Antídoto para a vanglória?

Comentário ao Evangelho do XXII Domingo do Tempo Comum

Repetidas vezes nos alerta o Divino Mestre contra o orgulho, de cujos efeitos todos padecemos, infelizmente. Como combatê-lo com eficácia? No que consiste a verdadeira humildade? Muitos, por equívoco, a confundem com mediocridade

Monsenhor João Scognamiglio Clá Dias, EP, Fundador dos Arautos do Evangelho e do Apostolado do Oratório

Choque entre dois modos de ser

Nesta Terra de exílio, um dos melhores modos de nos comunicarmos com Deus e termos, assim, algum antegozo da visão beatífica é contemplar os símbolos do Criador postos no universo, pois “as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, tornam-se visíveis à inteligência, por suas obras” (Rm 1, 20). Ou seja, desde que queiramos, é-nos dado discernir o Invisível no visível, o Infinito no finito, o Criador nas criaturas.

“Eis o Cordeiro de Deus”

Por isso, a Divina Providência dispôs na natureza uma abundância de símbolos de grande expressão, alguns dos quais foram aplicados ao próprio Filho de Deus, a fim de melhor O conhecermos e mais O amarmos. Ele mesmo Se apresenta como a videira cujos ramos produzem muito fruto (cf. Jo 15, 1-5), ou como o Bom Pastor, que dá a vida por suas ovelhas (cf. Jo 10, 11-16). Também é o Messias chamado de Leão da tribo de Judá (cf. Ap 5, 5), e como tal Se manifesta ao repreender com severidade os fariseus (cf. Mt 23, 13-33), e ao “expulsar os que no Templo vendiam e compravam” (Mc 11, 15).

Entretanto, ao longo de sua vida e, sobretudo, na hora suprema de sua Paixão e Morte, foi Jesus predominantemente o Divino Cordeiro. Não sem razão, durante a Celebração Eucarística, memorial do Sacrifício do Calvário, o sacerdote apresenta aos fiéis a Hóstia consagrada, antes da Comunhão, dizendo: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. Dentre os inúmeros símbolos de Nosso Senhor Jesus Cristo, escolheu a Santa Igreja esse como sendo o mais significativo para tão sagrado momento.

Humildade e mansidão

A Liturgia, ora comentada, põe em realce esse aspecto da Alma de Nosso Senhor, e a aclamação do Evangelho nos convida a imitá-Lo: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). Na verdade, Ele é muito mais do que isso, pois essas virtudes, que o homem luta por praticar, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade as possui em essência: Jesus é a humildade e a mansidão.

Quem é verdadeiramente humilde, é também manso, tem flexibilidade de espírito, está disposto a servir ou a obedecer a seu irmão, preocupa-se mais com os outros do que consigo mesmo, aceita qualquer humilhação ou ofensa com alegria, e quando nota um defeito na atitude de outro, reza por ele e procura não deixar transparecer o que percebeu. Pratica, assim, uma elevada e nobre forma de caridade para com o próximo.

Em sentido contrário, o orgulhoso gosta de assumir posição de superioridade, tende a desprezar os demais e deixa-se levar pela inveja, quando percebe uma qualidade nos outros. Com seu temperamento difícil e implicante, acaba tornando-se uma pessoa de convívio problemático, evitada por todos. Tal era o caso dos fariseus do Evangelho que comentamos. Presunçosos cumpridores de incontáveis preceitos formais, utilizavam-se da Antiga Lei para se sobressair e ocupar os primeiros lugares na sociedade. Entre eles e o resto do povo havia um verdadeiro abismo, todo feito de discriminação e desdém.

“Quem se humilha, será elevado”

Num sábado anterior ao episódio referido neste trecho do Evangelho, ou talvez nesse mesmo dia, Nosso Senhor restituíra a saúde a uma mulher que “andava curvada e não podia absolutamente erguer-se” (Lc 13, 11) havia dezoito anos. Essa cura produzira entre os fariseus verdadeira celeuma, pois, na concepção deles, teria Jesus desprezado a Lei, violando o repouso sabático.

