A vida do homem transcorre num vale de lágrimas, no qual o sofrimento sempre está presente. Para nos sustentar em meio à luta, Deus nos aponta, através de graças sensíveis, o grandioso fim ao qual estamos destinados
Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP
Somos chamados “ad maiora”
Ao formar o homem à sua imagem e semelhança (cf. Gn1, 26), Deus destinou-o a ocupar um elevado lugar na criação, inferior apenas ao dos Anjos. O ser humano, como única criatura dotada de inteligência em todo o universo material, possui uma notável superioridade sobre as outras, além da capacidade de dominá-las, transformá-las e utilizar-se delas com sabedoria, tornando mais perfeita a obra do Criador.
É ele o protagonista da História, conforme ressalta a Escritura: “Vosso saber o ser humano modelou, para ser rei da criação, que é vossa obra” (Sb 9, 2). Além dessa prerrogativa de ordem natural, há outro privilégio que lhe confere a mais excelsa dignidade: a filiação divina, concedida pelo Batismo. Com efeito, ao receber este Sacramento, a pessoa torna-se filha adotiva de Deus, participante da natureza divina, membro de Cristo e coerdeira com Ele e templo da Santíssima Trindade.
Devido ao pecado original e ao estado de prova em que nos encontramos, esses benefícios da natureza e da graça preparam-nos para as horas em que nos cabe dar mostras de fidelidade a Deus, de modo especial quando se abatem sobre nós as tentações, os dramas e as dificuldades. Se alimentarmos um desejo equivocado — quiçá, subconsciente — de fazer com que a glória terrena ou os gozos espirituais sensíveis se tornem uma constante em nossa existência, admitiremos o princípio de que a vida perfeita é a da estabilidade na consolação, sem a menor fímbria de sofrimento. Por seu divino exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo ensinou como o caminho para a felicidade difere daquele que conceberíamos com base em critérios humanos. Na verdade, só encontramos a perfeita alegria quando abraçamos a santidade, o que implica em transpor a porta estreita e carregar a cruz, por meio da qual se chega à luz.
A esse propósito, é legítimo perguntarmos: como se explica que na luta e no enfrentamento de toda espécie de empecilhos, em favor da glória de Deus, encontremos o sentido de nossa vida? Ou será possível experimentar neste mundo uma situação de fruição completa, tal como pedem as nossas inclinações? A resposta nos é oferecida pela Liturgia do 2º Domingo da Quaresma no conjunto de suas leituras, numa harmonia que se sintetiza em rumar para a bem-aventurança eterna passando pelas provações, pelo combate espiritual e pela dor. (…)
Jesus revela no Corpo a glória de sua Alma
Naquele tempo, 28b Jesus levou consigo Pedro,
João e Tiago, e subiu à montanha para rezar. 29
Enquanto rezava, seu rosto mudou de aparência
e sua roupa ficou muito branca e brilhante.
Tendo em vista prepará-los para os acontecimentos que viriam, Nosso Senhor chamou os três Apóstolos com quem tinha maior familiaridade e os levou ao Monte Tabor. Eles, depois, deveriam fortalecer os outros, narrando-lhes o que testemunhariam.
Embora a oração ocupe um lugar primordial na vida do Mestre, esta não foi seu único objetivo com a subida à montanha. Mais do que isso, pretendia mostrar quem realmente era, conforme ressalta Maldonado: “Cristo costumava subir aos montes para orar, onde a solidão é maior e mais livre é a contemplação do Céu. Não se deve concluir das palavras de Lucas, entretanto, que Cristo subiu só com o propósito de orar, mas que, conforme seu costume de rezar nos assuntos árduos, quis fazê-lo desta vez antes de manifestar a sua glória. […] Não nos esqueçamos, também, que na maior parte das vezes a glória de Deus se manifesta nos montes, que estão mais próximos do Céu e mais afastados da Terra, e não nos vales”.
