Por João Sérgio Guimarães. Anchieta chegou em 1553 e encantou-se com a Terra de Santa Cruz. Sua meta: converter almas. Viveu como missionário, agiu como herói, morreu como santo. O moço de 19 anos que chegava à Terra de Santa Cruz vinha com as melhores disposições espirituais possíveis para exercer sua missão. Embora tão jovem e não tendo ainda sido ordenado sacerdote, Irmão José era dos primeiros missionários jesuítas que se estabeleciam na nova terra. Sua meta era conquistar almas para Cristo.
Ele fazia parte da comitiva do segundo Governador Geral do Brasil Dom Duarte da Costa e chegou a Salvador, na Bahia de Todos os Santos, no dia 13 de julho do ano de 1553.
Da Terra de dimensões continentais em que aportou nunca mais saiu. Amou a Terra, amou seu povo. Evangelizou as “gentes brasílicas”, deu rumo a sua formação. Identificou-se com suas aspirações, sem perder sua própria identidade.
Origens de José de Anchieta
Aquele jovem noviço tinha nascido em São Cristóvão, Tenerife, uma das ilhas do Arquipélago das Canárias, a 19 de março de 1534, dia da festa litúrgica de São José, fato determinante para que ele também recebesse esse nome no batismo: José de Anchieta.
José de Anchieta pertencia a uma próspera família. Seu pai, Juan Lopes de Anchieta, era da província de Guipuscoa, no País Basco. Por precaução, Juan havia mudado para as Canárias. E ele tinha lá suas razões para isso: ele tomou parte na Revolta dos Comuneiros, feita contra o imperador espanhol Carlos V e havia sido condenado à morte.
Juan Lopes acabou sendo salvo da pena capital por intercessão de um ilustre parente militar, o capitão Inácio de Loyola, que, mais tarde, veio a ser o fundador dos jesuítas, os religiosos da Companhia de Jesus. Sua mãe foi Dona Mência Dias de Clavijo y Llarena. Ela era natural das próprias Ilhas Canárias. Seu avô havia sido um dos conquistadores espanhóis.
Anchieta: formado num tempo de turbulência
Foi com 17 anos de idade que José de Anchieta ingressou na Companhia de Jesus, a Ordem Religiosa fundada por Santo Inácio em 1539 e que foi aprovada pelo Papa Paulo III com a publicação da bula “Regimini Militantis Eclesiae”, de 1540. Também foi por essa ocasião que José de Anchieta –ainda estudante de 17 anos– fez seu voto particular de castidade diante do Altar de Nossa Senhora, na Catedral de Coimbra.
Na época do estudante José de Anchieta o mundo ocidental estava vivendo uma crise: passava por uma autêntica e profunda revolução cultural e religiosa. O Renascimento, aproveitando-se de tendências latentes no homem decadente do fim da Idade Média, manejava as ideias, influenciando e marcando profundamente os acontecimentos nas artes e mentalidades.
No campo religioso, a reforma protestante, codificada por um frade apóstata e seguindo a esteira da renascença, produzia devastações no seio da unidade do cristianismo.
Foi num mundo assim conturbado que no ano de 1553, no final de seu noviciado, José de Anchieta fez seus primeiros votos como jesuíta. Com esses votos, seus receios de não poder permanecer na Ordem de Santo Inácio foram dissipados.
Doença e Santa Obediência o trazem ao Brasil
Logo após seu ingresso na Companhia de Jesus, ele foi acometido por uma doença ósteo-articular. Se essa enfermidade continuasse a agredi-lo, suas esperanças de ser jesuíta cairiam por terra: ele não poderia continuar na Ordem. Os votos lhe garantiam que estava são e que poderia continuar entre os filhos de Santo Inácio.
Os médicos da época acreditavam que os ares do Novo Mundo seriam benéficos para sua total recuperação e aconselharam sua transferência para o outro lado do Oceano Atlântico. Então, seus superiores o enviaram para exercer uma missão em terras do domínio português, na América.
Ele era um bom religioso. Entusiasmado, obedeceu prontamente seus superiores: atravessou o oceano, chegou ao Brasil para evangelizar seu povo e daqui nunca mais saiu.
Na travessia do oceano o mais jovem dos jesuítas na esquadra do Governador Duarte da Costa dava mostras de que sua saúde estava sendo recuperada a cada instante. Quando aportou em Salvador, ele estava praticamente curado. O tempo na nova terra completaria a cura total.
Ação preternatural ou fato providencial?
As caravelas do novo Governador Geral Duarte da Costa traziam cerca de 250 pessoas. Além do noviço José de Anchieta, fazia parte da esquadra o também jesuíta Padre Manuel da Nóbrega que era seu superior e seria acompanhado por Anchieta no início de sua missão.
