A Ascensão do Senhor

Solenidade da Ascensão do Senhor

Os frutos da Ascensão nos beneficiam a cada instante, tal como a última bênção de Jesus aos Apóstolos, no Monte das Oliveiras, se prolonga através da História até cada um de nós

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP

Suprema glorificação de Cristo

Às vezes, a perfuração produzida por uma agulha é mais danosa do que o golpe de um martelo, sobretudo quando ela atinge pontos vitais. Essa comparação talvez ainda ganhe em substância e expressividade se revertida para o campo da polêmica doutrinária, como se verificou na refutação de São Bernardo ao judeu que, no alto do Calvário, desafiou a Cristo em sua agonia: “Se és o Filho de Deus, desce da Cruz” (cf. Mt 27, 42; Mc 15, 32).

Segundo o Fundador de Claraval, é mal concebida essa proposta para comprovar a origem divina de Jesus, pois a realeza, e mais ainda a divindade de um ser, não se torna patente pelo ato de descer, mas muito ao contrário, pelo de subir. E foi exatamente o que sucedeu com Jesus, quarenta dias após sua triunfante Ressurreição. Por isso, debaixo de certo ângulo, a Ascensão do Senhor ao Céu constitui a festa de maior importância ao representar a glorificação suprema de Cristo Jesus. Ele próprio a havia pedido ao Pai: “Glorifica-Me junto de Ti mesmo, com aquela glória que tive em Ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17, 5); “Pai, chegou a hora, glorifica o teu Filho, para que teu Filho glorifique a Ti” (Jo 17, 1).

Daí ser compreensível a manifestação de alegria dos Santos Padres, como Santo Agostinho, ao comentarem essa glorificação do Cordeiro de Deus. “A glória de Nosso Senhor Jesus Cristo se completa com sua Ressurreição e Ascensão. […] Temos, pois, o Senhor, nosso Salvador, Jesus Cristo, primeiro pendente de um madeiro e agora sentado no Céu. Pendendo no madeiro, pagava o preço de nosso resgate; sentado no Céu, recolhe o que comprou”.1

A narração de São Lucas

Ser-nos-á mais fácil, depois das antecedentes considerações, analisarmos o próprio texto do Evangelho de hoje.


Onipotência e sabedoria de Deus na condução da História

46 “Assim está escrito que o Messias havia de sofrer e ressuscitar
dentre os mortos, ao terceiro dia…”

Estas palavras do Divino Redentor, antes de subir aos Céus, não foram dirigidas somente aos Apóstolos, mas a todos os chamados por Ele a realizar alguma missão junto às almas. São palavras que têm uma certa ordem e concatenação, e assim devem ser entendidas.

Mais uma vez, transparecem na Escritura Sagrada a onipotência e a suma sabedoria de Deus na condução da História. Aconteceu porque estava escrito e, por sua vez, foi previsto e anunciado porque assim deveria se passar, por uma determinação perfeitíssima e suprema de Deus. Este versículo nos convida a um momento de meditação e admiração. Contemplemos os excelsos desígnios do Ser Supremo que a tudo regula de maneira insuperável, aproveitando-Se para sua glória, não só da virtude dos bons, mas até mesmo do concurso da malícia e ódio dos maus, da enferma vontade dos tíbios, da volubilidade dos indecisos, da voluptuosidade dos passionais, da cegueira dos orgulhosos, do delírio incontenível dos tiranos. Nada deixa de contribuir para sua honra, louvor e glória; de tudo tira proveito com tal equilíbrio que nunca produz o menor prejuízo ao livre-arbítrio de uns e de outros.

Adoremos a Providência Divina e a Ela apresentemos nossa gratidão, como também nossa reparação por todas as ofensas que a cada instante sobem ao seu trono. Assim, seremos do número dos bons e Deus se servirá de nossa disposição de alma e de nossas ações para sua maior glória. E peçamos a Ele, por intercessão de sua Mãe Santíssima, jamais pertencermos ao partido dos maus, os quais têm como objetivo de suas existências o disputar com Deus o seu poder. De que lhes vale atribuírem-se a si próprios capacidades inexistentes, ou mesmo reais, se estas absolutamente não lhes pertencem, pois lhes foram conferidas pelo Ser que visam destronar? E qual o proveito que tiram ao darem largas às suas paixões e maus instintos para perseguir a virtude e quem a pratica?

Foi tão estúpida e contraproducente a atuação dos demônios e dos maus judeus em todo o drama da Paixão, que se com anterioridade tivessem conhecido seus efeitos — ou seja, a obra da Redenção —, jamais teriam desejado ou contribuído para sua realização. De todas essas ações e situações, Deus saberá extrair os elementos para sua glória. Mas, o destino de uns será a felicidade do Céu e o dos outros, o suplício eterno.

Metanoia: essência da conversão

47 “…e que em seu nome havia de ser pregado o arrependimento
e a remissão dos pecados a todas as nações, começando por
Jerusalém”.