Esta exteriorização da glória divina é um fenômeno que revela o verdadeiro estado da Alma de Jesus, a qual, criada na visão beatífica, possuía desde o primeiro momento da Encarnação o grau supremo da graça capital. Esta é assim denominada por ser Ele a cabeça do Corpo Místico e a origem da graça da qual vive a Igreja. Sua Alma sempre esteve na contemplação de Deus face a face e, por isso, o normal seria que seu Corpo fosse visto habitualmente em estado glorioso, como um espelho da beatitude de seu espírito, tal como se manifestou no Tabor, à vista de São Pedro e dos filhos de Zebedeu. Foi só por amor a nós que Nosso Senhor quis revestir-Se das características do corpo padecente para operar a Redenção.
No que se refere a alguns outros momentos de sua vida pública, podemos supor que Ele assumiu apenas alguns dos atributos do corpo glorioso, como, por exemplo, quando saiu livremente entre aqueles que o queriam jogar precipício abaixo em Nazaré ou quando andou sobre as águas do Mar de Tiberíades. Então, por certo prisma, o verbo transfigurar não define com exatidão o que se passou, pois, na verdade, Cristo fez cessar a subfigura em que vivia.
Moisés e Elias ratificam a Paixão
30 Eis que dois homens estavam conversando
com Jesus: eram Moisés e Elias. 31 Eles apareceram
revestidos de glória e conversavam sobre a morte
que Jesus iria sofrer em Jerusalém.
Participando da glória de Cristo estavam dois expoentes do povo eleito: Moisés e Elias, os máximos representantes da Lei e dos profetas. Eles foram os escolhidos porque “nem a Lei pode existir sem o Verbo, nem profeta algum poderia ter vaticinado algo que não se referisse ao Filho de Deus”. Ambos não somente ratificam que Jesus é o Messias, mas dão o peso de seu testemunho também aos anúncios da Paixão. A conversa que empreenderam com Ele diz respeito à sua morte e, todavia, os três se encontravam envoltos na glória, a qual revela o fim último: ressurreição e corpo glorioso. “A conversa de Jesus com Moisés e Elias versa exatamente sobre os tormentos que Cristo vai padecer logo em Jerusalém. A Transfiguração, portanto, é a consagração de Jesus para a Cruz e para a morte”.
Numa harmoniosa junção, concebível apenas pela inteligência do próprio Deus, unem-se neste episódio dor e glória, conforme recorda São Leão Magno: “Era necessário que os Apóstolos tivessem no coração uma noção clara dessa vigorosa e bem-aventurada fortaleza, e que não tremessem perante a rudeza da cruz que teriam de carregar; seria preciso que não se envergonhassem do suplício de Cristo, nem considerassem humilhante para Ele a paciência com que deveria padecer os rigores de sua Paixão, sem perder a glória de seu poder”.
A tentação de uma vida sem esforço
32Pedro e os companheiros estavam com muito
sono. Ao despertarem, viram a glória de Jesus e
os dois homens que estavam com ele. 33E quando
estes homens se iam afastando, Pedro disse a Jesus:
“Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três
tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra
para Elias”. Pedro não sabia o que estava dizendo.
Tomadas pelo torpor — pormenor surpreendente —, as três testemunhas encontravam-se dormindo no início da divina manifestação. Tal sono é simbólico, pois sempre que a cruz, o esforço e o sacrifício nos são apresentados, somos tomados pelo tédio, em consequência de nossa débil natureza humana. Isso também aconteceu, mais tarde, no Horto das Oliveiras, quando os três sucumbiram ao cansaço, na iminência da Paixão, deixando Nosso Senhor sozinho ante o sofrimento (cf. Mt 26, 40). Acordados inesperadamente, ainda sob os efeitos do sono e surpresos pela intensa luminosidade que tinham diante de si, ficaram deslumbrados, a ponto de São Pedro não atinar com uma reação à altura do que se estava passando.
Na realidade, com suas palavras ele manifestava, talvez sem plena consciência, certa má tendência de fundo de alma. Arrebatado por ver aquela maravilha, logo quis aproveitar-se dela, demonstrando o desejo de viver ininterruptamente sob o influxo da glória do Mestre.