Mas o Divino Mestre deu-lhes uma resposta que os encheu de confusão: “Hipócritas! Não desamarra cada um de vós no sábado o seu boi ou seu jumento da manjedoura, para levá-los a beber?” (Lc 13, 15). O povo, ao contrário, se entusiasmava à vista dos milagres por Ele realizados (cf. Lc 13, 17). Crescia, em consequência, em toda a Palestina, o prestígio de Jesus de Nazaré, e muitos O consideravam um grande profeta, surgido afinal depois de quatrocentos anos de silêncio do Céu.


Convite mal-intencionado

1 Aconteceu que, num dia de sábado, Jesus foi comer na casa de
um dos chefes dos fariseus. E eles O observavam.

Este Evangelho nos apresenta Nosso Senhor indo almoçar na casa de um dos chefes dos fariseus, certamente a pedido deste. Honroso na aparência, o convite fora feito, porém, com o objetivo de poder analisá-Lo mais de perto para preparar-Lhe uma cilada. “Eles O espreitavam insidiosamente, na esperança de encontrar algo de repreensível em sua palavra ou em seu procedimento: convidam-No como quem quer prestar honras, e O espionam como a um inimigo”,1 nota o Cardeal Gomá.

Bem diversa era a atitude do Cordeiro de Deus: aceitou o convite, movido pelo desejo de fazer-lhes bem. Conhecia desde toda a eternidade a cena que lá ia se desenrolar e ansiava por chegar o momento em que pudesse indicar a essas almas, cegas pelo orgulho, o verdadeiro caminho para o Reino dos Céus.2 Como assinala o padre Duquesne, “Jesus teve a terna complacência de comparecer, com intenção de aproveitar a oportunidade para edificar, instruir, convencer e, se possível, conquistar para a verdade aqueles com os quais iria comer”.3

Delírio farisaico pelos primeiros lugares

7a Jesus notou como os convidados escolhiam os primeiros lugares.

Naqueles banquetes dispunham-se as mesas em forma de “u”, para facilitar o serviço, acomodando-se os comensais ao longo da parte externa. O principal lugar, bem ao centro, estava reservado para a autoridade ou a pessoa a quem se desejava homenagear. À sua direita sentava-se o anfitrião, à sua esquerda, o primeiro dos convidados e assim iam se instalando os convivas, por ordem decrescente de importância, até os extremos da mesa. Naturalmente, nenhum escriba ou fariseu queria ocupar esses últimos lugares; pelo contrário, disputavam sem inibição e com avidez os postos de honra. Os problemas de precedência eram tão vivos entre eles que Nosso Senhor chegara a recriminá-los publicamente por esse defeito: “Ai de vós, fariseus, que gostais das primeiras cadeiras nas sinagogas e das saudações nas praças públicas!” (Lc 11, 43).

Para ilustrar a exacerbada ânsia de prestígio que os dominava, Fillion relata um curioso episódio, extraído do próprio Talmud: “Certo dia, o rei asmoneu Alexandre Janeu dava um banquete a vários sátrapas persas, e entre os convidados estava o rabino Simeão ben Shetach. Logo que entrou no salão, foi ele sentar-se no lugar de honra, entre o rei e a rainha. Ao ser repreendido por essa arrogante intrusão, respondeu de pronto: ‘Não está escrito no livro de Sirac: Honra a sabedoria e ela te honrará?’ Chegava a este ponto o enfatuamento dos doutores israelitas naquela época!”. 4

Ora, sendo os convidados desse banquete membros da seita dos fariseus, chegando, começavam logo a manobrar para ficar o mais próximo possível do anfitrião, a fim de satisfazer seu incontido orgulho. Tomados pelo delírio de aparecer, disputavam entre si a precedência, sem o mínimo recato, alegando cada qual em seu favor critérios como idade, relevância da sua linhagem ou a própria sabedoria, como acima vimos. Pouco se preocupavam em ouvir algum ensinamento ou admirar a quem quer que fosse; o único critério que lhes interessava era serem objeto dos elogios e da consideração dos presentes.

