A vida eterna também importa


A morte de George Floyd gerou justificadas comoções. Alguns protestos, porém, derivaram para a sedição e para a crise de símbolos. Qual o papel da Igreja?

Por Luís Fernando Ribeiro , Gaudium PressApós quase três semanas de sua ignominiosa morte, George Floyd ainda rende manchetes. Depois de tentar comprar cigarros com uma nota falsa de 20 dólares, foi interceptado e asfixiado pelo joelho de um policial.  Paradoxalmente, Floyd tinha perdido o emprego de guarda de segurança em razão da pandemia.

Nos Estados Unidos logo se desfraldou a bandeira antirracista. O movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam) ressuscitou de repente, organizando protestos pela morte do afro-americano. À maneira de um tsunami, manifestações de todos matizes pulularam por várias cidades, sobretudo nos países conhecidos como civilizados.

Nada mais recorrente do que empunhar cartazes em protesto. Lutero talvez tenha inaugurado o método, ao fixar as 95 teses numa Igreja em Wittenberg. Nasceu então a revolução “protestante”. Hoje a protestação “evoluiu” para a luta armada, levando a uma escalada de violência sem precedentes.

Antes do racismo, existe a acepção de pessoas

Enfim, todos sabem que o racismo é injustificável porque simplesmente ninguém pode ser julgado por sua genética. Jesus ensinou a pregar a todos os povos sem distinção (Mc 16,15; Mt 24,14) e a Bíblia exorta diversas vezes a não ter acepção de pessoas (cf. 2Cr 19,7). Afinal, somos todos filhos degredados dos mesmos pais.

A acepção de pessoas é de si uma transgressão; um pecado contra a justiça e contra a caridade. Esse pecado pode chegar, claro, a extremos genocidas, como o ocorrido Alemanha Nazista, nos gulags comunistas ou em Ruanda em 1994. Se esses absurdos ferem gravemente as leis divinas e humanas, não menos o silêncio ante essas atrocidades. O que infelizmente nem sempre é o caso. Mas isso é outro assunto.

Contradições dos efeitos do caso Floyd

O caso de Floyd foi um caso individual e local colocado no megafone mundial. O que poderia ser uma reivindicação legítima, foi conspurcada, entretanto, por inúmeras contradições. Eis algumas delas de modo sucinto e objetivo:

1) De fato, vidas negras importam. Contudo, todas as vidas negras importam, inclusive as dos fetos abortados e dos policiais negros assassinados na esteira dos mesmos protestos. Será que há uma ideologia sinistra por detrás dessa acepção de pessoas? Todas as vidas em si mesmas possuem valor, independentemente da genética.

2) Por que alguns protestos, supostamente democráticos e pacíficos, se utilizam da barbárie para alcançar seus objetivos? O fato é que os vândalos terminaram por quebrar o que vírus não conseguiu. A vida dos trabalhadores (por vezes negros) também importa. Muitos deles perderam tudo pelas mãos dos visigodos pós-modernos, os paladinos da suposta “liberdade”.

3) Ironicamente, o vírus deve ter tido uma mutação, pois agora a voz de comando já não é mais “fique em casa”, mas “vá para as ruas”… Basta usar máscaras, recomenda a OMS. As aglomerações para depredar e surripiar patrimônio público e privado são agora abonadas como uma inocente “reação natural”.

4) A simples transposição do fato americano para outros países em nada ajuda para combater a discriminação. Antes, lança-se ainda mais fogo no caldeirão do ódio e do ressentimento.

5) Sem polícia não há polis (cidade). A etimologia nos recorda que não há ordem civil sem os seus guardiães, ou seja, não há civilidade nem civilização (do latim civilis, pertencente à cidade). Incriminar toda a polícia ou promover a violência contra ela por um crime individual só pode contribuir para o colapso das instituições da sociedade, ou seja, a mais pura anarquia.

6) Demagogias são inúteis. Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, se tornou o penitente mais famoso do abstrato “racismo sistêmico” de seu país. De resto, pedir perdão hoje de joelhos por injustiças de escravagistas de mais de dois séculos não tira ninguém do báratro eterno.

7) Condenar estátuas de pretensos “racistas” ou “fascistas” (como Cristóvão Colombo ou Padre Antônio Vieira) à guilhotina, além de vandalismo, revela profunda ignorância histórica, além de anacronismo. Este último foi grande defensor e evangelizador dos povos indígenas e negros. Enquanto isso, os totens de Marx pelo mundo permanecem intactos. Sobre a neorrevolução iconoclasta, o jornal Libération – nascido do bafo rebelde de maio de 1968 – estampou na primeira página deste 11 de junho: “A queda dos símbolos”.

A crise dos símbolos: qual o papel da Igreja?

De fato, nesse momento de crise sanitária e financeira, agora ainda temos de nos preparar para a crise dos símbolos. Por certo ângulo, esse colapso civilizacional é ainda mais grave que os demais, pois sem símbolos não se vence qualquer guerra. Em outras palavras, sem modelos, sem heróis, sem mitos, sem a ajuda sobrenatural, estamos destinados à fragorosa derrota.

Até os pagãos assim entendiam: basta ler a Ilíada de Homero e a batalha entre gregos e troianos, marco da civilização ocidental.

Do ponto de vista religioso, a Igreja Católica é convocada de modo particular nesses momentos de tormenta da humanidade. Hoje, a ela é mais uma vez oferecida a oportunidade de traçar os rumos da História, ao oferecer o que ela tem de mais precioso, ou seja, os seus próprios símbolos: a liturgia, os seus heróis (os santos), os sinos, os sacramentos, a arte e a música sacra, os exemplos bíblicos etc., remetendo tudo para o que é essencial e absoluto: Deus. Antes, vidas importam precisamente porque o homem é “símbolo” do que há de mais alto – o Altíssimo –, pois foi criado à sua imagem e semelhança.

Diante das injustiças, a Igreja é chamada, portanto, a dobrar os joelhos não por gestos demagógicos, mas ressaltando que a vida possui um valor superior, imaterial, baseado na oração, o símbolo supremo da ligação entre o homem e Deus. É dessa genuflexão que precisamos.

A Igreja é precisamente imortal porque é uma instituição-símbolo. Só ela pode unir os filhos da luz para vencer o diabo (diabolos significa “aquele que separa”), com o símbolo (symbolos significa aquele que reúne) da cruz, mesmo que seja escândalo ou loucura para os filhos das trevas (cf. 1Co 1,23).

A sua missão é antes de tudo indicar o caminho da vida eterna, que começa pelas ações virtuosas nesta vida terrena. Em suma, quando a vida eterna realmente importar, a vida terrena terá finalmente o seu devido valor. ♦

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