A Carta do Reino dos Céus

Comentário ao Evangelho do VI Domingo do Tempo Comum

As bem-aventuranças enunciadas por Jesus mudaram o curso da História e marcaram o início de uma nova era: o Cristianismo. A crueldade do mundo pagão foi assim ferida de morte. E a doutrina da obediência à Lei requintou-se até alcançar um sublime grau: a prática do amor e o desejo de santificação

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP

Os primeiros passos para a fundação da Igreja

Com a eleição dos doze Apóstolos, concluiu Jesus com chave de ouro a primeira fase do ensino. Tornava-se agora necessário expor sua doutrina de maneira metódica, a fim de conferir um embasamento lógico a todas as suas ações e ensinamentos.
E é nessa sequência que se insere o Sermão da Montanha.

Com muita propriedade, a esse respeito assim se expressa Fillion: “A instituição do Colégio Apostólico e o Sermão da Montanha são fatos conexos e ambos têm elevadíssimo significado na vida de Jesus. Com razão são considerados como os primeiros passos para a fundação da Igreja. Com a eleição dos Apóstolos, procurava Ele auxiliares e preparava continuadores oficiais; ao pronunciar seu grande discurso, promulgava o que expressivamente tem-se chamado a Carta do Reino dos Céus”.  (…)

As bem-aventuranças

17 Descendo com eles, parou numa planície. Estava lá um grande número de seus discípulos e uma grande multidão de povo de toda a Judeia, de Jerusalém, do litoral de Tiro e de Sidônia.

De todas as partes acorriam os enfermos e curiosos, uns para serem libertos de seus males, outros para comprovar a realidade da fama de Jesus, que se espalhara. E por que não subiram todos para encontrar-se com Jesus no cimo do monte? São Beda, o Venerável, assim nos explica: “Rara vez se observará que as turbas tenham seguido Jesus até as alturas, ou que Ele tenha curado algum enfermo no cimo de monte; senão que, uma vez curada a febre das paixões e acesa a luz da ciência, devagar sobe-se até o cume da perfeição evangélica”.

Por isso o Divino Mestre desce com os Apóstolos recém-eleitos para estar com a multidão que O aguardava.

20a Levantando os olhos para seus discípulos, dizia…

São variadas as interpretações dos autores a propósito desse gesto de Jesus. Pela própria narração de Lucas, tem-se a impressão de estarem os discípulos localizados num plano mais alto que o da multidão e como talvez desejasse oferecer àquela gente um certo exemplo, apesar de estar falando a todos, fixa seu olhar nos Apóstolos.

20b “Bem-aventurados vós os pobres, porque vosso é o Reino de Deus”.

A pobreza é citada em primeiro lugar por ambos os evangelistas, por ser a mãe das outras virtudes. Como poderia, aliás, alguém entrar no Reino dos Céus possuído do amor a este mundo e aos seus bens? Quem é considerado “pobre”, segundo o Evangelho?

Lázaro possuía uma das maiores fortunas de Israel, entretanto era pobre de espírito. E, em sentido oposto, Judas por sua ganância, apesar de pouco ou nada possuir de bens materiais, foi traidor por ser “rico” (de espírito).

Matéria não faltaria para escrevermos um longo tratado sobre este versículo 20, e numerosos são os autores conceituados que discorrem com precisão de conceitos a respeito dessa bem-aventurança. Para os efeitos deste artigo, basta focalizar o quanto a riqueza ou a pobreza devem ser assumidas como meios de atingir a santidade. O importante não é ter ou não dinheiro. A questão se põe em como dispor dele para adquirir o Reino de Deus.

O grande mal de todos os tempos é o de almejar a fortuna por puro gozo da vida, e não para melhor servir a Deus. E, debaixo desse prisma, não vem ao caso ser rico ou pobre, porque o primeiro desprezará o segundo, este invejará o outro e ambos incorrerão na sentença contida no versículo 24: “Mas ai de vós, os ricos, porque tendes já a vossa consolação”.

Por essa razão, é absolutamente preferível nada possuir, a cometer um pecado, ou até mesmo, a esfriar na piedade.

21a “Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados”.

O Evangelista opõe a esta bem-aventurança a maldição contra os que vivem na fartura, porque virão a ter fome: “Ai de vós os que estais saciados, porque vireis a ter fome”. De onde conclui o famoso Cornélio a Lápide que, aqui, trata-se realmente de fome de alimentos, e não apenas algo espiritual.

É este o mais alto grau desta bem-aventurança: suportar com resignação cristã portanto, sem revolta, sem inveja e sem ódio — os sacrifícios decorrentes da pobreza material; isto torna o pobre um bem-aventurado. Por outro lado, também são bem-aventurados os que têm fome de Deus.

A estes últimos, Deus alimentará com a sua graça, com mais abundância, na medida do desejo de perfeição. É uma “fome”, afirma Cornélio a Lápide, que ao mesmo tempo alimenta até à fartura, pois no Céu seremos saciados de felicidade e glória.