Assim ofuscados pelo egoísmo, passara-lhes despercebida na sala do banquete a presença de Alguém que, enquanto homem, era de estirpe real, descendente de Davi; e, enquanto Deus, era o Criador do Céu, da Terra, do alimento que ia ser servido e até dos próprios comensais.

Cristo, entretanto, senta-Se despretensiosamente à mesa, sem exigir em nenhum momento uma manifestação do respeito devido à sua Pessoa.

Modo delicado de repreender

7b Então contou-lhes uma parábola: 8a “Quando tu fores convidado
para uma festa de casamento…”

Talvez tenha de fato ocorrido, nesse banquete, uma cena semelhante à descrita pouco adiante na parábola, motivo pelo qual Jesus preferiu falar em tese, fazendo referência a uma hipotética festa de casamento; dessa forma, evitava constrangimentos para os demais convidados. Assim opina o Cardeal Gomá, o qual qualifica de “delicada maneira de repreender os fariseus”5 o uso desse recurso literário.

Segundo Santo Ambrósio, o Salvador os admoesta “com doçura, para que a força da persuasão conseguisse suavizar a aspereza da correção, e objetivando também que a razão ajudasse a persuasão, e a advertência corrigisse o orgulho”.6 Analisando sob outro prisma o fato, observa Fillion: “Jesus imagina de propósito a cena numa festa de bodas porque em tais circunstâncias, nas classes abastadas, observa-se mais rigorosamente a etiqueta”.7 E o padre Tuya acrescenta: “O banquete de casamento ao qual Jesus faz menção é o Reino Messiânico […]. Ali, os primeiros lugares estão reservados para os que foram mais humildes”.8

“Quem se eleva será humilhado”

8b “…não ocupes o primeiro lugar. Pode ser que tenha sido
convidado alguém mais importante do que tu, 9 e o dono da casa,
que convidou os dois, venha te dizer: ‘Dá o lugar a ele’. Então tu
ficarás envergonhado e irás ocupar o último lugar”. 

Para realçar os inconvenientes do orgulho, Nosso Senhor começa por mostrar aos fariseus o quanto a ânsia de ocupar os primeiros postos era-lhes contraproducente, mesmo do ponto de vista meramente natural. Porque, conforme ensina São Cirilo de Alexandria, “o elevar-se prontamente a honras que não merecemos, denota que somos temerários e torna nossas ações dignas de vitupério”.9

Melhor entenderemos esta parábola se considerarmos que não vigoravam ainda no convívio social os princípios de cortesia introduzidos pela benéfica influência do Cristianismo. Naquela época, a ausência de bondade fazia-se sentir nas relações humanas, regidas pelos princípios da lei de talião: “Olho por olho, dente por dente”. E o trato entre os homens era, portanto, marcado pelo egoísmo e a dureza, buscando cada um apenas seus próprios interesses.

Se o convidado da parábola tivesse, por precaução, escolhido o último lugar, teria sido honrado pelo anfitrião. Entretanto, a procura imprudente da vanglória, acarretou-lhe ser publicamente humilhado. Aliás, neste sentido, é interessante notar, com o Cardeal Gomá, “o contraste entre aquele que baixa, coberto de confusão, e o que sobe, cheio de honra; e entre as duras palavras ditas ao primeiro e as suaves com as quais o segundo é convidado a ocupar um lugar melhor”.10

Muito além das normas de cortesia terrena

10 “Mas quando tu fores convidado, vai sentar-te no último lugar.
Assim, quando chegar quem te convidou, te dirá: ‘Amigo, vem
mais para cima’. E isto vai ser uma honra para ti diante de todos
os convidados. 11 Porque quem se eleva, será humilhado e quem
se humilha, será elevado”.

