O juiz e a viúva

Comentário ao Evangelho do XXIX Domingo do Tempo Comum

Com divina didática, Jesus contrapõe à iniquidade de um juiz a obstinada insistência da fragilidade feminina, para nos mostrar a necessidade de sermos incessantes na oração

Monsenhor João S. Clá Dias, EP, Fundador dos Arautos do Evangelho


A alma humana tem sede do infinito. Por Deus, assim fomos criados e essa é a razão de vivermos em contínua busca da felicidade total, sem dores nem obstáculos, num relacionamento social perfeito e harmonioso. A apetência do ilimitado marca profundamente todas as nossas ações. Esta é, aliás, a principal causa do sentimentalismo romântico e de tantos outros desequilíbrios do convívio humano, no qual buscamos satisfazer entre puras criaturas esse anseio de infinito só saciável por Deus.

O querer obter, a qualquer preço ou esforço, algum bem necessário, ou livrar-se de um incômodo insuportável, não poucas vezes vem penetrado por essa aspiração de plenitude. Esses dois desejos — o de obter e o de livrar-se — são a nota tônica da parábola da Liturgia de hoje. A viúva implora sem cessar, o juiz usa de subterfúgios e evasivas para dela escapar. Por fim vence a insistência da fragilidade sobre um duro coração amante do bem-estar.

Analisemos a parábola em seus detalhes para, ao final, aproveitarmos as conclusões daí provenientes.


I – A parábola

2 “Havia em certa cidade um juiz que não temia a Deus nem
respeitava os homens”.

De que juiz se trata e qual a cidade em que ele vivia? Não se sabe. A descrição começa como se fosse um conto para crianças: “Havia em certa cidade…”. O episódio é propositadamente anônimo. O Divino Mestre deseja com esse procedimento, fixar a atenção de seus ouvintes nos aspectos morais e psicológicos da parábola e por isso apresenta-a desprovida de seus eventuais dados históricos.

O juiz era sem dúvida um judeu de raça e religião, caso contrário, Jesus o caracterizaria como sendo um homem que não acreditava no Deus Verdadeiro. Na realidade, em seu modo de agir ele representa uma clara personificação do ateísmo prático já comum naqueles tempos, se bem que não tão difuso como nos dias atuais. Provavelmente ele praticava a religião com exclusão do Primeiro Mandamento da Lei de Deus. Era, portanto, um mau judeu.

Ora, devendo ser Deus o centro de nossos pensamentos, desejos e ações, ao ignorá-Lo, ou d’Ele se afastar, as próprias relações humanas se tornam defectivas e viciadas, ou seja, deterioram-se todos os princípios do saudável respeito.

Nesse juiz, vê-se retratado um dos grandes males de nossos tempos: o desaparecimento da douceur de vivre, da benquerença e da admiração no trato social, seja entre iguais, ou entre inferiores e superiores. Ao se considerar o único ponto de referência para atender a seus semelhantes, pouco lhe importam estas ou aquelas qualidades dos mesmos.

Ele se move de acordo com a volubilidade do sopro de seus caprichos e não se inclina a dar ouvidos aos respectivos pleiteantes, pois lhe falta o necessário estímulo para conduzir a bom termo suas causas. O egoísmo é sua lei.

A viúva importuna

3 “Havia também na mesma cidade uma viúva, que ia ter com ele,
dizendo: ‘Faze-me justiça contra o meu adversário’”.

Nessa mesma cidade havia uma viúva. Como em todas as épocas, a esposa que se vê desprotegida pela morte de seu marido, torna-se uma figura digna de pena. Recairá sobre ela, a parte mais frágil, o ônus da educação dos filhos, sobretudo dos pequenos, e da administração dos bens e da casa. Se ela não tiver o amparo de amigos verdadeiros, seu isolamento bem poderá se tornar dramático, e os interesses egoístas desses ou daqueles se concentrarão sobre a herança dos menores. Restar-lhe-á o intransigente vigor de seu instinto materno, acompanhado de suas amargas lágrimas. Por nada deste mundo ela abandonará as crianças alimentadas e crescidas em seus braços. Será um modelo insuperável de obstinação nesse particular. Esse é, bem provavelmente, o caso da presente parábola.

