Os surdos ouvem, os mudos falam

Naquele tempo, 31 Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o Mar da Galileia, atravessando a região da Decápole. 32 Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão. 33 Jesus afastou-Se com o homem, para fora da multidão; em seguida, colocou os dedos nos seus ouvidos, cuspiu e com a saliva tocou a língua dele. 34 Olhando para o Céu, suspirou e disse: “Efatá! ”, que quer dizer: “Abre-te!” 35 Imediatamente seus ouvidos se abriram, sua língua se soltou e ele começou a falar sem dificuldade. 36 Jesus recomendou com insistência que não contassem a ninguém. Mas, quanto mais Ele recomendava, mais eles divulgavam. 37 Muito impressionados, diziam: “Ele tem feito bem todas as coisas: Aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (Mc 7, 31-37).

XXIII Domingo Do Tempo Comum

Um fato aparentemente comum entre os numerosos milagres operados pelo Senhor em Israel, entretanto com substanciosa didática, nos ensina a necessidade e os meios para curarmos nossa surdez e mutismo espirituais.

Por Mons. João S. Clá Dias, EP

As leituras próprias para este dia

No universo, encontramos reflexos de Deus esparsos até nas mais insignificantes das criaturas, mas em Jesus nos deparamos com a divindade em sua substância. Tudo n’Ele tem uma multiplicidade de significados levada ao infinito, que nos convida sempre a subir para analisar suas palavras, atitudes e até osgestos, através dos prismas mais elevados. Não foram escolhidas ao acaso estas leituras e o Salmo Responsorial.

Na primeira leitura (Is 35, 4-7a), Isaías incita à fortaleza e à confiança total em Deus, enumerando alguns dos milagres que seriam operados como provas irrefutáveis da determinação de Deus em nos salvar. Nesses quatro versículos transparece o empenho do profeta em fazer-nos compreender os aspectos sobrenaturais dos milagres do Senhor.

Jesus cura os enfermos para dar prova de sua divindade, e também para aliviá-los de suas dores, por compaixão dos que sofrem. Ademais, nos ensina o quanto as doenças e seu poder de curá-las são reflexos de uma realidade muito superior: a das relações dos homens com Deus e vice-versa. “O Senhor abre os olhos aos cegos; o Senhor faz erguer-se o caído; o Senhor ama aquele que é justo” (Sl 145, 8), canta-se no Salmo Responsorial.

A segunda leitura (Tg 2, 1-5) prepara nosso espírito para uma exata impostação face ao conjunto dos ensinamentos contidos no texto litúrgico deste dia: “a fé que tendes em Nosso Senhor Jesus Cristo glorificado não deve admitir acepção de pessoas” (Tg 2, 1). Ou seja, nossa conduta durante a vida terrena deve ser pautada em função da glória eterna; estamos aqui de passagem e necessitamos habituar-nos aos conceitos de nossa verdadeira Pátria, o Céu. Por mais que a importância social e humana destes ou daqueles nos obriguem, por educação, a usarmos de equilibrada deferência, nosso verdadeiro amor e consideração ao próximo só serão perfeitos se praticados em função da virtude existente nos outros. É fundamental sermos “ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que O amam” (Tg 2, 5).

A cura do surdo-mudo

É do alto deste mirante da fé que devemos analisar e as similar as verdades e lições contidas no presente Evangelho.

“Trouxeram…”: o apostolado leigo

Se o tal surdo-mudo não tivesse sido levado por outros para junto de Jesus, provavelmente não teria recuperado a fala e a audição. É comovedor encontrar no Evangelho — e com frequência — menção à solicitude do povo judeu para com os necessitados, às vezes incapazes de se locomoverem por suas próprias forças. Chegavam a introduzi-los pelo telhado no interior da casa onde estava o Messias (cf. Lc 5, 17-20); ou lançavam aos seus divinos pés grande quantidade de coxos, cegos, mudos, estropiados, etc. (cf. Mt 15, 30); ou, em casos extremos, os conduziam em macas e os colocavam nas praças para que pudessem tocar nas suas vestimentas, pois com isso se curariam (cf. Mc 6, 55-56). Se não tivesse havido este apostolado colateral, Jesus não teria operado aqueles milagres…

O Senhor quer o apostolado exercido pela Hierarquia e foi assim constituída sua Igreja. Contudo, não só aprova como até mesmo deseja que os movimentos leigos atuem em colaboração com a autoridade eclesiástica. Não eram os Apóstolos e nem sequer os discípulos os instrumentos utilizados para levar os necessitados até o Mestre. Neste episódio transparece o verdadeiro papel dos movimentos leigos, que João Paulo II tanto fez para estruturar, proteger e promover, e dos quais chegou a afirmar serem “a resposta, suscitada pelo Espírito Santo, a este dramático desafio do final de milênio”.