Bem observa Fillion que, por certo, não quis Jesus dar com esta parábola simplesmente “uma regra de cortesia mundana e de boas maneiras, baseada em motivos egoístas, ou seja, substituir uma vaidade grosseira por um orgulho requintado”.11 Para o Venerável Beda, sob o invólucro da parábola revela-se uma clara admoestação: “Todo aquele que, convidado, venha às bodas de Jesus Cristo e da Igreja, unido pela fé aos membros da Igreja, não se exalte como se fosse superior aos outros, nem se glorie por seus méritos; mas ceda seu lugar àquele que, convidado depois, é mais digno e progrediu mais no fervor dos que seguem a Jesus Cristo, e ocupe com modéstia o último lugar, reconhecendo que os demais são melhores do que ele em tudo quanto se julgava superior”.12

Envoltos, muitas vezes, em linguagem figurada, os ensinamentos do Divino Mestre ultrapassam de longe as meras normas de cortesia terrena, como põe em evidência esse santo monge beneditino: “Porque nem todos os que se exaltam diante dos homens são humilhados, e nem todos os que se humilham em sua presença são por eles exaltados; quem, porém, se extasia por seus méritos, será humilhado pelo Senhor, e quem se humilha por seus benefícios será exaltado por Ele”.13

“Quem se humilha, será elevado”. O melhor exemplo disso ali estava diante dos fariseus, tratando-os com a suavidade de um cordeiro: Aquele que “sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-Se ainda mais, tornando-Se obediente até a morte, e morte de Cruz. Por isso Deus O exaltou soberanamente e Lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes” (Fl 2, 8-9).

“Quem se exalta, será humilhado”. Entretanto, aqueles que, ensoberbecidos, disputavam os primeiros lugares e procuravam estender armadilhas a Nosso Senhor, corriam o risco de serem humilhados já nesta vida, ou, pior ainda, na eternidade, pelo justo Juízo de Deus.

Procurar a recompensa no próprio Deus

12 E disse também a quem O tinha convidado: “Quando tu deres
um almoço ou um jantar, não convides teus amigos, nem teus
irmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos ricos. Pois estes
poderiam também convidar-te e isto já seria a tua recompensa”.

Depois de corrigir o orgulho dos fariseus, Nosso Senhor volta-Se para o anfitrião a fim de lhe dar um conselho. Havia este, sem dúvida, convidado apenas aqueles dos quais poderia tirar depois algum proveito. Mesmo o convite a Nosso Senhor teria sido feito, na opinião de Eutímio, com o desejo de apresentar-se como “diferente daqueles fariseus que pareciam querer-Lhe mal”.14 Além do mais, segundo explica o padre Truyols, a presença de Jesus de Nazaré naquela casa prestigiava o anfitrião diante do povo, dado o alto conceito de que gozava então o Divino Mestre.15

Nosso Senhor, entretanto, ensina o dono da casa a não proceder em relação aos outros movido por cálculos pragmáticos e interesseiros. Porque qualquer ação que o homem faça, visando satisfazer apenas seu próprio egoísmo, recebe a recompensa neste mundo, ao obter o aplauso ou a aprovação dos demais, e perde qualquer mérito para a vida eterna.16

Por isso, bem nos aconselha São João Crisóstomo: “Não nos perturbemos, pois, quando não recebermos recompensa pelos nossos benefícios, mas sim quando a recebermos; porque se a recebermos aqui, nada receberemos depois; mas se os homens não nos pagarem, Deus nos pagará”.17

13 “Pelo contrário, quando deres uma festa, convida os pobres, os
aleijados, os coxos, os cegos. 14 Então tu serás feliz! Porque eles não te
podem retribuir. Tu receberás a recompensa na ressurreição dos justos”.