A viúva deve ter saturado o juiz com suas inúmeras visitas, implorando-lhe, a cada vez, justiça contra seu adversário. Este último, quiçá, fosse um israelita constituído na fraude e na maldade que — tirando proveito da existência de um árbitro nada temente da cólera divina — havia dado largas à sua ganância e, assim, procurava extorquir os bens, no todo ou em parte, da desamparada e aflita senhora.

A apropriação indébita sempre existiu ao longo dos tempos. Sobretudo nos casos onde predomina o absolutismo do mais forte, ao excitarem-se as paixões, se estabelece a lei da selva. E o que poderia fazer uma pobre mulher, nessa crítica situação, senão recorrer aos tribunais? Por outro lado, o mau israelita terá grande interesse em manter o status quo e, não havendo outra solução, se empenhará, na medida do possível, em retardar ao máximo qualquer pronunciamento legal.

Ora, as delongas só poderiam agravar o drama da triste senhora. Daí a grande insistência: “Faze-me justiça contra o meu adversário”.

A atitude do juiz

4a “Ele, durante muito tempo não a quis atender”.

Não nos são desconhecidas as demoras processuais em nosso Ocidente latino. Mas, nos povos orientais, naqueles tempos, as intérminas esperas faziam guerra às mais robustas paciências. Pelas próprias Escrituras Sagradas temos ciência da existência do suborno na época e, portanto, pode-se levantar a questão: terá o juiz recebido propostas, ou presentes, da parte contrária? Por outra, esperava ele alguma oferta da viúva para solucionar sua causa? O certo é que, por certa razão, talvez até por puro desleixo, capricho ou preguiça, o julgador se recusava a ouvir os rogos da autora do processo em curso.

Ainda uma outra hipótese se poderia levantar para buscar uma explicação de tal atitude. É do conhecimento geral que a demora muitas vezes resolve inextricáveis problemas. Não teria sido, o magistrado em questão, partidário de tomar o tempo como seu conselheiro? Nada leva a crer que assim fosse, pois ele “não temia a Deus, nem respeitava os homens”, e, portanto, a virtude não era a lei de seu habitual procedimento.

4b “Mas, depois disse consigo: ‘Ainda que eu não tema a Deus
nem respeite os homens, 5 todavia, visto que esta viúva me
importuna, far-lhe-ei justiça, para que não venha continuamente
importunar-me’”.

A ressonância é um fenômeno físico que tem se mostrado poderoso até em relação a pontes sólidas e robustas. Aquele bater contínuo e ritmado sobre uma superfície rígida, ameaça toda a sua constituição. Há na psicologia humana uma reversibilidade dessa figura: a insistência importuna. A viúva não dava sossego ao juiz, obrigando-o a saltar de dentro de sua inação para, entre dois incômodos — ou ter de lhe dar ganho de causa, ou encontrá-la suplicante a toda hora —, escolher o menor. Ele ficou enfarado e, para evitar revê-la a todo instante, resolveu atender ao seu pedido. O motivo que o levou a tomar tal decisão não foi nada nobre, nem elegante, mas a viúva não se acanhou e nem se deixou tomar pelo respeito humano; seu único empenho era de obter um justo pronunciamento.

Essa parábola retrata, de passagem, alguns aspectos daquela jurisprudência consuetudinária. Apesar das variações em confronto com o Direito Processual vigente nos países ocidentais, o caso imaginado pelo Divino Mestre nos é inteiramente assimilável, não necessitando de nenhuma adaptação. Em vista de sua fácil compreensão, Jesus passa diretamente à aplicação.

O Supremo Juiz e as almas escolhidas

6 Então o Senhor acrescentou: “Ouvi o que diz este juiz iníquo.
7 E Deus não fará justiça aos seus escolhidos, que a Ele clamam
dia e noite, e tardará em socorrê-los?”

O contraste é um ótimo instrumento de didática. Jesus se serve das reações de um julgador iníquo face à obstinada insistência da fragilidade feminina, para compará-las às atitudes do Supremo Juiz. Se um homem mau pratica uma boa ação para deixar de ser importunado, quanto mais não fará Deus, a Bondade em essência? Muito diferentemente da parábola, na aplicação trata-se do Verdadeiro Juiz, o qual é a própria Dadivosidade. Por outro lado, quem pede não é uma importuna viúva, mas sim os escolhidos de Deus. Estes não são indesejáveis. Ao contrário, a eles cabem os títulos de “privilegiados”, “amigos” e “fiéis”.