Os leigos jamais devem se esquecer da essência, da força e do objetivo de seu apostolado: conduzir todos a se aproximarem de Cristo, para tocá-Lo ou pelo menos vê-Lo. Ele é quem dá o crescimento, de modo que “nem o que planta é alguma coisa nem o que rega, mas só Deus, que faz crescer” (I Cor 3, 7). Será estéril todo apostolado que não levar os demais a terem um contato com Jesus, pois é somente d’Ele que procede a virtude saneadora e salvadora. Por esta razão, o labor apostólico será eficaz se forem levados para a vida sacramental quantos a Providência coloque em nossos caminhos. Esta altíssima tarefa pode ser exercida através da oração, da palavra, do exemplo e da ação direta.

E o melhor meio para isto é fazer tudo através de Nossa Senhora, segundo nos ensinam a Igreja e tantos Santos, em especial, São Luís Maria Grignion de Montfort.

Um surdo-mudo

Percebe-se, pela continuação da narração, tratar-se de uma enfermidade contraída, e não congênita, pois, ao soltar-se a língua, passou a falar “sem dificuldade”; portanto, aprendera a conversar desde a infância. Apesar de ser raro, esse trauma do impedimento da normal locução às vezes se estabelece nestes ou naqueles, constituindo um tormento para suas vítimas. Neste caso do Evangelho, ademais, o pobre homem era surdo e, segundo muitos exegetas, estes dois problemas tiveram uma só origem e surgiram concomitantes após uma infecção ou qualquer outra doença.

As Escrituras Sagradas possuem, além do sentido literal, incontáveis outros espirituais. Isto ocorre também neste milagre narrado por São Marcos. Enquanto fato concreto, ele representa um elemento a mais para fortalecer os fundamentos de nossa fé em Nosso Senhor. Mas, por um prisma simbólico, conforme interpretam os Santos Padres, a surdez representa o endurecimento da alma que já não mais ouve a voz da graça, o chamado de Cristo; e a mudez, o esquecimento ou o relaxamento em louvar a Deus. Não poucas vezes, o próprio Salvador chegou a queixar-Se dos judeus que, tendo uma audição normal, não ouviam.

O surdo de Deus

Ouvir a voz de Deus é tomar a atitude de Samuel, “Falai, Senhor; vosso servo escuta!” (I Sm 3, 9), ou a de São Paulo no caminho de Damasco (cf. At 9, 6), ou a de tantos outros. Em sentido oposto, o pecador, devido à zoeira de suas paixões, acaba por se tornar surdo aos apelos de Deus, chegando até mesmo a se esquecer das mensagens sobrenaturais recebidas no passado. A surdez simboliza toda a insensibilidade da alma no seu relacionamento com o Criador.

Inúmeros são os meios pelos quais Deus procura entrar em contato conosco. Antes de tudo pela ordem da criação visível (cf. Rm 1, 20); em seguida, através dos fatos palpáveis e tangíveis produzidos pela providência natural e sobrenatural, sobre os quais o Livro da Sabedoria nos ensina maravilhosamente (cf. Sb 10—11). Deus fala aos homens através do Magistério infalível da Santa Igreja, como também por toques sensíveis da graça ou pela voz da consciência. A Sabedoria, segundo declara a Escritura, “antecipa-se aos que a desejam. Quem, para possuí-la, levanta-se de madrugada, não terá trabalho, porque a encontrará sentada à sua porta” (Sb 6, 13-14). Ou seja, Deus está a cada instante nos chamando para participarmos de sua glória e felicidade eternas.

“As minhas ovelhas ouvem a minha voz” — disse Jesus — “Eu as conheço e elas Me seguem. Eu lhes dou a vida eterna; elas jamais hão de perecer, e ninguém as roubará de minha mão” (Jo 10, 27-28). Eis o sinal inconfundível para se saber quem é de Deus e quem não o é: “Quem é de Deus ouve as palavras de Deus” (Jo 8, 47), disse também Nosso Senhor, depois de ter afirmado serem os fariseus, filhos do demônio (cf. Jo 8, 44). É mais sensível a Deus quem O ama intensamente, tal como encontramos ainda em São João: “Se alguém Me ama, guardará a minha palavra” (Jo 14, 23).