Ao incentivar esse chefe dos fariseus a convidar “os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos”, Nosso Senhor o recrimina com toda suavidade por seu egoísmo. Mais do que isso, estabelece o princípio de que, para receber a recompensa no Reino dos Céus, é preciso ser generoso com o próximo nesta Terra, sem esperar dele a restituição do benefício feito.18

Praticar o bem visando retribuição, transforma o relacionamento humano em mero negócio regido pelos princípios dos antigos contratos romanos pagãos: do ut des — dou para que me dês —, ou do ut facias — dou para que faças. Com efeito, pergunta o padre Duquesne: “O que é a liberalidade exercida pelos mundanos? Uma liberalidade interesseira: dá-se apenas para receber, dá-se só a quem sabe pagar na mesma moeda. Uma liberalidade costumeira que com frequência leva a murmurar quem a ela se vê obrigado, na qual não entra motivo algum de caridade ou de religião; enfim, uma liberalidade de prazer e ostentação”.19

Pelo contrário, quando fizermos o bem a outro, sem esperar pagamento, o prêmio nos será dado pelo próprio Deus. E Ele nunca Se deixa vencer em generosidade.

Duríssima resultava esta doutrina para aqueles homens materialistas, orgulhosos e oportunistas. Mas tinham diante de si, como exemplo vivo, Aquele que a praticaria até os últimos extremos, ao aceitar como cordeiro os sofrimentos da Paixão e deixar-Se crucificar, sem um lamento, por aquele povo a quem tanto bem fizera e em favor do qual tantos milagres realizara.

Humildade e admiração

Ao criar os homens com o instinto de sociabilidade, desejava Deus que eles se apoiassem mutuamente na prática do bem, tornando o convívio social uma contínua fonte de afervoramento espiritual. Assim, numa sociedade toda voltada para a prática da virtude, os inferiores admirariam e venerariam os seus superiores e estes lhes retribuiriam com afeto e ternura. Reinaria entre todos a união, a harmonia e a paz.

Ora, o pecado original introduziu no homem uma virulenta tendência à soberba, a qual está na raiz de todos os pecados. Quando essa inclinação não é combatida, o relacionamento entre os homens decai ao nível de uma feira de vaidades e de egoísmos, verdadeira cascata de desprezos, como a que vemos retratada no banquete descrito no Evangelho.

Sutil forma de orgulho

Para bem entendermos em que consiste a prática da virtude da humildade, aqui recomendada por Nosso Senhor, são necessários alguns esclarecimentos, pois não é raro encontrar pessoas que, em nome de uma despretensão mal entendida, tornam-se medíocres, não fazendo render os talentos recebidos de Deus.

A humildade consiste em “andar em verdade”,20 escreveu Santa Teresa de Jesus. Ora, “andamos em verdade” quando nos submetemos a Deus com espírito de religião, somos-Lhe gratos, reconhecendo a nossa total dependência do Criador e compreendendo que tudo quanto temos de bom foi-nos dado por Ele. Pois se de um lado, infelizmente, há em nós defeitos culposos ou meras limitações da natureza, de outro lado, por certo a Divina Providência a ninguém deixou desprovido de qualidades e dons, ora maiores, ora menores.

A propósito, ensina-nos São Tomás não haver oposição entre a humildade e a magnanimidade: “A humildade reprime o apetite, para que ele não busque grandezas além da reta razão, ao passo que a magnanimidade o estimula para o que é grande, segundo a reta razão. Fica claro, portanto, que a magnanimidade não se opõe à humildade, mas, ao contrário, ambas coincidem em que agem segundo a reta razão”.21 São virtudes complementares.

Não caiamos, portanto, numa sutil forma de orgulho que se traduz em apresentar-se como o último dos homens, um ser incapaz de realizar qualquer ação de valor…

São Tomás afirma que isso constitui falsa humildade, cognominada por Santo Agostinho de “grande soberba”, porque, na verdade, com esse tipo de fingimento, a pessoa pretende obter uma glória superior.22 Além disso, é também ingratidão em relação aos dons recebidos de Deus.