Antes de subir aos Céus, o Redentor não lhes dá nenhuma recomendação política e muito menos insinua algo na linha de uma reconquista do poder de Israel. Pelo contrário, suas palavras visam uma atuação estritamente moral, religiosa e penitencial em nome de Deus.

Essa conversão, a qual na sua essência é a mudança de mentalidade, metanoia, já havia sido intensamente estimulada pelo Precursor. João Batista se apresentara como a voz que clama no deserto, a fim de que todos endireitassem os caminhos para a chegada do Senhor. Esse é também o legado do Redentor aos seus, antes da Ascensão.

A substituição dos critérios equivocados pelos verdadeiros é indispensável para a real conversão. Saulo, em um só instante a realizou, logo ao “cair do cavalo”, e assim mesmo passou por um retiro de três anos no deserto para torná-la irreversível, como também profunda e eficaz. Comumente, ela se faz de maneira lenta, após os fulgores de um primeiro como que flash, mediante o qual, pela graça do Espírito Santo, a alma se dá conta das belezas das vias sobrenaturais e por elas resolve trilhar com decidida firmeza.

Sem essa conversão, é-nos praticamente inútil o Mistério da Redenção e de nada nos adianta o Evangelho. De forma explícita ou implícita — dada nossa natureza racional — a atuação de nossa inteligência e vontade se faz com base em princípios e máximas que norteiam as potências de nossa alma.

É sobre essa fonte que se concentra o esforço da conversão. Em síntese, trata-se de substituir o amor-próprio, o qual se manifesta no apego às criaturas, pelo amor a Deus.

É de dentro da visualização perfeita a respeito da retidão da prática da Lei de Deus e de sua santidade que brota o eficaz pedido de perdão dos pecados. É nesse contraste que o penitente tem plena consciência da grande misericórdia anunciada por Jesus, antes de sua partida para os Céus. Nem os anjos revoltosos e nem os homens que morreram em pecado receberam essa dádiva incomensurável. E, nesse momento, ela nos foi oferecida pelo próprio Filho de Deus.

Iniciando-se em Jerusalém, do Sagrado Costado de Cristo nasce a Igreja a pregar ali, e depois pelo mundo afora, a Boa-nova do Evangelho. Assim havia profetizado o Antigo Testamento, assim ordenou naquela ocasião o próprio Jesus Cristo.

O testemunho dos Apóstolos robustece nossa fé

48 “Vós sois as testemunhas destas coisas”.

Sim. Nossa fé se robustece pela comprovação ocular dos Apóstolos, dos setenta e dois discípulos e de muitos outros aos quais se fez ver o Salvador depois da Ressurreição. Que vantagens humanas, temporais ou eternas, teriam eles em selar com o próprio sangue fatos que constituem escárnio para seus conacionais e loucura para os gentios? Eis um argumento irrefutável a favor da objetividade dos relatos feitos por eles.

Papel da espera, até à vinda do Espírito Santo

49 “Eu vou mandar sobre vós o Prometido por meu Pai. Entretanto,
permanecei na cidade até que sejais revestidos da força do Alto”.

Trata-se da Terceira Pessoa da Trindade, que Jesus enviaria, segundo a promessa feita pelo Pai, ou seja, “a força do Alto”. É o Espírito Santo, que procede do amor entre o Pai e o Filho, que descerá sobre eles, a fim de serem n’Ele submersos, penetrados e revestidos por Ele, para, assim transformados, realizarem sua missão de testemunhas. Os Apóstolos “serão preparados com a grande força renovadora e fortalecedora de Pentecostes. Receberão o Espírito Santo, de cujo envio tanto falou o Evangelista João nos discursos da Última Ceia”.2

A ordem de não saírem de Jerusalém sob qualquer pretexto tinha por objetivo a espera de Pentecostes para começarem a pregar. Entenderam eles que, esse período, deveriam passá-lo em recolhimento, pois é nessas circunstâncias que mais profundamente Ele age.

São João Crisóstomo comenta a esse propósito: “Para não se poder dizer que tinha abandonado os seus para ir manifestar-Se — mais ainda, ostentar-Se — aos estranhos, ordenou-lhes Jesus apresentar as provas de sua Ressurreição primeiramente àqueles mesmos que O tinham matado, na cidade onde foi cometido o temerário atentado, pois, se os que haviam crucificado o Senhor davam mostras de crer, ter-se-ia uma grande prova da Ressurreição”.3

Por outro lado, continua São João Crisóstomo: “Assim como, num exército que se alinha para atacar o inimigo, o general não permite a ninguém sair antes de estarem todos preparados, da mesma forma Jesus não permite a seus Apóstolos saírem a pelejar enquanto não estejam preparados pela vinda do Espírito Santo”.4

E por qual razão o Espírito Santo não desceu sobre os Apóstolos, de imediato? “Convinha que nossa natureza se apresentasse no Céu e fossem realizadas as alianças, e depois então viesse o Espírito Santo e se celebrassem os eternos júbilos”,5 opina Teofilato.