Os dois jesuítas já tinham destino certo. Eles apenas passariam por Salvador e logo deveriam dirigir-se para a Capitania de São Vicente. Ali exerceriam a missão de catequizar colonos e nativos.
A viagem até a “terra de missão” era difícil. Não havia outro meio de realizá-la a não ser por mar. Duas naus saíram de Salvador com destino a São Vicente levando Anchieta, Nóbrega e outros padres jesuítas. Ainda no Sul da Bahia uma tempestade gigantesca surpreendeu as duas embarcações. Uma delas foi arremessada contra os rochedos e espatifou-se. Por milagre, ninguém morreu. A nave em que estava Anchieta, acabou ficando encalhada nos recifes, ainda inteira.
Foi uma noite de terror para os viajantes. Gigantescas ondas ameaçavam destruir a nau que ainda havia restado. No dia seguinte, o mar amanheceu calmo e os viajantes conseguiram chegar à terra. Parece até que uma fúria de origem preternatural, diabólica, antevendo os sucessos que teriam os missionários, tentava impedir que eles chegassem a seu destino.
Pior para o demônio: Ali mesmo Anchieta começou sua missão… com sucesso. Ao procurar comida em terra firme, encontrou-se com índios do lugar. Ao chegar na aldeia deles, viu uma indiazinha muito doente, já à beira da morte. Anchieta a instruiu e batizou dando-lhe o nome de Cecília. Logo depois, a primeira indiazinha brasileira batizada por Anchieta morreu.
Enquanto o barco era consertado, Anchieta ainda esteve outras vezes na aldeia para ensinar o evangelho aos índios. Chegando a hora da partida, com a consciência tranquila, Anchieta pensava: “O acidente com o barco foi uma obra permitida pela Providência Divina para salvar a inocente Cecília, que estava predestinada.” E ele tinha razão.
Sua vida está cheia de fatos semelhantes que indicam os desígnios de Deus Nosso Senhor de tê-lo como instrumento de salvação para muitas almas. Aquele jovem franzino, doente, tinha a alma maior que o corpo. Sua fé exuberante, acalentava uma esperança que, por amor a Deus, seria capaz de evangelizar um país, formar um povo, salvar um país inteiro.
Anchieta: Um Apóstolo na Capitania de São Vicente
O missionário José de Anchieta chegou a Salvador em junho de 1553 e logo dirigiu-se a São Vicente.
Em pouco tempo ele já estava colocado no centro das atividades da missão. Com seus dotes inatos de comunicador, e com sua sede de almas, conseguiu com os índios um amplo entendimento. Tornou-se logo amigo de indígenas e colonizadores e por ambos era respeitado.
Não limitou seu trabalho às redondezas da pequena São Vicente. Subiu a Serra que costeava a Capitania e chegou ao planalto que estava depois dela. O Planalto de Piratininga era povoado por milhares de índios que viviam em aldeias distintas. Para Anchieta elas eram almas redimidas pelo sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo e sua missão consistiria em conquistá-las para Cristo, conduzi-las para a Igreja para serem instruídas, formadas, civilizadas.
Sua ação era ligeira, meticulosa, apostólica, eficiente. Tinha metas audaciosas, plantava bases para o futuro. Assim foi que em 1554, no dia 25 de janeiro, festa da Conversão de São Paulo Apóstolo, Anchieta participou da fundação do colégio da vila de São Paulo de Piratininga, onde também foi professor. Junto ao colégio foi edificada uma capela provisória na qual foi celebrada a primeira missa em 25 de agosto.
Estava nascendo o núcleo de uma cidade que se tornaria uma das maiores metrópoles do mundo: São Paulo. Anchieta construiu ainda um seminário perto do Colégio de Piratininga e nele também dava aulas. Tanta ação, tanto fruto já colhido e não havia passado seis meses desde que ele chegara à Capitania.
Falava o português, o castelhano, o latim e a língua brasílica
Decifrar o tupi foi uma das tarefas que Nóbrega deu a Anchieta. Em apenas seis meses, ele conseguiu entender e falar a língua dos índios. Em um ano ele a dominava com perfeição a ponto de criar uma gramática. Além da gramática indígena, Anchieta dedicava seus dias a ensinar o latim e o português a curumins e índios adultos. Aos irmãos jesuítas, ensinava a língua tupi.
Depois de cumprir suas obrigações religiosas e de exercer todo o trabalho que tocava a ele executar, ainda estava longe a hora do repouso para ele. Era à noite, quando todos já dormiam, que ele escrevia manuais para os alunos, cartas sobre o trabalho dos jesuítas e obras diversas, entre elas um dicionário de tupi e um tratado sobre a flora, a fauna e o clima da Capitania de São Vicente.