Ele via no usufruto desse gozo a obtenção da felicidade, e se não pediu para fazer três tendas quando o Senhor anunciou a Paixão, não hesitou em fazê-lo nessa hora. Pedro imaginava que já tivesse chegado ao fim do bom combate, quando havia ainda um longo caminho a ser percorrido. Via talvez, na presença de dois varões da estatura de Moisés e Elias, quão fácil seria dotar de supremacia o povo judeu sobre todas as outras nações da Terra.
Faltava ao chefe da Igreja aprender que, antes da obtenção dos frutos da promessa, deve-se trilhar o percurso que a eles conduz, conforme o exemplo dado pelo Redentor.
O Pai também conclama à luta
4Ele estava ainda falando, quando apareceu
uma nuvem que os cobriu com sua sombra.
Os discípulos ficaram com medo ao entrarem
dentro da nuvem. 35Da nuvem, porém, saiu
uma voz que dizia: “Este é o meu Filho, o
Escolhido. Escutai o que Ele diz!” 36Enquanto
a voz ressoava, Jesus encontrou-se sozinho.
Os discípulos ficaram calados e naqueles dias
não contaram a ninguém nada do que tinham visto.
De dentro da nuvem ouve-se a voz do Pai, que manda escutar seu Filho bem-amado. O que determina que ouvissem? Aquelas predições que tanto desejavam esquecer. Nosso Senhor havia declarado que seria entregue nas mãos dos sacerdotes, dos escribas, dos fariseus, que ia padecer e ser morto para depois ressuscitar ao terceiro dia (cf. Mt 16, 21; Lc 9, 22). Eles tinham medo de pensar nisso, condicionados por uma visão humana de Cristo.
Nesse sentido ressalta Romano Guardini: “Ao lermos os Evangelhos, colhemos a impressão de que os discípulos não compreenderam durante a vida do seu Mestre aquilo que estava em causa. Jesus não tinha neles um grupo de homens que verdadeiramente O compreendesse; que vissem quem Ele era e entendessem o que Ele queria. Surgem continuamente situações que nos mostram como permanecia só no meio deles. […] Vemo-los por tal maneira imersos nas representações messiânicas da época que, no último momento anterior à Ascensão […], perguntam ainda ‘se é por esta altura que Ele vai restaurar a realeza de Israel!’ (At 1, 6)”.
O Pai, ao ordenar que escutassem o Filho em tudo, incita-os a considerar a árdua realidade da Cruz; a seguir seu Escolhido de acordo com o que era, e não com o que gostariam que fosse.
As consolações nos sustentam rumo à vitória final
A Liturgia deste domingo, ao recordar a promessa feita a Abraão, as palavras de São Paulo e a cena da Transfiguração, nos ensina que as graças místicas recebidas por nós no decorrer da vida espiritual não nos são dadas com a finalidade de estabelecer uma existência agradável nesta Terra, na qual gostaríamos de montar uma tenda para permanecer em estática contemplação, mas para que, através delas, tenhamos forças para enfrentar os embates da vida em vista do fim para o qual fomos chamados. Na verdade, a via mística é uma pré-figura da bem-aventurança eterna, e não um gozo da vida terrena.
A felicidade neste mundo decorre da luta contra o mal existente dentro e fora de nós e, sobretudo, da luta pela glória de Deus, de modo que essas consolações nos são oferecidas para alimentar a virtude da esperança.
Ressaltando a importância de tais graças, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira afirma que elas “são uma espécie de prenúncio da visão beatífica no Céu, e têm por efeito fazer com que as nossas almas fiquem muito mais abertas à compreensão sobrenatural, à compreensão do maravilhoso, ao desejo das grandes coisas, dos grandes feitos, dos grandes lances”.
Por esta razão, estejamos atentos às manifestações divinas em nossa vida, dissipando qualquer torpor que nos impeça de percebê-las e crescendo na certeza de que, após as lutas passageiras da vida terrena, aguardam-nos as alegrias do convívio eterno com Deus,para o qual fomos chamados. No Céu, onde não será necessário armar tendas, nossa morada é preparada pelo Divino Mestre para fazer perdurar eternamente as alegrias de sua esplendorosa Transfiguração! ♦
Muito boa reflexão