A última bênção de Jesus se estende até nós

50 Depois levou-os até junto de Betânia e, erguendo as mãos,
abençoou-os.

“O ato de levantar as mãos e os abençoar significa que quem abençoa deve estar ornado de boas e heroicas obras em benefício dos demais; por isso levantou as mãos ao céu”,6 comenta Orígenes.

Jesus procede como os sacerdotes da Antiga Lei, nesse gesto de abençoá-los. O sacerdócio de Cristo tem seu início no próprio momento da Encarnação (cf. Hb 10, 5-10), mas, se bem tenha tido princípio, jamais terminará, pois é Ele sacerdote in æternum. A dignidade, ação, virtude e frutos sacerdotais do sacrifício de Cristo estarão diante do Pai eternamente. Por isso, neste momento, sua bênção se estende também sobre nós. Saibamos aproveitá-la, ao contemplar esse último adeus externado por Jesus no alto do Monte das Oliveiras.

Jesus nos preparou o caminho para subirmos ao Céu

51 E enquanto os abençoava, separou-Se deles e era
levado para o Céu.

Grandiosa cena e acontecimento inédito. Elias também subia, mas arrebatado num carro de fogo e não pelas próprias forças. Cristo, pelo contrário, “subiu ao Céu pelo seu próprio poder; primeiro pelo poder divino; segundo, pelo poder da Alma glorificada que movia o Corpo como queria”.7 Os Apóstolos e discípulos já O haviam visto andar sobre as águas, entrar no Cenáculo a portas fechadas, escapar em meio à multidão, mas elevar-Se ao Céu ainda não. Eles não ignoravam para onde partia Nosso Senhor, já haviam ouvido dos lábios do próprio Mestre qual seria seu destino. E com os Apóstolos devemos crer que, por sua Ascensão, Jesus “preparou-nos o caminho para subirmos ao Céu, de acordo com o que Ele mesmo disse: ‘Irei preparar-vos um lugar’, e com as palavras do livro de Miqueias: ‘Subiu, diante deles, Aquele que abre o caminho’. E porque Ele é a nossa cabeça, mister se faz que os membros vão para onde ela se dirigiu. Por isso diz o Evangelho de São João: ‘De tal sorte que lá onde Eu estiver também vós estejais’”.8

Onde se encontra a verdadeira fonte da alegria

52 Eles, depois de O adorarem, voltaram para Jerusalém com
grande alegria.

Esse gesto de prosternarem-se diante de Jesus em sua Ascensão significa um reconhecimento pleno de sua majestade. Pedro já assim procedera por ocasião da pesca milagrosa (cf. Lc 5, 8ss). Do Monte das Oliveiras a Jerusalém, caminha-se apenas a distância de uma viagem em dia de sábado. Esse percurso foi realizado pelos Apóstolos, em “grande alegria”, e se compreende.

Esse mesmo júbilo os acompanhará ao saírem dos tribunais, nos quais haviam sido condenados por pregar o nome de Jesus. Assim aprendem os Apóstolos — e nos ensinam — onde estão as verdadeiras fontes de alegria: no cumprimento da vontade de Deus que, às vezes, se faz através do curto caminho da cruz.

Ligação entre o Antigo e o Novo Testamento

53 E estavam continuamente no Templo louvando a Deus.

Tal qual inicia seu Evangelho com os ofícios de Zacarias no Templo, termina São Lucas aludindo à frequência assídua dos Apóstolos em todos os atos do culto praticado na Antiga Lei. A Santa Igreja não se separou da Sinagoga de forma abrupta e violenta. O Templo estava intimamente ligado à vida de Jesus, e os que iam receber o Espírito Santo, com humildade, veneração e piedade, se preparavam indo rezar na casa de oração, da qual o Mestre havia expulsado os vendilhões por duas vezes. Eles consideravam o Templo com uma perspectiva muito diferente da de seus conacionais. O mirante dos Apóstolos era um dos legados do Filho de Deus, ou seja, o próprio olhar d’Ele.

Maria vivia em constante oração

Uma palavra sobre Maria. Certamente intercedeu Ela junto a Deus para inspirá-los a permanecerem em oração no Cenáculo. N’Ela, a altura de sua humildade era a mesma da de sua fé, virginalidade e grandeza. Ela estava rezando ao pé da Cruz, no Calvário; agora A encontramos em profundo recolhimento. Depois da descida do Espírito Santo, a Escritura não mais A mencionará e, provavelmente, o resto de seus anos, Ela os viveu em intensa oração, constituindo-Se no insuperável modelo da mulher cristã.

Que Ela nos obtenha todas as graças para seguirmos suas vias e virtudes. ♦

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O Inédito sobre os Evangelhos. Vol. 05. solenidade da Ascensão do Senhor.
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1) SANTO AGOSTINHO. Sermo CCLXIII, n.1. In: Obras. Madrid: BAC, 2005, v.XXIV, p.750.
2) TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.934.
3) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XXIV, v.45-49.
4) Idem, ibidem.
5) TEOFILATO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, op. cit.
6) ORÍGENES, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, Catena Aurea, op. cit., v.50-53.
7) SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.57, a.3.
8) Idem, a.6.

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