Anchieta lutou contra invasores, unificou pela Fé
No ano de 1555, o Brasil enfrentou graves problemas com a tentativa de franceses calvinistas de estabelecer uma colônia na região do Rio de Janeiro. Os invasores contavam com o apoio de índios da região.
Anchieta participou ativamente da luta pela expulsão dos franceses. A confiança que os índios tinham nele foi decisiva. Nas batalhas finais, no Rio de Janeiro, ele estava animando os combatentes brasileiros. Era amigo de Estácio de Sá e esteve junto dele nas últimas batalhas.
Ele agia em todos os setores do tecido social e religioso da nascente nação. No campo religioso, ele exerceu o cargo de provincial da Companhia de Jesus entre os anos de 1577 a 1587. O trabalho de Anchieta foi decisivo para a implantação do catolicismo no Brasil. Com seu conhecimento, fé e vontade de evangelizar, percorreu a pé, a cavalo, em embarcações, boa parte do território brasileiro. Assim contribuiu para manter unificado o país naquela época e nos séculos seguintes.
Ele foi quem lançou os fundamentos da catequese e educação dos jesuítas no Brasil. Foi ele também quem começou a reverter o quadro iniciado desde o descobrimento, em que os nativos eram vistos apenas como propriedade da Coroa e, como tal, passíveis de serem escravizados.
Agindo como apóstolo, plantou cultura
Anchieta deixou sua marca também no campo cultural. Sua obra de conteúdo eminentemente religioso constituiu-se na primeira manifestação literária na Terra de Santa Cruz contribuindo fortemente para a formação da nascente cultura brasileira. Além de suas cartas, sermões e poesias, ele escreveu uma Gramática da língua tupi, idioma que ele dominava perfeitamente. Escreveu “De Gestis Mendi de Saa”, um livro que tratava dos feitos do Governador Geral Mem de Sá.
É famoso seu “Poema da Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus”, que foi escrito originariamente nas areias da praia de Iperoig, no litoral da costa da Capitania. Nele se manifesta não só a erudição e estro do poeta, mas, refulgem no texto as melhores doutrinas sobre a Virgem Maria e a expressão de uma devoção e de um amor extraordinário à Santa Mãe de Deus. São também de autoria de Anchieta peças de teatro de cunho religioso e formativo. Entre elas está o “Auto da Pregação Universal” e ainda o “Na Festa de São Lourenço”, também chamada de “Mistério de Jesus”.
A Língua tupi, a evangelização e o descanso
Era destro em quatro línguas: portuguesa, castelhana, latina e brasílica. Decifrar o tupi foi uma das tarefas que Nóbrega confiou a Anchieta. Em seis meses, ele completou o aprendizado da língua e, em um ano, a dominava com perfeição. Dois anos depois de ter chegado ao Brasil, escreveu a sua “Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”.
Além da gramática, Anchieta ensinava o latim e o português para os curumins (meninos) e para os índios adultos. Aos irmãos jesuítas, ensinava a língua tupi.
O repouso não vinha para ele logo que a noite chegava. Era nessa hora que escrevia manuais para os alunos, cartas sobre o trabalho dos jesuítas e obras diversas, entre elas um dicionário de tupi e um tratado sobre a flora, a fauna e o clima da Capitania de São Vicente. Era tarde, quando ia dormir.
Anchieta viveu com missionário, agiu como herói, morreu como santo
A vida de José de Anchieta é como um sopro encorajador: é exemplo. Entusiasma e arrasta os que têm Fé. Convida os católicos a viver na caridade e no ardor missionário que evangeliza e santifica. Para os índios, ele foi médico, professor, foi amigo e defensor. Tornou-se o elo de ligação dos índios e colonos com os padres jesuítas, com a Igreja e a nação que estava sendo forjada.
Mas, José de Anchieta foi sobretudo sacerdote. Cuidava das doenças e feridas das almas, da espiritualidade de todo o povo. Por isso mesmo é que lhe foram dados vários títulos que o homenageavam, sendo que o que melhor lhe cai é o de “Apóstolo do Novo Mundo”, que para nós pode ser “traduzido” como “Apóstolo do Brasil”.
Com 63 anos, Anchieta faleceu no povoado que ele mesmo havia ajudado a edificar em 1569: Iritiba (a atual Anchieta), na Capitania do Espírito Santo.
Era o dia 9 de junho de 1597 quando José de Anchieta entregou sua alma a Deus.
Foi beatificado pelo Papa João Paulo II, em 1980, quando então foi nomeado “Apóstolo do Brasil”.
O Papa Francisco o canonizou em 03 de abril de 2014. ♦