Jesus focaliza de maneira especial os escolhidos, neste versículo. Quem são eles? Aqueles que amam e temem a Deus, seus servidores, os quais vivem no estado de graça, lastimam-se de suas fraquezas e se penitenciam de suas faltas, purificando-se no divino perdão. Com o avanço claro e firme da teologia, pode-se afirmar serem eleitos todos os fiéis, conforme declara São Pedro: “Vós, porém, sois uma geração escolhida, um sacerdócio real, uma nação santa, um povo adquirido por Deus” (I Pd 2, 9).

Supõe-se erroneamente que um eleito jamais cometeria uma falta, e seu espírito nada teria de comum com a miséria. Não é real! A debilidade é útil para realçar o poder de Deus: “Porque é na fraqueza que o meu poder se manifesta por completo”, diz Nosso Senhor a São Paulo, o qual, por sua vez, complementa: “Portanto, de boa vontade me gloriarei nas minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo” (II Cor 12, 9).

Esses eleitos são aqueles que, muitas vezes, “sofrem perseguição por amor à justiça” (Mt 5, 10) e, não tendo a quem recorrer nesta Terra, voltam-se para Deus, rogando socorro, amparo e proteção. E com frequência, assim procedem dia e noite. Tal será que o juiz iníquo da parábola atenda ao clamor da viúva, e Deus, sendo Pai, não ouça as súplicas de seus amigos eleitos!

Mas, poderá alguém se perguntar, quando atenderá Deus a essas preces? Sem demora, conforme está no versículo 8: “Digo-Vos que depressa lhes fará justiça”.

II – Encontrará fé sobre a Terra?

8 “Digo-vos que depressa lhes fará justiça. Mas quando vier o
Filho do Homem, porventura encontrará fé sobre a Terra?”

Esta frase causou uma certa dificuldade de interpretação a numerosos exegetas. Alguns afirmam ser a parábola e sua respectiva aplicação referentes aos acontecimentos do fim do mundo, devido a esta consideração final do Evangelho de hoje. Procuram eles, portanto, fazer depender deste término de discurso do Divino Mestre, toda a lição anterior.

Através de argumentos lógicos e irrefutáveis, outros autores demonstram ser esta última frase um apêndice, guardando uma vaga relação com a parábola precedente.

Em concreto, essa vinda do Filho do Homem tanto poderá significar a parusia (volta gloriosa de Nosso Senhor Jesus Cristo no fim dos tempos), quanto uma notável intervenção d’Ele em benefício de seus eleitos.

Encontrará Ele a fé sobre a Terra?

Jesus nos descreve com detalhes os acontecimentos imediatamente próximos ao fim do mundo (cf. Mt 24, 3-51), e nesse seu discurso encontramos elementos a respeito da raridade da fé ao longo dos últimos dias: “Porque se levantarão falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes milagres e prodígios, de tal modo que, se fosse possível, até os eleitos seriam enganados” (Mt 24, 24). Conclui-se facilmente ser a fé perseverante desses atribulados fiéis cheia de confiança na bondade de Deus, em sua intervenção e poder. Fé paciente nas adversidades, transbordante de amor a Deus e por isso contínua na súplica, calorosa de esperança em obter logo o que pede.

A essa pergunta feita pelo próprio Jesus: “encontrará fé sobre a Terra?”, não nos deixou Ele resposta alguma. Seus ouvintes devem ter saído pensativos à busca de elementos para melhor entender seu significado, e um tanto estimulados a fazerem um exame de consciência. Erroneamente julgaríamos ser essa pergunta dirigida apenas aos circunstantes. Ela nos atinge também a nós, ao lermos o Evangelho de hoje. Se Jesus viesse a nós na época atual, encontraria Ele fé sobre a face da Terra?