Infelizmente, a surdez espiritual é muito mais generalizada hoje em dia do que em outras épocas históricas. Inclusive entre os próprios batizados. Um incontável número de almas tem os ouvidos endurecidos à Palavra de Deus, quer seja por falta de formação, quer pela pobreza da oração. Quantos são os ateus práticos que nunca rezam! Todavia, para receber alguma comunicação oriunda da eternidade, basta colocar-se em estado de contemplação. Quem assim não procede, dificilmente discernirá, em meio à zoeira e às aflições do mundo moderno, a voz da graça. E é preciso não nos esquecermos do conselho da Escritura: “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações” (Hb 3, 7-8).

O mutismo espiritual

Ser mudo na ordem do espírito, segundo os Padres da Igreja, consiste no silêncio de quem teria obrigação de glorificar a Deus. Terrível é este mal — e quase sempre consequência do anterior —, pois, ainda que não tivéssemos sido elevados à ordem sobrenatural, pelo simples fato de sermos criaturas de Deus, teríamos o dever de reportar a Ele toda honra e glória, tal qual nos diz Davi: “Narram os céus a glória de Deus, e o firmamento anuncia a obra de suas mãos” (Sl 18, 2).

Porém, nós, enquanto batizados, somos filhos de Deus e não meras criaturas, e por isso compete-nos o encargo de dar público testemunho da grandeza de nossa Religião e de Cristo Jesus, em especial, pois tem Ele o direito de ver seu esplendor manifestado todos os dias. É este um dos meios fundamentais para atrair aqueles que ainda não O conhecem e afervorar os que já abraçaram suas vias.

Esta obrigação é tão grave, que se tivéssemos de escolher entre morrer ou renegar a Cristo, seria indispensável optar pelo martírio. Por que somos nós tão valentes em defender nossos interesses pessoais e tão covardes em relação aos de Deus? “Onde está o teu tesouro, lá também está teu coração” (Mt 6, 21). Esta é a principal razão do mutismo de espírito, ou seja, a falta do amor a Deus. “Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará a um e amará o outro, ou dedicar-se-á a um e desprezará o outro” (Mt 6, 24). Se nosso amor a Jesus, por meio de Maria, for pleníssimo a ponto de substituir nosso egoísmo, jamais seremos mudos para glorificá-Lo.

Afastou-Se… para fora da multidão”: o recolhimento

Certas enfermidades, sobretudo as mais graves, exigem tratamento hospitalar. De maneira análoga se passa com o processo de cura dos portadores de alguns vícios espirituais, ou seja, é necessário afastá-los da multidão, retirá-los do bulício e da agitação. O esfriamento de nossa vida de oração e o abandono da prática da Religião vão dando rédeas soltas às nossas paixões desregradas, os maus hábitos invadem nossa inteligência e nossa vontade, a Lei de Deus acaba por tornar-se cada vez mais pesada e, por fim, terminamos sendo surdos de Deus e mudos para sua glória. Será útil, e talvez até indispensável nessas circunstâncias, tomar distância, recolher-se de alguma forma, para entregar-se nas mãos de Jesus e ser por Ele miraculado.

Aplicação

Os grandes pregadores de outrora, ao comentar este trecho do Evangelho, com frequência faziam uma aproximação entre as enfermidades físicas e as espirituais, convidando os fiéis à conversão, de modo veemente. Ao mundo hodierno bem se poderia aplicar uma metáfora: “Surdos para ouvir a verdade e mudos para glorificar a Deus”. Uma grande maioria de pessoas tem, na atualidade, os ouvidos abertos e sensíveis a quase tudo o que não seja de Deus: imoralidades, blasfêmias, ateísmo, escândalos, etc.; e muitas vezes fechados ou endurecidos para os avisos, exemplos e conselhos rumo à santidade. E o que pensar do uso da língua neste começo de milênio? Não poucas vezes consiste em proferir pecados, iniquidades, blasfêmias, difamações, calúnias, mentiras, etc., quando na realidade recebemos de Deus o dom da fala para proclamar sua grandeza, honra e glória!

A humanidade se encontra mais surda e mais muda do que todos os estropiados de fala e audição existentes nos dias da vida pública de Nosso Senhor. Quão necessária é a intercessão de Maria para obter de Jesus o retorno da audição e da expressividade dos áureos tempos da História, nos quais os homens cantavam as glórias de Deus não só pelas palavras, gestos e atitudes, mas também através de melodias e de todas as artes! ♦️


Excertos de “O Inédito sobre os Evangelhos”, Vol. IV, ano B.

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