Pelo contrário, aceitemos com mansidão e ânimo aquilo que realmente somos, analisemo-nos com toda objetividade e não nos revoltemos perante eventuais adversidades ou mesmo injustiças, mas saibamos utilizá-las como meio de reparar nossas próprias faltas.

Um dos melhores meios de praticar a humildade

Entretanto, um modo muito eficaz e pouco ensinado de combater o amor-próprio consiste em admirar aquilo por onde os outros são superiores a nós, reconhecendo nessas qualidades reflexos das perfeições divinas. Sendo todo homem superior aos demais sob determinado ângulo, único e personalíssimo, procurar admirar essas qualidades dos outros é um dos melhores e mais eficientes meios de combater o amor desregrado a si mesmo e à vanglória.

Quem assim agir, praticará de maneira excelente a virtude da humildade e, ao mesmo tempo, o Primeiro Mandamento da Lei de Deus, pois o amor a todas as superioridades está no cerne da prática da virtude da caridade.

Por isso, quem quiser ser manso de coração, admire as qualidades dos outros; quem quiser ser desapegado, admire a generosidade dos outros; quem quiser ser santo, admire a virtude dos outros. Enfim, admiremos tudo quanto é admirável e teremos já a recompensa da paz de alma nesta Terra, e a bem-aventurança eterna no Céu!

A admiração, eis a grande lição deste Evangelho. ♦

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O Inédito sobre os Evangelhos. Vol 06. XXII Domingo do Tempo Comum.
1) GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Año tercero de la vida pública de Jesús. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.III, p.272.
2) Por não estarem incluídos nesta Liturgia, não comentaremos aqui os versículos 2 a 6, que narram a cura do hidrópico. Mas convém notar como Jesus, mesmo enquanto dá essa magnífica prova de seu poder divino, mantém a suavidade do Cordeiro no seu trato com aqueles fariseus. Em lugar de increpá-los, como fez em anteriores ocasiões, fala-lhes nessa ocasião com linguagem interrogativa, quase como quem pede conselho.
3) DUQUESNE. L’Évangile médité. Lyon-Paris: Perisse Frères, 1849, v.III, p.92.
4) FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.394.
5) GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.273.
6) SANTO AMBRÓSIO. Tratado sobre el Evangelio de San Lucas. L.VII, n.195. In: Obras. Madrid: BAC, 1966, v.I, p.449-450.
7) FILLION, op. cit., p.395.
8) TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.864.
9) SÃO CIRILO DE ALEXANDRIA, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XIV, v.7-11.
10) GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.274.
11) FILLION, op. cit., p.395.
12) SÃO BEDA, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit.
13) Idem, ibidem.
14) EUTÍMIO, apud MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelios de San Marcos y San Lucas. Madrid: BAC, 1951, v.II, p.637.
15) Cf. FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. 2.ed. Madrid: BAC, 1954, p.447-448.
16) Sobre este assunto, ver comentários do mesmo autor: O centro deve estar sempre ocupado por Deus. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.98 (Fev., 2010); p.11-18; Comentário ao Evangelho da Quarta-feira de Cinzas, no Volume VII desta coleção.
17) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., v.12-14.
18) Note-se, entretanto, que “não se proíbe, nessa parábola, cumprir os deveres de família ou de amizade” (GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.274). Por outro lado, “cairia em singular erro quem procurasse interpretar ao pé da letra todas as circunstâncias. Não passou pela mente de Jesus alterar as relações sociais no que estas têm de legítimo” (FILLION, op. cit., p.395).
19) DUQUESNE, op. cit., p.96.
20) SANTA TERESA DE JESUS. Castillo Interior. Moradas sextas, c.X, n.7. In: Obras Completas. 3.ed. Burgos: El Monte Carmelo, 1939, p.617-618.
21) SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.161, a.1, ad 3.
22) Cf. Idem, ad 2.

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