualquer homem, ainda mais na situação de solidão em que se encontrava Jesus, conforme nos relata Marcos: “Esteve em companhia dos animais selvagens” (Mc 1, 13).

Hoje, no cimo do monte ergue-se o convento de São João, ocupado por monges gregos que solicitamente acompanham os peregrinos até a gruta que teria sido frequentada pelo Salvador e chegam a indicar, até mesmo, as marcas de seus divinos pés sobre as pedras do caminho.

Jesus foi tentado durante quarenta dias

São Lucas nos fala de tentações ao longo de quarenta dias, entretanto só menciona as três últimas delas. Como entender este fato? São Tomás assim no-lo responde: “Segundo a explicação de Beda, o Senhor foi tentado durante quarenta dias e quarenta noites. Mas não se trata daquelas tentações visíveis mencionadas por Mateus e Lucas, as quais ocorreram evidentemente após o jejum, mas de outros assaltos que Cristo pôde sofrer do diabo durante aquele tempo do jejum”.

São Tomás de Aquino é harmônico, neste seu parecer, com muitos outros autores como, por exemplo, São Justino, Orígenes, Santo Agostinho, se bem que outros tantos — como Suárez, Lagrange, Plummer — discordem deste ponto de vista. São Mateus é ainda mais categórico ao dizer: “Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio” (Mt 4, 1).

Na história da criação, os primeiros a padecerem a prova da tentação foram os Anjos e nem todos permaneceram fiéis… A seguir foram os nossos primeiros pais, e de seu pecado sofrerão as consequências todos os homens, até o fim do mundo. Mas Jesus era impecável e, apesar disso, pôde efetivamente ser tentado. N’Ele não existia o fomes peccati nem sequer a mais leve inclinação ao pecado, quer fosse pela carne ou até mesmo pelas pompas e vaidades do mundo, por possuir, ademais, um juízo sereno e clarividente.

Porém, quanto às sugestões diabólicas externas, não havia o menor inconveniente em que viesse submeter-Se a elas voluntariamente, pois, não sendo interiores e também por não haver a menor imperfeição em quem as padeceu, deixam a exclusividade de toda a malícia ao tentador.

De acordo com os desígnios de Deus, “convinha [a Jesus] que Ele se tornasse em tudo semelhante aos seus irmãos” (Hb 2, 17), pois, para levar até os extremos limites seu amor por nós, ao “compadecer-Se de nossas fraquezas” , maior perfeição manifestaria quando passasse “pelas mesmas provações que nós, com exceção do pecado” (Hb 4, 15).

Sobre a razão da oração e do jejum, baste-nos lembrar que “esta espécie de demônio só se pode expulsar à força de oração e de jejum” (Mt 17, 20).

A dúvida do demônio

3 Então o demônio disse-Lhe: “Se és Filho de Deus,
diz a esta pedra que se converta em pão”.

Os autores se conjugam no comentário deste versículo, e dentre eles se destaca Suárez, afirmando que, ao tentar Jesus, o demônio não visou principalmente fazê-Lo pecar, mas saber ao certo se Ele era ou não o Filho de Deus. Com uma habitual e sintética clareza, São Tomás assim nos explica esse particular:
“Como diz Agostinho, ‘Cristo Se fez conhecer dos demônios na medida que Lhe pareceu conveniente, não porque Ele é a vida eterna, mas por certos efeitos temporais de seu poder’, de onde podiam eles conjecturar que Jesus era o Filho de Deus.

Mas como viam n’Ele sinais de debilidade humana, não sabiam com certeza que era Filho de Deus; por isso quiseram tentá-Lo.

Esse é o sentido das palavras de Mateus (cf. 4, 2-3), quando diz que, depois que teve fome, o tentador se aproximou d’Ele; pois, como diz Hilário, ‘o demônio não teria ousado tentar Cristo se não tivesse observado n’Ele, pela debilidade da fome, a natureza humana’. Isso é evidente pelo próprio modo de tentar, quando ele fala: ‘Se és o Filho de Deus’. Gregório explica tais palavras, dizendo: ‘O que denota essa maneira de se expressar, senão que ele sabia que o Filho de Deus haveria de vir, mas não acreditava que tivesse vindo na fraqueza da carne?’”

Como fez o demônio para tentar Jesus

(…) Suárez é categórico em admitir a hipótese de o demônio ter assumido forma física para poder tentar Jesus: satanás deve ter aparecido usando a figura humana, como o diálogo entre um e outro parece exigir. Talvez com a aparência de um santo varão ou alguma outra que julgasse mais própria para convencer. Não pôde tentar o Senhor a não ser pela palavra, do mesmo modo como fez com Adão, pois ambos careciam de paixões insubordinadas, e não era decoroso que o tentador pudesse atuar na imaginação ou potências internas de Cristo.

Através das pequenas coisas, tenta o demônio as grandes vocações

Ainda dentro dos ensinamentos de São Tomás de Aquino, sabemos que os homens entregues às vias da perfeição, o demônio não procura tentá-los diretamente para os pecados mais graves. Sua aproximação inicial é através das imperfeições e faltas leves, até o momento de propor as graves. Essa metodologia, ele a empregou no Paraíso Terrestre ao seduzir nossos primeiros pais. Começou esforçando-se por despertar a gula de Eva: “Por que não comeis?” (cf. Gn 3, 1)… Depois sua vã curiosidade: “Vossos olhos se abrirão” (Gn 3, 5)… Por fim, apresentou-lhe o último grau de orgulho: “Sereis como deuses” (Gn 3, 5). (…)

Diabólica exploração das revoluções

4 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito:
Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus”

Jesus poderia ter transformado as pedras em pão, como depois multiplicaria por duas vezes os pães e os peixes. Mas não o fez. Nessa ocasião, não terá querido Ele, além de outros objetivos, ensinar-nos a ilegitimidade das revoltas por ter faltado alimento?