III – Vigilância e oração

Constituía um verdadeiro sonho, para todo judeu, a implantação de um Reino Messiânico, de caráter político, sobre a Terra. O anseio constante dos israelitas era o de ver seu povo dominando sobre as outras nações. Os próprios Apóstolos, em ocasiões diversas, procuravam saber do Divino Mestre se não havia chegado a hora para a implantação dessa nova era.


A parábola do juiz e da viúva se insere bem exatamente nas considerações a esse propósito. Nos versículos anteriores (cf. Lc 17, 20-37), Jesus discorre sobre o Reino de Deus estendido a todos os homens pela vinda do Salvador, já presente entre eles. Adverte os circunstantes a respeito de quanto é indispensável estarem prevenidos para o grande dia do Juízo, dado que não se pode saber sua data. Sobre a vigilância, impossível haver melhores conselhos.

Mas só esta não é suficiente: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26, 41), disse Nosso Senhor. Faltava uma palavra de incentivo à oração. Daí a “parábola para mostrar que importa rezar sempre e não cessar de o fazer”.

Esse sempre não significa que devemos rezar a cada segundo das vinte e quatro horas do dia, mas torna-se indispensável manter uma continuidade moral, uma incansável frequência na oração. Também pode ser sinônimo de “vida inteira”. “Não cessar de o fazer”, apesar dos atrasos em ser atendido, enfrentando ou não obstáculos, na saúde ou na enfermidade, na consolação ou na aridez.

Ninguém pode se dispensar da oração

Não julguemos tratar-se aqui de um simples conselho de Jesus. Não! É um preceito, uma obrigação, ninguém pode se dispensar da oração. E quanto mais se sobe na vida interior, maior será o dever e constância da prece.

“Vigiai e orai”, diz-nos o Divino Mestre, e São Paulo insistirá: “Permanecei vigilantes na oração” (Col 4, 2) e “Orai sem interrupção” (I Tes 5, 17). Nossa própria natureza tisnada pelo pecado exige de nós essa postura face à oração; e, mais ainda, assim nos manda proceder a Santa Igreja, conforme determina o Concílio de Trento: “Deus não manda impossíveis; e ao mandar-nos uma coisa, determina-nos fazer o que podemos e pedir-Lhe o que não podemos, bem como ajuda para poder”.1

Por outro lado, o atendimento da parte de Deus será completo. Ele não olha para o tipo de necessidade, nem para a origem ou o tamanho da mesma, pois nada Lhe é impossível. Acontecimentos, ameaças, riscos, homens, demônios, etc., tudo está nas mãos d’Ele e bastará um ínfimo ato de sua vontade para resolver qualquer problema. Porém, não nos esqueçamos de que se quisermos nos lançar contra uma dificuldade, usando exclusivamente de nossos dons naturais e forças, não estará aí engajada a palavra de Deus!

É preciso importuná-Lo! Ele assim o exige. Ainda mais, é preciso ser incessante e fazer-Lhe uma espécie de “pressão moral”, sem nos cansarmos.


A contínua oração dos eleitos, em meio às dificuldades clamando a seu Pai, é infalível!

Ademais, consideremos a absoluta necessidade da oração, no que diz respeito à salvação eterna, conforme as calorosas palavras de um grande Doutor da Igreja, Santo Afonso Maria de Ligório:

“Terminemos este ponto, concluindo, de tudo quanto dissemos, que quem ora certamente se salva e quem não ora por certo será condenado. Todos os bem-aventurados, exceto as crianças, salvaram-se pela oração. Todos os condenados perderam-se por não orarem; se tivessem rezado não se teriam perdido. E este é e será no inferno o maior desespero, poderem ter alcançado a salvação com tanta facilidade quando bastava pedir a Deus as graças necessárias, e agora esses miseráveis não têm tempo de pedir”.2

Lembremo-nos do maternal conselho de Maria: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2, 5). Com essas palavras, Ela nos confirma ainda mais, ao encerrarmos os comentários ao Evangelho de hoje, o quanto é indispensável rezar sempre. E se quisermos ser atendidos em maior profusão e prontamente, façamo-lo por intermédio de sua poderosa intercessão. Assim, estaremos agradando a Jesus que se tornará ainda mais propício às nossas súplicas. ♦


1) Dz 1536.

 

 

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