21b “Bem-aventurados os que agora chorais, porque haveis de rir”.

Vitral do Convento de Tyburn, Londres

Os pecadores encontram sua falsa felicidade na transgressão da lei de Deus. A estes adverte Jesus severamente, porque no dia do Juízo hão de chorar sua condenação eterna: “Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis”. Ademais, ainda nesta Terra, apesar de sua aparente alegria, vivem de tristeza, pois a consciência continuamente os acusa de suas faltas.

Ao prazer decorrente do pecado sempre se segue o remorso pela falta cometida. Mas aqueles que choram de arrependimento pelos próprios pecados, já encontram, na sua contrição, consolo e felicidade.

A experiência nos ensina que o arrependimento traz alegria, e é fruto da graça de Deus. Também os que suportam com paciência as dificuldades são bem-aventurados, já nesta vida. Pois, embora sofram e “chorem”, a paciência alcançada com a graça de Deus os envolve de suavidade e paz de alma. Pelo contrário, os que se mostram inconformados nas adversidades, esses carregam no coração uma profunda amargura.

22 “Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos repelirem, vos carregarem de injúrias e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do homem. 23 Alegrai-vos nesse dia e exultai, porque será grande a vossa recompensa no Céu. Era assim que os pais deles tratavam os profetas”.

No ser humano, o instinto de sociabilidade é mais profundo e sensível que o de conservação. São numerosos os homens que enfrentam grandes perigos, e a própria morte, mais por pressão da sociedade, pelo medo do ridículo, de serem tidos por covardes, do que por autêntico heroísmo.

As perseguições violentas contra a Igreja, ao longo da História, povoaram o Céu de mártires e fazem pasmar de admiração o mundo inteiro. Às perseguições morais, é menor o número dos que resistem. No mundo de hoje, quantos perdem a Fé, por não aguentarem a pressão do ambiente de ateísmo prático que os envolve? E por isso, em nossos dias, talvez seja mais meritório proclamar a Fé diante do riso irônico de um círculo de pseudoamigos, do que o era ante o rugido das feras no Coliseu, nos primeiros tempos do Cristianismo. Por vezes, pior ainda do que a perseguição dos maus, é a incompreensão dos bons.

Mas, “ai de vós quando os homens vos louvarem”, acrescenta Nosso Senhor, porque este seria o sinal de nossa falta de integridade, pois o mundo só aceita as meias verdades e a virtude frouxa, nisso empregando uma forma encoberta e mais cômoda de praticar o mal.

Jesus começa o enunciado das bem-aventuranças com a promessa do Reino dos Céus, e com ela termina, para dar a entender que também com a prática das demais se alcança o mesmo prêmio, deixando subentendido o quanto elas são interligadas. Não basta praticar uma delas isoladamente, desprezando as restantes.

O Sermão da Montanha nos dias de hoje

Fundada a Igreja, com sua progressiva expansão e penetração nas capilaridades das sociedades daqueles tempos, Deus e sua lei foram colocados no centro da vida humana, numerosos foram os que passaram a praticar os conselhos evangélicos e uma nova era brilhou sobre a Terra, a do Cristianismo.

E hoje, o que é feito dessa era? O terrorismo ameaça, os sequestros se alastram, o roubo de crianças prolifera, o comércio de órgãos humanos se avoluma, o crime, os vícios e o desrespeito se impõem; assistimos cotidianamente à expansão de ódios, guerras intestinas e internacionais, matanças de inocentes, ao desaparecimento gradual e progressivo do instituto da família…

Enfim, quanto mais haveria para enumerar! Não estaremos nós vivendo agora dias piores do que os da Antiguidade? E por que o Sermão da Montanha não produz, hoje, os mesmos efeitos de outrora? As raízes dos males atuais são idênticas às dos horrores da época de Jesus, que sinteticamente assim se poderiam enunciar: “a finalidade última do homem se cumpre nesta Terra, por isso ele deve fruir todos os prazeres que a vida e este mundo lhe oferecem, pois Deus não existe”.

Assim sendo, continua válido — e mais do que nunca — na sua integridade, o Sermão da Montanha.

Qual, então, a razão dessa insensibilidade?

Falta à humanidade uma graça eficaz que a faça, como o filho pródigo, ter saudades da casa paterna e querer retornar às delícias das consolações de quem ama verdadeiramente a Deus, seus Mandamentos, e ao próximo como a si mesmo. Quiçá, depois de uma divina intervenção, melhor compreendendo e amando o Sermão da Montanha, a humanidade, convertida, abrace como nunca a perfeição e se torne realidade, assim, a profecia enunciada por Nossa Senhora em Fátima:

“Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”

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O Inédito sobre os Evangelhos, VI Domingo do Tempo Comum. Trechos do Vol. VI, págs. 76-89.

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