Quantas revoluções foram levadas a cabo, ao longo da História, por uma pura, malévola e — por que não dizer? — diabólica exploração da fome! Nas circunstâncias de penúria, por que não se voltam os homens para o mesmo Deus de Moisés, que não deixou sem alimento seu povo durante quarenta anos no deserto?

Supremacia da vida espiritual sobre a corporal

Em sua resposta repassada de sabedoria divina, Jesus torna patente, ao demônio e à humanidade, a existência de uma vida muito mais nobre do que a corporal, ou seja, a espiritual. “A palavra de Deus” é constituída pelas ordens divinas, por tudo aquilo que reflete sua soberana vontade, como mais tarde Ele mesmo afirmaria: “Meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou” (Jo 4, 34). (…)

Na frase de Jesus retrucando ao demônio, torna-se claro não ser imprescindível o pão. Deus dispõe incontáveis meios para resolver o problema da fome. Jesus se alimentará como for da vontade do Pai. Se o desígnio d’Este é que a palavra O sustente, qual a necessidade do pão? E se este for indispensável, não tem o Pai o poder de o conceder?


Dupla tentação: medo e ambição

5 O demônio conduziu-O então a um alto monte, mostrou-Lhe,
num momento, todos os reinos da Terra, 6 e disse-Lhe:
“Dar-Te-ei o poder de tudo isto, e a glória destes reinos,
porque eles foram-me dados, e eu dou-os a quem quiser.
7 Portanto, se Tu me adorares, todos eles serão teus”.

(…) Na sua inferioridade de anjo decaído, com muita ignorância, julgou haver atraído irresistivelmente Jesus e, por essa razão, propõe-Lhe logo um pecado de idolatria para, assim, entregar-Lhe a posse de tudo. Comentando essa passagem, São Jerônimo bem atribui ao demônio uma linguagem soberba, e sobretudo falsa, pois o espírito maligno não pode prometer nem, menos ainda, conceder reinos a ninguém, sem a permissão de Deus.

Não obstante, ele é senhor dos vícios e dos pecados. Acreditava poder lisonjeá-Lo para açular uma irrefreável ambição ou, então, amedrontá-Lo, revelando-Lhe a poderosa oposição que enfrentaria, se contra Ele se levantassem aqueles reinos, caso não os aceitasse ao preço da idolatria. Não sofreu, porém, o Divino Redentor a atração da ambição nem o temor do poderio adverso.

Desde o Paraíso Terrestre, nós, homens e mulheres  – quando sem a graça e a virtude  – somos fascinados pelo sonho de ser deuses. Essa é a desastrosa história de boa parte da humanidade. Felizes aqueles e aquelas que respondem a satanás como o fez Jesus.

A grande tentação da humanidade decaída

8 Jesus respondeu-lhe: “Está escrito:
Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás”

Tornar-se o senhor do mundo, possuir todos os bens e todas as riquezas, ainda que deixando de adorar o verdadeiro Deus: eis a tentação diante da qual não poucos sucumbem, em nosso estado de prova; e, às vezes, até por preços muito menores.

Na resposta de Jesus, encontramos o divino exemplo a seguir. Reproduzindo o versículo 13, do capítulo 6 do Deuteronômio, faz um juramento de fidelidade ao Pai: a não ser Ele, ninguém, nem coisa alguma, merece homenagens e muito menos adoração.

Tentação de vanglória

9 Levou-O também a Jerusalém, colocou-O
sobre o pináculo do Templo e disse-Lhe:
“Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo;
10 porque está escrito que Deus mandou aos
seus Anjos que Te guardem, 11 e que Te sustenham
em suas mãos, para não magoares o teu pé em nenhuma pedra”.

É um paradoxo imaginar o anjo caído dos Céus transportando seu Criador pelos ares. A isso se submeteu nosso Salvador, para benefício dos que foram expulsos do Paraíso.

É digna de nota a sutileza diabólica nesta tentação, pelo fato de se servir de uma citação da Escritura para conferir maior solidez à sua argumentação. Aprendeu a lição do próprio Jesus, ao receber d’Ele sua primeira resposta.

Grande espetáculo causaria sua descida sensacional, amparado por Anjos, em meio ao pátio do Templo. E, se isso acontecesse, provado estaria para satanás a filiação divina de Jesus, objetivo ansiosamente desejado por seus ardis. Já não é mais a gula nem a ambição, mas a vanglória, que a tantos leva para o inferno, o instrumento usado pelo demônio para tentar o Messias.

Triunfo de Cristo

12 Jesus respondeu-lhe: “Também foi dito:
Não tentarás o Senhor teu Deus”

Uma nova confusão inflige Jesus ao revoltado satanás, também com palavras do Deuteronômio (6, 16). Colocar-se em perigo grave, obrigando Deus a intervir, é um pecado cheio de malícia.

3 Terminada toda esta espécie de tentação,
o demônio retirou-se d’Ele até outra ocasião

A maioria dos autores é partidária de ter, de fato, o demônio continuado a investir contra Cristo ao longo de sua vida pública, propondo-Lhe, através destes ou daqueles, a aceitar a coroa ou a praticar milagres imprudentes.

Foi só no Horto, no Pretório e no Calvário que ele imaginou ter conseguido realizar seu sonho, todo feito de gaudium phantasticum. Entretanto, ali, Cristo triunfou sobre os infernos, o pecado e a própria morte! ♦

_____________

O Inédito sobre os Evangelhos, Vol. 05, págs. 178-193. Trechos do comentário do I Domingo da Quaresma.

Deixe uma resposta